打印全文
Processo n.º 702/2012 Data do acórdão: 2012-11-29
(Autos de recurso penal)
  Assuntos:
  – art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal
  – objecto do processo
– art.o 18.o da Lei n.o 17/2009
– atenuação especial da pena
S U M Á R I O
1. Tendo o tribunal colectivo a quo já dado materialmente por provada toda a factualidade então descrita no libelo acusatório, factualidade acusada essa que, na falta de contestação escrita, constituiu exclusivamente o objecto probando do processo, não pode haver assim qualquer lacuna no apuramento, por aquele tribunal, desse objecto do processo, pelo que não pode ocorrer, in casu, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
2. Beneficiado o arguido recorrente da atenuação especial prevista no art.o 18.o da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, e porquanto não havendo razões plausíveis para atenuar-lhe mais especialmente a pena, sob a égide da cláusula geral do art.o 66.o do Código Penal, do tráfico de estupefacientes, já fica prejudicada a questão de pretendida redução da pena do mesmo crime em termos gerais do art.o 65.o do CP.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 702/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrentes: A (XXX) e B (XX)




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformados com o acórdão condenatório proferido a fls. 352 a 371 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR2-12-0038-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, vieram recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) o 3.o arguido A e a 4.a arguida B.
O 3.o arguido, aí condenado como autor material, na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, na pena de cinco anos de prisão, e de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o da mesma Lei, na pena de um mês de prisão, e, em cúmulo, na pena única de cinco anos e quinze dias de prisão, imputou ao Tribunal a quo o cometimento, na sua decisão penal emitida, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal vigente (CPP), devido à falta de apuramento, de entre as substâncias de estupefacientes por ele detidas e apreendidas nos autos, de qual a quantidade concreta delas destinada ao seu próprio consumo e de qual a quantidade destinada à cessão a outrem, para além de não ter deixado de apontar a esse Tribunal a violação, por não aplicação, do disposto no art.o 18.o da referida Lei, e/ou do preceituado no art.o 66.o, n.o 1, do actual Código Penal (CP), ou ainda, pelo menos, do estatuído no art.o 65.o, n.o 2, alínea e), do CP, aquando da medida da pena do crime do tráfico de estupefacientes (cfr. a motivação apresentada a fls. 402 a 417 dos autos).
Enquanto a 4.a arguida, condenada como autora material, na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei n.o 17/2009, igualmente na pena de cinco anos de prisão, assacou ao dito acórdão tão-só o excesso na medida da sua pena (cfr. a motivação constante de fls. 419 a 421 dos autos).
Aos recursos, respondeu o Ministério Publico (a fls. 430 a 435 e 436 a 438) no sentido de confirmação do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 464 a 465v), pugnando também pela improcedência dos dois recursos.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos legais e realizada a audiência de julgamento neste TSI, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que:
– o Tribunal Colectivo a quo deu materialmente por provada toda a matéria descrita no libelo acusatório então deduzido contra os quatro arguidos do mesmo processo subjacente à presente lide recursória, os quais não chegaram a apresentar contestação escrita;
– na audiência de julgamento então feita perante o Tribunal Colectivo a quo, o 3.o arguido A ora recorrente confessou integralmente e sem reservas os factos;
– segundo a matéria de facto tida por provada no acórdão impugnado, e na parte que ora interessa à decisão dos recursos:
– em 22 de Setembro de 2011, pelas 07:20 horas, o 3.o arguido A foi interceptado pelo pessoal da Polícia Judiciária na porta do quarto n.o 28047 do Hotel Venetian, e na sequência da revista feita ao seu corpo, foram encontradas diversas substâncias estupefacientes, as quais, mediante o exame laboratorial ulteriormente feito, vieram a revelar-se como contendo um total de 8,801 gramas (0,467 + 8,168 + 0,166) líquidos de Metanfetamina;
– as substâncias estupefacientes em questão foram adquiridas pelo 3.o arguido para serem consumidas por ele próprio numa pequena parte, e serem fornecidas a outrem na remanescente parte;
– as mesmas substâncias estupefacientes foram adquiridas pelo 3.o arguido a um indivíduo chamado “XX (XX)” de identidade não apurada no Interior da China, e trazidas para ele em Macau pela 4.a arguida ora também recorrente B;
– na sequência de diversos telefonemas feitos pelo 3.o arguido na presença do pessoal da Polícia Judiciária a tal senhor fornecedor “XX” para dizer a este que pretendia mais estupefacientes, tendo-se então combinado que o local da transacção fosse nas imediações do restaurante Mc’Donald da Porta do Cerco, o pessoal da Polícia Judiciária veio interceptar, às 15:20 horas do mesmo dia 22 de Setembro de 2011, junto à entrada do dito restaurante, a arguida B;
– e da revista feita ao corpo dessa arguida já nas instalações da Polícia Judiciária, foram encontradas diversas substâncias estupefacientes, as quais, mediante o exame laboratorial ulteriormente feito, vieram a revelar-se como contendo um total de 49,473 gramas (7,350 + 0,259 + 41,864) líquidos de Metanfetamina;
– essas substâncias estupefacientes foram adquiridas por essa arguida a um homem de identidade não apurada para, sob instruções do mesmo, serem trazidas para o local acima referido para serem entregues ao arguido A;
– o arguido A, com instrução secundária complementar, trabalhava como bate-fichas, com cerca de 30 mil patacas de rendimento mensal, e sem nenhuma pessoa a seu cargo;
