Proc. nº 788/2012
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 06 de Dezembro de 2012
Descritores:
-STDM
-Declaração de remissão/quitação
SUMÁRIO:
I- A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
II- A quitação (ou recibo, no caso de obrigação pecuniária) é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação.
III- O reconhecimento negativo de dívida é o negócio pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
IV- O reconhecimento negativo da dívida pode ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas.
V- A remissão ou quitação de créditos do contrato de trabalho é possível após extinção das relações laborais.
Processo nº 788/2012
(recurso Cível e laboral)
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I- Relatório
A, com os demais sinais dos autos, intentou contra a STDM acção de processo comum de trabalho pedindo a condenação desta no pagamento da quantia total de MOP$ 1,313,990.92, a título de compensação pelo não pagamento do trabalho prestado em dias de descanso semanal, anual e feriados e juros respectivos, bem assim como a título de indemnização pela lesão da sua personalidade física e psíquica e de sanção pecuniária compulsória.
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Na sua contestação, a STDM, além da defesa por impugnação, também excepcionou a prescrição dos créditos laborais, que o despacho saneador desatendeu totalmente.
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Foi, na oportunidade, proferida a sentença que julgou a acção improcedente.
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É dessa sentença que ora vem interposto o presente recurso, em cujas alegações o autor formulou as seguintes conclusões:
“A. Os pontos concretos da matéria de facto a que respeitam o quesito 2º da Base Instrutória foram, assim, incorrectamente julgados, pelo que requer que as respectivas respostas de fls. 489 sejam alteradas para PROVADO, nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, alínea a) do CPCM.
B. Os pontos concretos da matéria de facto a que respeitam o quesito 7o da Base Instrutória foram, assim, incorrectamente julgados, pelo que requer que as respectivas respostas de fls. 489 sejam alteradas para NÃO PROVADO, nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, alínea a) do CPCM.
C. À mesma conclusão se chega por via das regras do ónus da prova, dado que, perante a imputação de não ter respeitado o regime legal imperativo da suspensão remunerada da prestação do trabalho, a Ré contrapôs o regime convencional de descansos ad hoc referido nos art.º 36.º e 37.º desse articulado justificava a derrogação das regras imperativas do regime legal, sem que, no entanto, tivesse alegado e provado os factos integradores do cumprimento do regime legal a que estava adstrita ou quaisquer factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo Autor, como lhe impunha o disposto no art.º 335.º, n.º 2 do CCM e a presunção de culpa estabelecida no art.º 788.º, n.º 1 do mesmo diploma.
D. Ou seja, a Ré não negou que o Autor tivesse prestado trabalho nos períodos de descanso obrigatório previstos na lei, nem alegou ou provou que remunerou e compensou esse trabalho de acordo com a lei.
E. Pelo contrário, a Ré alegou que os dias de trabalho prestado em dia de descanso eram retribuídos em singelo.
F. Sucede que a alegação (não provada) do cumprimento de um qualquer acordo substitutivo da aplicação do regime imperativo dos descansos obrigatórios, não é suficiente para elidir a presunção do incumprimento culposo das normas laborais que impõem o seu gozo remunerado.
G. E não tendo ficado provado qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo dos direitos invocados pelo A., outra não poderia ter sido a decisão, face ao disposto nos art.º 335.º, n.º 2 e 3, 339.º, 787.º e 788.º, n.º 1, todos do CCM, senão a de considerar assente que a Autora não suspendeu a sua prestação de trabalho nos dias de feriado e descanso obrigatório.
H. Assim, a sentença recorrida ao não dar como provados a matéria dos quesitos 2.º da Base Instrutória violou o disposto no art.º 335.º, n.º 2 e 3, 339.º e 788.º, n. º 1, todos do CCM.
I. Com interesse para a caracterização da parte variável da remuneração como salário da A. ficaram provados os factos indicados nas alíneas c), e), f), g) e i) dos Factos Assentes.
J. A quase totalidade da remuneração do A. era paga pela Ré a título de rendimento variável (cfr. alíneas d), a contrário, dos Factos Assentes), o qual integra o salário.
K. Ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, o legislador de Macau recortou o conceito técnico jurídico de salário nos artigos 7.º, b), 25.º, n.º l e 2 e 27.º, n.º 2 do RJRL.
L. É o salário tal como se encontra definido nos artigos 7.º, b), 25.º, n.º I e 2 e 27.º, n.º 2 do RJRL que serve de base ao cálculo de inúmeros direitos dos trabalhadores, designadamente do acréscimo salarial devido pelo trabalho prestado nos períodos de descanso obrigatório.
M. A interpretação destas normas não deverá conduzir a um resultado que derrogue, por completo, a sua finalidade, a qual consiste em fixar, de forma imperativa, a base de cálculo dos direitos dos trabalhadores.
N. A doutrina invocada na douta sentença recorrida não serve de referência no caso “sub judice” por ter subjacente diplomas (inexistentes em Macau) que estabelecem o salário mínimo, e definem as regras de distribuição pelos empregados das salas de jogos tradicionais dos casinos das gorjetas recebidas dos clientes.
O. Em Portugal quem paga as gorjetas aos trabalhadores dos casinos que a elas têm direito não é a própria Concessionária, que nunca tem a disponibilidade do valor percebido a título de gorjetas, mas as Comissões de distribuição das gratificações (CDG), as quais, sendo distintas e autónomas da empresa concessionária são moldadas como entidades equiparáveis a pessoas colectivas, sujeitas a registo, com sede em cada um dos casinos.1
P. Ao contrário, em Macau, quem paga aos trabalhadores a quota-parte a que eles têm direito sobre o valor das gorjetas é a própria concessionária que o faz seu, e não a comissão responsável pela sua recolha e contabilização.