– a arguida B, com instrução secundária elementar, trabalhava como caixeiro-viajante, com cerca de dois mil dólares de Hong Kong de rendimento mensal, e sem nenhuma pessoa a cargo;
– e ambos os arguidos são delinquentes primários.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O 3.o arguido começou por apontar à decisão penal condenatória o vício previsto na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, entretanto, para este TSI, em vão, porquanto:
– tendo o Tribunal Colectivo recorrido já dado materialmente por provada toda a factualidade então descrita no libelo acusatório, factualidade acusada essa que, na falta de contestação escrita pelos arguidos, constituiu precisa e exclusivamente o objecto probando do processo, não pode haver assim qualquer lacuna no apuramento desse objecto do processo, pelo que não pode ocorrer, in casu, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
– sendo outrossim certo que a comprovação judicial de que o 3.o arguido deteve dolosamente, no dia 22 de Setembro de 2011, um total de 8,801 gramas líquidos de Metanfetamina, com o fim de consumir ele próprio uma pequena parte e de ceder a remanescente parte a outrem, dá para sustentar a decisão penal ora recorrida que o condenou nomeadamente pela prática de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 (isto porque como, por exemplo, a metade ou meia parte de tais 8,801 gramas líquidos de Metanfetamina já excede certamente em muito cinco vezes a quantidade de 0,2 grama referida no Mapa, em anexo a essa Lei, da quantidade de referência de uso diário da Metanfetamina, então a grande parte desses gramas líquidos (como remanescente da pequena parte dos mesmos) excede-a seguramente mais ainda, e como tal, nunca poderia fazer com que o arguido ora recorrente pudesse “beneficiar” do tipo legal de tráfico de menor gravidade do art.o 11.o da dita Lei, pelo que ele ficou bem condenado sob a égide do art.o 8.o, n.o 1, da Lei).
O mesmo arguido pretendeu, subsidiariamente, a aplicação a seu favor do disposto no art.o 18.o da Lei n.o 17/2009.
Nesta parte do seu recurso, já procede, embora não em medida totalmente rogada pelo recorrente. Efectivamente, de acordo com a factualidade provada em primeira instância, ele auxiliou concretamente a Polícia Judiciária na captura da 4.a arguida (apesar de esta não ser o fornecedor/vendedor propriamente dito das substâncias estupefacientes em questão, mas sim um mero transportador a comando da pessoa fornecedora/vendedora).
Assim sendo, e considerando todas as circunstâncias fácticas já apuradas pelo Tribunal recorrido, é de passar a aplicar-lhe, em relação ao crime de tráfico de estupefacientes, e dentro da moldura legal especialmente atenuada de sete meses e seis dias a dez anos de prisão (cfr. as disposições conjugadas dos art.os 8.o, n.o 1, e 18.o da referida Lei, e do art.o 67.o, n.o 1, alíneas a) e b) do CP), e à luz dos padrões da medida da pena vertidos sobretudo nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o do CP, quatro anos de prisão (diversamente da pena de prisão rogada por este arguido na sua motivação de recurso a respeito desse delito, em período de tempo não superior a dois anos).
Beneficiado assim o recorrente da atenuação especial prevista no art.o 18.o da Lei n.o 17/2009, e porquanto não havendo razões plausíveis para atenuar-lhe mais especialmente a pena, sob a égide da cláusula geral do art.o 66.o do CP, do tráfico de estupefacientes, já fica prejudicada a questão de pretendida redução da pena do mesmo crime em termos gerais do art.o 65.o do CP.
Finalmente, procedendo ao novo cúmulo jurídico (da nova pena de quatro anos de prisão para o crime de tráfico, com a pena de um mês de prisão já achada pelo Tribunal recorrido para o crime de consumo de estupefacientes), é de impor ao recorrente, à luz do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, a pena única de quatro anos e quinze dias de prisão.
E agora a propósito do recurso da 4.a arguida, que pretende somente a redução, para quatro anos, do período da sua pena de prisão do crime de tráfico de estupefacientes, este Tribunal de recurso não pode satisfazer esse seu desejo, dado que atendendo em especial ao facto comprovado de ela ter trazido por duas vezes substâncias estupefacientes para Macau, na primeira das quais com um total de 8,801 gramas líquidos de Metanfetamina, e na segunda e última das quais com um total de 49,473 gramas líquidos de Metanfetamina, a pena de cinco anos de prisão já fixada no acórdão recorrido já não pode admitir mais margem para diminuição, se bem que esta recorrente tenha condições pessoais modestas e não tenha antecedentes criminais em Macau.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente provido o recurso do 3.o arguido A e totalmente improcedente o recurso da 4.a arguida B, passando a aplicar àquele arguido quatro anos de prisão pela autoria material de um crime consumado de trático ilícito de estupefacientes, p. e p. pelos art.os 8.o, n.o 1, e 18.o da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, e finalmente quatro anos e quinze dias de prisão única, resultante do cúmulo jurídico dessa pena de quatro anos de prisão com a pena de um mês de prisão já imposta no acórdão recorrido para um crime de consumo ilícito de estupefacientes do art.o 14.o da mesma Lei, também cometido por ele em autoria material.
Pagará o 3.o arguido 5/8 das custas do seu recurso, com dez UC de taxa de justiça correspondente.
Custas do recurso da 4.a arguida totalmente a cargo desta, com três UC de taxa de justiça, e mil e trezentas patacas de honorários a favor do seu Ilustre Defensor Oficioso.
Macau, 29 de Novembro de 2012.
___________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
___________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
___________________________
José Maria Dias Azedo (segue declaração de voto)
(Segundo Juiz-Adjunto)