Q. O primitivo carácter de liberalidade das gorjetas diluiu-se no momento e na medida em que as gorjetas dadas pelos clientes não revertiam directamente para os trabalhadores mas, ao invés, eram reunidas, contabilizadas e distribuídas pela Ré, segundo um critério por ela fixado (distribuição essa, sublinhe-se, que, como ficou provado, era feita por todos os trabalhadores da Ré e não apenas por aqueles que contactavam com os clientes - alínea g) dos Factos Assentes.
R. No caso dos autos, as gorjetas que se discutem não pertencem aos trabalhadores a quem são entregues pelos clientes dos casinos (alínea f) dos Factos Assentes).
S. Estas gorjetas pertencem à Ré que com elas faz o que entende, nomeadamente o especificado alíneas c), e), f), g) e i) dos Factos Assentes.
T. A Ré tinha o dever jurídico de pagar ao A. quer a parte fixa, quer a parte variável da remuneração do trabalho (alínea c) dos Factos Assentes.)
U. O pagamento da parte variável da retribuição do A. - que corresponde à quase totalidade da contrapartida do seu trabalho - traduziu-se numa prestação regular, periódica, não arbitrária e que sempre concorreu durante todo o período da relação laboral para o orçamento pessoal e familiar do trabalhador.
V. Tais gratificações sendo de montante superior à remuneração-base são tidas como parte integrante da retribuição, dada a sua regularidade e o seu carácter de permanência, independentemente de quem as atribua.2
W. Assim, nos termos do disposto nos artigos 7.º, b) e 25.º, n.º 1 e 2 do RJRL, a parte variável da retribuição do A. deverá considerar-se como salário para efeitos do cômputo da indemnização pelo trabalho prestado nos períodos de dispensa e descanso obrigatório.
X. As gorjetas dos trabalhadores dos Casinos e, em especial as auferidas pelo A. durante todo o período da sua relação laboral com a Ré, em ultima ratio devem ser vistas como «rendimentos do trabalho», porquanto devidos em função, por causa e por ocasião da prestação de trabalho, ainda que não necessariamente como correspectivo dessa mesma prestação de trabalho, mas que o passam a ser a partir ou momento em que pela prática habitual, montantes e forma de distribuição, com eles o trabalhador passa a contar, sendo que sem essa componente o trabalhador não se sujeitaria a trabalhar com um salário que, na sua base, é um salário insuficiente para prover às necessidades básicas resultantes do próprio trabalho.
Y. Acaso se entenda que o salário do A. não era composto por duas partes: uma fixa e uma variável, então o mesmo será manifestamente injusto - porque intoleravelmente reduzido ou diminuto - e, em caso algum, preenche ou respeita os condicionalismos mínimos fixados no Regime Jurídico das Relações Laborais da RAEM, designadamente nos artigos 7.º, b), 25.º, n.º 1 e 2 e 27.º, n.º 2 desse diploma.
Z. De tudo quanto se expôs resulta que, a douta Sentença do Tribunal de Primeira Instância, na parte em que não aceita que a quantia variável auferida pelo A. durante toda a relação de trabalho com a Ré seja considerada como sendo parte variável do salário do A., terá feito uma interpretação incorrecta do disposto nos artigos 5.º; 27.º; 28.º; 29 n.º 2, 36.º todos do Decreto-lei n.º 101/84/M, de 25 de Agosto e, bem assim, uma interpretação incorrecta do consagrado nos artigos 5.º; 7.º, n.º 1, al. b); 25.º; 26.º e n.º do art. 27.º todos do Decreto-lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
AA. Nesta parte, a douta sentença deve ser alterada com as legais consequências, designadamente no que respeita à base de cálculo e ao cômputo da indemnização pelo trabalho prestado nos períodos de descanso semanal.
BB. Por outro lado, nos termos do disposto nos artigos 7.º, b) e 25.º, n.º 1 e 2, 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 2 e 28.º, n.º 1, todos do RJRL, a parte variável da retribuição da A. deverá considerar-se como salário para efeitos do cômputo da “ indemnização pela licença de parto, bem como pelo trabalho prestado nos períodos descanso obrigatório e feriados remunerados.
CC. Assim, face ao disposto nos art.º 7.º, n.º 1, al. b); 25.º, n.º 2; e 27.º, n.º 2, todos do Decreto-lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, o montante da compensação por descanso semanal de período de 21/09/1990 a 19/07/2002 deve ser calculado também com base na parte variável da remuneração, cifrando-se, por conseguinte em MOP$493,854.35 por aplicação da fórmula (salário médio diário X 2).
DD. O montante da compensação por descanso anual relativa ao período de 21/09/1990 a 19/07/2002 deverá ser fixado em MOP$85,912.55, por aplicação da fórmula (salário médio diário X 3), conforme o disposto nos art.º 24.º, do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
EE. O mesmo sucedendo quanto ao montante da compensação pelos feriados obrigatórios, o qual deverá ser fixado em MOP$87,326.35, por aplicação da fórmula (salário médio diário X 3), conforme o disposto nos art.º 20.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, cifrando-se o valor total da indemnização pelo trabalho prestado nos períodos de descanso obrigatório e feriados remunerados em MOP$667,093.25, conforme resulta da tabela abaixo reproduzida.
FF. Subsidiariamente, sempre devia o Tribunal a quo ter subsumido os factos provados nas respostas de fls. 489 dadas aos quesitos 2.º e 7.º da Base Instrutória, apenas provado que o Autor gozou um dia feriado obrigatório remunerado (Dia de Implantação da República Popular China), mas ele não recebeu salário relativa este dia, nas hipóteses dos artigos 17.º, n.º 1 e 6, 19.º, n.º 3 e 20.º, n.º 1 e 21.º, n.º 1 e 24.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril e, por conseguinte, condenado a Ré no pagamento do valor de MOP$666,112.97.
GG. Os croupiers dos casinos não são remunerados em função do volume de apostas realizadas na mesa de jogo, nem são eles que fixam o seu período e horário de trabalho, sendo-lhes vedado trabalhar quando e quanto lhes convém, conforme resulta também das alíneas k) e 1) dos Factos Assentes.
HH. O salário diário destina-se a remunerar os trabalhadores nas situações em que não é fácil, nem viável, prever, com rigor, o termo do trabalho a realizar, como sucede, e.g., nas actividades sazonais, irregulares, ocasionais e/ou excepcionais, bem como na execução de trabalho determinado, precisamente definido e não duradouro, ou na execução de uma obra, projecto ou outra actividade definida e temporária.
II. Por outro lado, o documento a que se refere o aresto do V.nd TUI invocado na sentença recorrida refere-se a um documento em que o trabalhador declarou nada mais ter a receber da entidade patronal, o que não sucede no documento de fls. 225, o qual não contém qualquer reconhecimento negativo de dívida, mas apenas a quitação da importância entregue ao trabalhador na, à data, Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego.
JJ. O entendimento do referido aresto do V.nd TUI não é, pois, aplicável, à quitação do documento de fls. 225 (por se tratar de uma situação diferente) nem, por conseguinte, à situação dos presentes autos, não sendo assim de manter a qualificação desse documento na sentença recorrida como uma quitação com reconhecimento negativo de dívida.
KK. O salário diário é, pois, próprio dos contratos de trabalho onde a prestação do trabalho não assume carácter duradouro, o que não sucede com o desempenho da actividade de croupier, que consiste num trabalho continuado e duradouro, a que, automaticamente, corresponde o estatuto de trabalhador permanente no termo do primeiro ano de trabalho consecutivo.
LL. O entendimento de que a remuneração dos croupiers da Ré, e o do A. em particular, consiste num salário diário, não ficou provado por se tratar de matéria de direito, nem se coaduna com este tipo de funções, nem com as condições de trabalho, nem com estatuto de trabalhador permanente definido no artigo 2.º, f) do RJRL), o qual pressupõe o exercício de uma determinada função dentro da empresa, de forma continuada e duradoura no tempo.
NESTES TERMOS, e nos demais de direito que V. Exas. se encarregarão de suprir, deverá ser revogada a douta Sentença do Tribunal de Primeira Instância, pois só assim se fará a já costumada JUSTIÇA”
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A ré da acção, STDM, respondeu ao recurso, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente Recurso interposto da douta Sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base (TJB) em 20 de Junho de 2012, a qual decidiu, e bem, pela procedência da excepção peremptória do pagamento, deduzida pela Ré, qualificando-a de quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida e absolvendo a Ré dos pedidos formuladas pelo Autor;
2. Pretende a Recorrente a alteração da matéria de facto dada como assente que se relacione cornos quesitos n.º 2 e n.º 7 da base instrutória;
3. Entende a Recorrida que sejam quais forem as declarações que a testemunha tenha prestado no tocante à matéria em causa, para além do declarado pelas restantes testemunhas, mormente as arroladas pela aqui Recorrida, o Tribunal a quo terá sempre de as valorar em conjunto com todos os restantes meios de prova constantes dos autos;
4. Neste contexto, para além da observância e cumprimento do princípio da aquisição processual, no âmbito do qual “0 tribunal deve tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, mesmo que não tenham sido apresentadas, requeridas ou produzidas pela parte onerada com a prova (cfr. o artigo 436.º do CPC), de entre o conjunto de todas as provas carreadas para o processo, o Julgador goza da livre apreciação da prova (cfr. o n.º 1 do artigo 558.º do CPC);
5. No entendimento da aqui Recorrida, não se está perante uma questão de hipotético erro na apreciação da prova, conforme a pretende enquadrar a Recorrente, mas somente de uma divergência de entendimento no que toca ao atendimento e valoração de toda a prova carreada para os autos, a qual, evidentemente, não serviu os intentos da aqui Recorrente;
6. Ademais, a aqui Recorrida não alcança qual o erro que a Recorrente pretende apontar à apreciação da matéria constante dos quesitos 2.º e 7.º;
7. Requer que se considere provada a matéria constante do quesito 2.º. Na verdade, tal matéria foi considerada provada, apenas com a ressalva daqueloutra matéria constante do quesito 7.º, sendo esta relativa aos dias de descanso que foram solicitados pelo Autor e autorizados pela Ré, não remunerados, diga-se, tal como a própria resposta ao quesito 7.º refere e tal como reconhecido, ou confessado, pela Ré na sua Contestação;