Processo nº 702/2012
(Autos de recurso penal)



Declaração de voto


Embora subscreva a “redução” da pena imposta ao (3°) arguido A, (que, em nossa opinião, até podia ser mais acentuada), cremos que adequada não é a fundamentação invocada para tal decisão.

Com efeito, provado estando que o referido (3°) arguido colaborou com a Polícia Judiciária, possibilitando a captura da (4ª) arguida B, deu-se como verificada a situação prevista no art. 18° da Lei n.° 17/2009, atenuando-se especialmente a pena do (3°) arguido A.

Ora, estatui este comando legal que:

“No caso de prática dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º, se o agente abandonar voluntariamente a sua actividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela causado ou se esforçar seriamente por consegui-lo, auxiliar concretamente na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis, especialmente no caso de grupos, de organizações ou de associações, pode a pena ser-lhe especialmente atenuada ou haver lugar à dispensa de pena”.

E como o Vdo T.U.I. já teve oportunidade de afirmar, “para que seja possível accionar o mecanismo de atenuação especial ou dispensa da pena previsto no art.º 18.º da Lei n.º 17/2009, é necessário que as provas fornecidas sejam tão relevantes capazes de identificar ou permitir a captura de responsáveis de tráfico de drogas de certa estrutura de organização, com possibilidade do seu desmantelamento”; (cfr., o Ac. de 21.07.2010, Proc. n.° 34/2010 e no mesmo sentido, Ac. de 08.10.2003, Proc. n.° 21 e 22/2003, de 15.10.2003, Proc. n.° 16/2003 e de 28.07.2004, Proc. n.° 20/2004).

Na verdade, e como sobre o “benefício” em questão considerou o Vdo T.U.I.: “também pode aplicar-se àquele que permita a identificação ou captura de simples indivíduos (um ou mais) que, pela sua particular danosidade social – designadamente, por aliciarem menores, pela dimensão do tráfico, pela duração da actividade criminosa, pelos meios utilizados, pela sua sofisticação - justifique a concessão do benefício ao delator”, sublinhando, porém, que, “não é o auxílio às autoridades na identificação ou captura de um qualquer traficante de drogas que pode justificar a redução ou isenção da pena, sem prejuízo de considerar a colaboração com as autoridades como uma circunstância atenuante simples na graduação da pena”, que, “à concessão da atenuação da pena, e particularmente a sua isenção, tem de corresponder um contributo significativo do agente de crimes de tráfico de drogas na repressão do tráfico de drogas, nomeadamente na descoberta e no desmantelamento de organizações ou redes que têm por fim traficar drogas”, notando, também que, “tal contributo do agente deve ser tão grande que, de alguma maneira, repara largamente o mal causado pelas próprias actividades criminosas”.

Nesta conformidade, (sendo que venho acompanhando o assim entendido) e não me parecendo que o caso dos autos integre a situação prevista no art. 18° da Lei n.° 17/2009, subscrevo apenas a redução da pena decretada ao (3°) arguido A.

Macau, aos 29 de Novembro de 2012
José Maria Dias Azedo





Processo n.º 702/2012 Pág. 14/14