8. Aliás, a própria testemunha B confirma a resposta dada aos quesitos 2.º e 7.º, quando, às 15:35:26, declara que “Caso requeira licença, esta é uma falta não remunerável, não vai receber remuneração”. A testemunha chama-lhe “licença não remunerável”, enquanto que a Ré usa a qualificação de dia de descanso não remunerado. De igual forma os qualificou o Tribunal a quo, ou seja, como dias de descanso não remunerados;
9. Quanto ao quesito 7.º, são as próprias declarações da testemunha que confirmam a resposta dada pelo Tribunal a quo quanto a esta matéria, tal como já supra referido, mormente quando declara que “Caso requeira licença, esta é uma falta não remunerável, não vai receber remuneração”. Resulta da prova documental constante dos autos, mormente do Documento n.º 1 junto à Contestação, quais os dias de descanso, pese embora não remunerados, que em concreto foram gozados pelo Autor;
10. Assim, não se vislumbra qual o sentido e alcance desta parte do Recurso, devendo o mesmo improceder porque infundado;
Ainda concluindo,
11. Andou bem a douta Sentença recorrida na consideração da “Declaração” como extintiva dos eventuais créditos do Autor sobre a Ré, decorrentes da relação laboral mantida entre ambas e já cessada;
12. O Tribunal a quo aderiu, assim, ao entendimento do Tribunal de Última Instância (TUI) no que toca a esta matéria, mormente ao expresso no Acórdão n.º 46/2007, de 27 de Fevereiro de 2008, no âmbito do qual se declara que “A remissão de créditos do contrato de trabalho é possível após a extinção das relações laborais”;
13. Mais invoca o Acórdão do TUI n.º 27/2008, de 30 de Julho de 2007, no âmbito do qual a Alta Instância qualifica a “Declaração” como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo da dívida, não obstante também afirmar que, tratando-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a Ré;
14. Por outro lado, este entendimento é também perfilhado por este Tribunal de Recurso, tal como decidido no Acórdão do TSI n.º 1003/2010, de 30 de Junho de 2011, no âmbito do qual se julgou uma situação idêntica com um outro ex-trabalhador da Ré, transcrevendo-se de seguida partes do citado Acórdão:
“Desta declaração, podemos ver, o trabalhador, face à rescisão do contrato de trabalho, no que respeita à relação laboral que durava e vinculava, recebeu uma certa quantia, referente a compensações de eventuais direitos, nomeadamente relativos aos descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, aceitando que nenhuma outra quantia fosse devida. Isto, tal como sempre afirmamos, deu quitação da dívida.
Mas vem agora o trabalhador pedir outros montantes, quantitativamente muito maiores.
Esta situação, não podemos deixar de implica o seguinte, como uma pessoa normal podia fazer a sua leitura: o trabalhador não considerava pagos por não ter conformado com aquele que tinha recebido.
Pode-se dizer que face ao montante que recebeu e o prejuízo eventualmente existente, não deveria assinar a mesma declaração.
(...)
Trata-se de uma remissão que se traduz uma causa de extinção das obrigações e na renúncia do credor de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte, revestindo, por isso, a forma de “contrato”, como claramente se preceitua no artigo 854º nº l do Código Civil, onde consta que o credor por remitir a dívida por contrato com o devedor, ou, tal como entende o Alto Tribunal de Última Instância, de uma questão de “quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida” que se prevê no disposto no artigo 776º do Código Civil e (no acórdão acima referido), de uns direitos disponíveis.
Seja que for o nome que se chama, visa a mesma declaração a produção dos efeitos de fazer extinguir a dívida do devedor e a reconhecimento definitivo de inexistência da prestação devida ao credor.
No caso sub judicio, com a declaração assinada, e uma vez que está cessada a relação laboral coma ré, impõe-se considerar que se encontra a quitação dos créditos e a ré não deve mais nada ao autor.”
15. Aliás, o Venerando Tribunal de Segunda Instância aderiu, também, no seu douto Acórdão de 19 de Janeiro de 2012, proferido no Processo n.º 216/2011, à mesma qualificação jurídica da “Declaração” assinada no Departamento da Direcção de Trabalho e Emprego;
16. Na fundamentação da Decisão e também na esteira da jurisprudência do TSI, andou bem o douto Tribunal a quo;
17. No tocante à questão fundamental da validade da declaração remissiva e a sua consequência jurídica, sabe-se que também é entendimento deste douto Tribunal de Recurso que a mesma é válida e extintiva de toda e qualquer compensação emergente da relação laboral3, Vejam-se, a este respeito, as conclusões resumidas no Acórdão do TSI, de 24 de Julho de 2008, no processo n.º 491/2007, que de seguida se transcrevem:
“1. A protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
2. Maiores razões proteccionistas do trabalhador já não são tão válidas quando não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
3. A remissão da dívida traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com o acordo do devedor.
4. A declaração do trabalhador, aquando da cessação de uma relação laboral, em que aceita uma determinada quantia para pagamento de créditos emergentes dessa relação e em que declara prescindir de quaisquer outros montantes, não deixa de consubstanciar valida e relevantemente uma declaração de quitação em que se consideram extintos, por recíproco pagamento, ajustado e efectuado nessa data, toda e qualquer compensação emergente da relação laboral, o que vale por dizer que todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho tinham sido cumpridas.”
18. Trata-se de uma remissão que se traduz numa causa de extinção das obrigações e na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte4, revestindo, por isso, a forma de “contrato”, como claramente se preceitua no artigo 854.º, n.º 1 do Código Civil, onde consta que o credor por remitir a dívida por contrato com o devedor, ou, tal como entende o Alto Tribunal de Última Instância, de uma questão de “quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida” que se prevê no disposto no artigo 776.º do Código Civil e, de uns direitos disponíveis;
19. Nestes termos, porque a declaração produz efeitos extintivos sobre a eventual dívida resultante das compensações por trabalho prestado em dias de descanso, deve o presente Recurso ser julgado improcedente, mantendo-se, na íntegra, o doutamente decidido em Primeira Instância;
Ainda concluindo,
20. As gratificações ou gorjetas recebidas pelos empregados de casino dos clientes não fazem parte do salário;
21. A retribuição ou salário, em sentido jurídico (laboral), encerra quatro elementos essenciais e cumulativos: é uma prestação regular e periódica; em dinheiro ou em espécie; a que o trabalhador tem direito por título contratual e normativo e que corresponde a um dever jurídico da entidade patronal; como contrapartida pelo seu trabalho;
22. No caso dos autos, estando em causa gorjetas comprovada mente oferecidas por clientes de casino, dependendo o seu recebimento do espírito de animus donandi de terceiros, estranhos à relação jurídico-laboral, nunca poderia o trabalhador ter exigido à sua entidade empregadora o seu pagamento, inexistindo aquela oferta por parte dos clientes;
23. O Recorrente sabia que a parte do rendimento respeitante às gorjetas dependia exclusivamente das liberalidades dos clientes de casino, nada podendo exigir à ora Recorrida a esse título caso essa parte do seu rendimento fosse zero;
24. Na Jurisprudência e Doutrina de Portugal, é entendimento maioritário que as gorjetas oferecidas pelos clientes não constituem parte do salário. E, na verdade, a única diferença relevante entre os dois sistemas é a circunstância de as regras/critérios de distribuição das gratificações/gorjetas serem definidas, em Macau, pela entidade empregadora, enquanto em Portugal, esses critérios/regras encontram-se definidas pelo membro do Governo responsável pelo sector do turismo, ouvidos os representantes dos trabalhadores;
25. Também em Portugal os trabalhadores dos casinos estão proibidos de fazerem suas, a título individual, as gorjetas recebidas, devendo depositá-las, após o recebimento, em caixa própria, sendo as ditas gorjetas distribuídas, posteriormente, pelos trabalhadores de acordo com os ditos critérios definidos por via legislativa;
26. Cremos que o facto de a definição dos critérios de distribuição das gorjetas caber, em Macau, à entidade empregadora não altera a natureza não salarial daquelas prestações, até porque, nem quando começou a trabalhar para a ora Recorrida, nem durante toda a relação contratual, o Recorrente alguma vez se interessou por esta questão, aceitando tais critérios sem questionar;
27. Dispõe o artigo 25.º, n.º 1 do RJRT que “Pela prestação dos seus serviços ou actividade laboral, os trabalhadores têm direito a um salário justo.”;
28. Salvo o devido respeito por opinião contrária, analisando a certidão de rendimentos do Recorrente, não se pode dizer que ao Autor não foi proporcionado um rendimento justo, maxime porque os rendimentos globais auferidos eram claramente superiores à média do rendimento/remuneração auferida por cidadãos de Macau com formação académica e profissional equivalente às suas que não trabalhassem em casino, os quais eram mais que bastantes para prover a uma vida digna e decente do Recorrente e sua família;
29. Deste modo, na esteira do entendimento do mais Alto Tribunal da RAEM, do Douto Tribunal Recorrido e, bem assim, da Doutrina e Jurisprudência maioritárias de Portugal, é também entendimento da Recorrida que: “As gratificações ou gorjetas recebidas pelos empregados de casino dos clientes não fazem parte do salário.”;
30. É, pois, forçoso concluir - como fez e bem o Tribunal a quo - que o rendimento dos trabalhadores dos casinos da STDM, proveniente das gorjetas concedidas pelos clientes, não pode ser qualificado como prestação retributiva e, desta forma, ser levado em linha de conta no cálculo de uma eventual indemnização que o ex-trabalhador, pudesse reivindicar da aqui Recorrida pelos dias de descanso semanal, anual e de feriados obrigatórios;
Ainda concluindo,
31. Andou bem a Douta Sentença do Tribunal a quo relativamente ao tipo de salário auferido pelo Autor, considerando-o salário diário;
32. Foi dado como provado - cfr. as alíneas c) e d) da douta matéria assente - que:
“c) No contrato de trabalho celebrada entre a Ré e o Autor, ficou acordado que o Autor ia receber em contrapartida do seu serviço, para além de uma dada importância diária como retribuição fixa, uma outra quantia variável...” - (realce nosso)
“d) A contrapartida fixa diária do Autor era, desde o início da relação até 30 de Abril de 1995 de HKD10.00; e desde 01 de Maio de 1995 até ao fim da relação laboral de HKD15.00” - (realce nosso);
33. Não se percebe, assim, como e sem qualquer fundamento, a pretensão do Recorrente, porquanto depois de ter sido acordado entre o trabalhador e a entidade patronal que a contrapartida pelo seu trabalho era de uma importância diária, tal como provado, não se vislumbra nem se aceita qualquer fundamentação sobre a consideração de que o A. auferia um salário mensal;
34. O Recorrente não apresenta suporte factual para sustentar a solução de direito que alega dever ser aplicada, pelo que deve a decisão recorrida ser mantida quanto a esta parte;
Ainda concluindo,
35. Admitindo a Recorrida, apenas por cautela e por hipótese, que de forma alguma se concede, a obrigação de indemnizar o ora Recorrente tendo em conta o valor das gorjetas oferecidas pelos clientes de casino, devem ser as seguintes as fórmulas aplicáveis para aferir das compensações adicionais eventualmente devidas:
i. Trabalho prestado em dias de descanso semanal:
1. DL 101/84/M: salário diário x0 (e não x1, porque uma parcela já foi paga);
2. DL 24/89/M: salário diário x1 (e não x2, porque uma parcela já foi paga);
3. DL 32/90/M: salário diário x0 (e não x1, porque uma parcela já foi paga);
ii. Trabalho prestado em dias de descanso anual:
1. DL 101/84/M: salário diário x0 (e não x1, porque uma parcela já foi paga);
2. DL 24 DL 24/89/M e DL 32/90/M: salário diário x0 (e não x1 ou x3, porque uma parcela já foi paga e porque a Ré não impediu a Autora de gozar quaisquer dias de descanso);
iii. Trabalho prestado em dia feriado obrigatório:
1. DL 101/84/M: salário diário x0. (e não x1, porque uma parcela já foi paga);
2. DL 24/89/M e DL 32/90/M: DL 24/89/M: salário diário x1 (e não x2, porque uma parcela já foi paga);
36. Subsidiariamente, caso se entenda que as fórmulas supra expostas não devem ser as adoptadas para o cálculo de uma eventual indemnização devida ao Recorrente, remete-se para as fórmulas adoptadas nos acórdãos do Tribunal de Última Instância, proferidos no âmbito dos Processos n.º 28/2007, 29/2007 e 58/2007, datados de 21 de Setembro de 2007, 22 de Novembro de 2007 e 27 de Fevereiro de 2008, respectivamente.
Em face de todo o exposto, deverá o presente Recurso improceder porque infundado e, em consequência, ser mantida em conformidade a douta Sentença recorrida, na parte em que absolveu a aqui Recorrida, fazendo-se desta forma e mais uma vez a devida Justiça.
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
- Durante o período compreendido entre 21/09/1990 e 19/07/2002, o Autor manteve uma relação de trabalho com a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L.. (A)
- A Ré nunca efectuou o pagamento de quaisquer importâncias a título de compensação pelo trabalho prestado pelo Autor durante os seus períodos de descanso semanal, férias e feriados obrigatórios. (B)
- No contrato de trabalho celebrado entre a Ré e o Autor, ficou acordado que o Autor ia receber em contrapartida do seu serviço, para além de uma dada importância diária como retribuição fixa, uma outra quantia variável vulgarmente designada por “gorjetas”. (C)
- A contrapartida fixa diária do Autor era, desde o início da relação até 30 de Abril de 1995 de HKD10.00; e desde 01 de Maio de 1995 até ao fim da relação laboral de HKD15.00. (D)
- As “gorjetas” não se destinavam, em exclusivo, aos trabalhadores que lidavam directamente com os clientes de casinos. (E)
- O Autor, não podia ficar com quaisquer “gorjetas”, que lhe fossem entregues pelos clientes do casino. (F)
- As “gorjetas” recebidas pelos empregados eram colocadas, por ordem da Ré, numa caixa destinada exclusivamente para esse efeito, e eram contadas diariamente por funcionários da Ré, sob vigilância da Direcção de coordenação de Inspecção e Coordenação de Jogos, a fim de serem distribui das de 10 em 10 dias aos diversos empregados consoante uma dada percentagem anteriormente fixada pela Ré. (G)
- Sobre os rendimentos incidiu imposto profissional nos termos que constou da certidão de rendimento de fls. 82, de cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (H)
- Desde o início da relação laboral até 19/0712002, o Autor recebeu da Ré como contrapartida da actividade laboral prestada, as seguintes quantias:
a) 1990 = MOP17, 596.00
c) 1991 = MOP77, 314.00
d) 1992 = MOP118, 946.00
e) 1993 = MOP128, 015.00
f) 1994 = MOP129, 406.00
g) 1995 = MOP136, 003. 00
h) 1996 = MOP179, 392.00
i) 1997 = MOP188, 022.00
j) 1998 = MOP191, 330. 00
k) 1999 = MOP161, 920. 00
l) 2000 = MOP170, 853. 00
m) 2001 = MOP167, 041. 00. (I)
- O autor prestou serviços em turnos conforme os horários fixados pela Ré. (J)
- Até 1998, o Autor trabalhava em ciclos contínuos de três dias:
- No primeiro dia, o Autor começava às 14:00 e interrompia às 18:00. Depois recomeçava às 22:00 e acabava às 2:00.
- No segundo dia, o Autor começava às 10:00 e interrompia às 14:00. Depois recomeçava às 18:00 e acabava às 22:00.
- No terceiro dia, o Autor começava às 06:00 e interrompia às 10:00. Depois recomeçava às 02:00 e acabava às 06:00.
- O ciclo renovava-se de três em três dias. (K)
- A partir de 1998, o Autor passou a trabalhar em ciclos contínuos de 9 dias:
- No primeiro, segundo e terceiro dias, o Autor começava às 07:00 e acabava às 15: 00.
- No quarto, quinto e sexto dias, a Autora começava às 23:00 e acabava às 07:00.
- No sétimo, oitavo e nono dias, a Autora começava às 15:00 e acabava às 23:00.
- O ciclo renovava-se de nove em nove dias. (L)
- A Ré nunca pagou quaisquer quantias ao Autor por conta dos dias de férias, descanso semanal e feriados que o mesmo não gozou enquanto permaneceu ao serviço da Ré. (M)
- O Autor, enquanto prestava serviço à Ré, trabalhava sob as ordens, direcção, instrução e fiscalização desta. (1º)
- Sem prejuízo da resposta dada ao quesito 7º, durante o período de duração da relação de trabalho com a Ré, o Autor não gozou quaisquer dos dias de descanso anual, de descanso semanal e de feriados obrigatórios. (2º)
- O A. gozou os seguintes dias de descanso não remunerados:
- O Autor gozou 9 dias de descanso no ano de 1993, 50 dia de descanso no ano de 1994, 64 dias de descanso no ano de 1995, entre os quais o feriado obrigatório de Cheng Ming e o correspondente ao dia de Implantação da República Popular da China, 17 dias de descanso no ano de 1996, 1 dia de descanso no ano de 1997,24 dias de descanso no ano de 1999, entre os quais o feriado obrigatório correspondente ao Dia de Portugal, 18 dias de descanso no ano de 2000, entre os quais o feriado obrigatório correspondente ao Dia comemorativo do Estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, 29 dias de descanso no ano de 2001, 35 dias de descanso no ano de 2002. (7º)
- Aquando da contratação, Autor e Ré acordaram que a retribuição seria paga à razão diária. (11º)
- Em 8 de Setembro de 2003, no âmbito do desfecho do processo administrativo que correu termos na DSTE, sob o n.º 1476/2002, o Autor assinou uma declaração nos seguintes termos e com o seguinte conteúdo:
Declaração
“Eu, A (titular do BIRM n.º XXX), relativamente à queixa contra a S.T.D.M., por esta não ter pago a compensação pelos dias de descanso, venho prestar a declaração seguinte:
Declaro que recebi, mediante o Departamento da Inspecção do Trabalho da Direcção de Serviços de Trabalho e Emprego, um cheque do Banco Nacional Ultramarino n.º MA806XXX, no valor de MOP12,808.65 e entendo que a importância recebida é toda a compensação pelos dias legais de descanso durante o período de trabalho paga pela Sociedade referida a mim conforme o resultado de análise no parecer sobre este caso da Direcção de Serviços de Trabalho e Emprego, pelo que confirmo a recepção deste valor sem dúvida”.
Declarante: (Assinatura)
Data: 8-9-2003
Os funcionário que confirma o pagamento
(assinatura) (14º)
***
III - O Direito
A sentença recorrida considerou que a declaração a que se refere a resposta ao quesito 14º tem o valor de quitação ou reconhecimento negativo da dívida. Por essa razão, absolveu a STDM do pedido. Absolvição que também estendeu aos danos não patrimoniais invocados pelo autor e à sanção compulsória peticionada.
No presente recurso, o recorrente, diferentemente, defende o seguinte por esta ordem:
- Que o autor não suspendeu a sua prestação de trabalho nos dias de feriado e descanso obrigatório;
- Que se verifica erro no julgamento da matéria de facto em relação aos às respostas aos quesitos 2º e 7º, a respeito dos dias de descanso que o autor terá ou não gozado;
- Que a declaração de fls. 225 dos autos não tem paralelo com o documento que o TUI teve subjacente no acórdão proferido no Proc. nº 27/2008 e que ela apenas corresponde a uma quitação da importância paga;
Depois disso, o recorrente explana o seu ponto de vista a respeito do conceito de salário, nomeadamente do salário justo, do “animus donandi” das gorjetas, da natureza mensal ou diária do salário, dos factores de multiplicação e do erro na subsunção dos factos.
Pois muito bem. Todo o acervo alegatório pode ter importância e merecer análise concreta deste TSI no presente caso. Porém, antes de tal o podermos concluir, importará que comecemos pela análise da questão que o recorrente erigiu em terceiro lugar: saber se a declaração tem valor extintivo da dívida.
Ora, tal questão foi já tratada nos tribunais da RAEM, inclusive pelo TUI. Veja-se o que este tribunal asseverou a propósito (Ac. do TUI de 30/07/2008, no Proc. nº 27/2008):
“A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor”, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.
4. Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade
Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ:
“Relacionada com a irredutibilidade encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações”.
Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.
5. Normas convencionais e declarações negociais. O princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador
O Acórdão recorrido considerou que o art. 6.º do RJRL não permitia o acordo das partes pelo qual a autora, trabalhadora, declarasse remitir a dívida para com a ré, tendo esta declaração violado o princípio de tratamento mais favorável dos trabalhadores.
E acrescentou o mesmo Acórdão, referindo-se ao princípio de tratamento mais favorável, ele “deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir”.
Na feliz síntese de BERNARDO LOBO XAVIER “o princípio do tratamento mais favorável, no plano da hierarquia das normas, significa que as normas de mais alto grau valem como estabelecendo mínimos, podendo ser derrogadas por outras subalternas, desde que mais favoráveis para o trabalhador. No plano da interpretação, na dúvida sobre o sentido da lei, deverá eleger-se aquele que seja mais benéfico para o trabalhador. Na aplicação no tempo, aplicar-se-ão imediatamente todas as regras do trabalho, no pressuposto de que, havendo um constante progresso social, as novas normas são mais favoráveis para o trabalhador, conservando este, ainda, as regalias adquiridas à sombra de anterior legislação”.
O art. 6.º do RJRL dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Prevalência de regimes convencionais São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”.
Esta norma prevê que as normas convencionais, estipuladas entre empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos, podem afastar o regime das normas legais desde que o regime convencional não seja menos favorável para os trabalhadores do que o regime legal.
Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.
O Acórdão recorrido invoca, ainda, em abono da sua tese o art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, que institui o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Tal preceito, no seu n.º 2 fere com a nulidade os actos e os contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos naquele diploma. Ora, nem nos autos está em causa qualquer acidente de trabalho ou doença profissional, nem a quitação operou qualquer renúncia a direitos da autora.
O art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é, pois, inaplicável.
Em suma, a autora não tem o direito que invocou, pelo que a acção estava condenada ao insucesso”
De acordo com esta autorizada posição, facilmente se alcança que a referida declaração, mais consentânea com uma quitação, tal como se pode ler no aresto, implica que o credor/autor da acção nada mais tenha a exigir do devedor, seja qual for a composição do salário.
Trata-se, de resto, de uma posição que noutras ocasiões temos já subscrito, não havendo razões para neste momento dela divergirmos. Veja-se, por exemplo, e por mais recentes, os Acs. do TSI lavrados nos Processos nºs. 265/2010 e 317/2010, ambos de 6/10/2011; 316/2010 e 318/2010, ambos de 28/07/2011, 233/2011, de 20/10/2011, entre outros. No mesmo sentido, ver ainda o Ac. de 29/09/2011, Proc. nº 490/2010.
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A sentença considerou que a referida declaração de fls. 225 constituía a prova do reconhecimento negativo de dívida, mas o recorrente considera não ser possível apelar ao aresto do TUI, porque a declaração que aquele alto tribunal teve por base não é igual à que aqui está em discussão, a qual apenas transmite a quitação da importância “paga”.
Bem. Efectivamente, a declaração a que se refere o quesito 14º difere de algumas que têm sido objecto de análise em situação similar em processos desencadeados por colegas deste recorrente. Enquanto algumas dessas declarações são muito claras, em virtude de literalmente expressarem a vontade do declarante ao dizer que nada mais tem a receber da STDM, ou que, com o recebimento da importância concreta, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e que, por isso, nenhuma outra quantia é pelo declarante exigível, a de fls. 225 é mais limitada no seu conteúdo.
Ainda assim, embora menos completa, a verdade é que não deixa de frisar expressamente que o valor do cheque recebido corresponde a “toda a compensação pelos dias legais de descanso….” (bold nosso). Isto é, não se mostra que tal documento fique confinado a uma simples quitação de determinado valor pago, mas vai mais além a ponto de o declarante ter implicitamente reconhecido nada mais ter a receber, porque o valor recebido correspondia à totalidade do montante compensatório devido pelos dias de descanso legais não gozados.
Neste sentido, a compensação recebida não pode deixar de ter efeitos extintivos da dívida, independentemente da noção que se tenha do salário, das partes que o compõem (se as gorjetas dele devem fazer ou não parte), da questão da sua natureza diária ou mensal e dos critérios ou factores de multiplicação no cálculo da compensação. Qualquer que fosse o resultado a que este tribunal chegasse sobre estas questões, o resultado decisório sempre seria o mesmo: o de confirmar o julgado pela 1ª instância nesta matéria. Por tal motivo, por inutilidade, damos por prejudicado o conhecimento delas.
*
É claro que, excluídas da compensação recebida, parece terem ficado duas outras questões que foram suscitadas na petição inicial:
- A dos danos que o autor disse ter sofrido (“lesão da personalidade física e psíquica do autor adveniente da violação do seu direito ao repouso e aos lazeres”, disse); e
- A do valor da sanção compulsória.
Segundo cremos, tais questões, por não terem sido expressamente incluídas no âmbito da compensação já paga pela STDM conforme a referida declaração, poderiam vir a merecer um tratamento autónomo, isto é, ser consideradas fontes de condenação, ao contrário do que o concluiu a sentença recorrida.
Todavia, estas questões não foram tema de sindicância expressa, nem nas alegações do recurso, nem nas respectivas conclusões, circunstância que acabou por limitar o seu objecto e que, por isso mesmo, impede o tribunal “ad quem” de qualquer pronúncia sobre elas, nos termos do art. 589º, nº3, do CPC.
Eis, assim, por que o recurso se tem que dar por improcedente.
***
IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
TSI, 06 / 12 / 2012
José Cândido de Pinho
Choi Mou Pan
Lai Kin Hong (vencido nos termos da declaração de voto que se junte)
Processo nº 788/2012
Declaração de voto de vencido
Vencido pois não vejo razão para alterar a minha posição já assumida na declaração de voto que juntei aos vários Acórdão do TSI, nomeadamente os Acórdãos tirados nos processos nºs 210/2010, 216/2011, 223/2010 e 252/2008, isto é, dada a natureza imperativa da norma do artº 6º do Decreto-Lei nº 24/89/M, um contrato mediante o qual se convencionaram as condições de trabalho aquém do mínimo da protecção dos trabalhadores não pode deixar de ser julgado nulo, por força do disposto no artº 287º do Código Civil, nos termos do qual, salvo excepção expressa em contrário resultante da lei, são nulos os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo.
RAEM, 06DEZ2012
Lai Kin Hong
1 Despacho Normativo n.º 24/89 que revogou o Despacho Normativo n.º 82/85, de 28 de Agosto junto à Contestação.
2 Vidé Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa supra citado.
3 Vide os Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância proferidos nos Processos nºs 207/2008, 249/2008, 335/2008, 380/2008, 407/2008 e 428/2008, todos de 18 de Setembro de 2008.
4 Vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol.II, Coimbra Almedina, 7.ª Edição, 1995, p. 203 e ss.
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