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  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso do despacho da Senhora Secretária para a Administração e Justiça, proferido em 1 de Fevereiro de 2008, que lhe aplicou a pena de demissão.
Por Acórdão proferido em 29 de Novembro de 2012, o Tribunal de Segunda Instância decidiu julgar improcedente o recurso.
Inconformando com a decisão, vem A recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto do acórdão do mui douto Tribunal de Segunda Instância, que decidiu unanimemente negar provimento e consequentemente julgar improcedente o recurso contencioso interposto pelo recorrente.
2. A decisão recorrida padece de vício de forma, na vertente de insuficiência da instrução, fundamentação e ainda o de violação de lei por ofensa aos princípios da proporcionalidade e da justiça que a tornam anulável nos termos gerais de direito.
3. A conduta do recorrente não trouxe nenhum prejuízo para a Administração Pública da Região Administrativa Especial de Macau, designadamente para a Conservatória do Registo Predial, que nunca viu ser posta em causa a sua credibilidade como um importante sector da actividade local.
4. Não se percebe a razão para se considerar a conduta do agente como sendo gravosa, a ponto de se lhe aplicar a pena de demissão, estribada na ideia de que é de aplicar a demissão quando a gravidade da conduta inviabiliza a manutenção da relação funcional.
5. Assim, cremos que a conduta do recorrente não pode, objectivamente e de per si, produzir qualquer resultado prejudicial efectivo para a administração pública em geral e para o serviço em particular e muito menos considerar-se que o recorrente podia ou devia prever essa consequência.
6. Perante a alternativa da aplicação da pena de aposentação compulsiva e da pena de demissão, a escolha da última sem fundamentação válida, importa a invalidade da decisão.
7. Pese o Tribunal não possa substituir a Administração na concretização da medida da sanção disciplinar, isso não o impede de sindicar a legalidade da decisão punitiva sempre que esta ofenda critérios gerais de individualização e graduação estabelecidos na lei, ou se saia dos limites normativos correspondentes, ou não tenha levado em linha de conta as circunstâncias que militam contra ou a favor do agente.
8. Verifica-se pois, manifesta desproporção entre a sanção aplicada e a falta cometida, do que resulta que o despacho punitivo, ao ter escolhido a pena de demissão para sancionar a violação de um dever funcional, catalogando-a de falta de idoneidade moral para o exercício do cargo, viola o princípio da proporcionalidade na sua vertente de adequação e necessidade e do princípio da justiça.
9. Termos em que se sustenta que a decisão recorrida acabou por violar as normas dos artigos 316º números 1 alínea b) e 5, bem como o 283º, ambos do ETAPM, além de ter violado os princípios da proporcionalidade e da justiça.
10. Além dos vícios que se assacam a decisão recorrida, dir-se-á, que a mesma, padece igualmente dos vícios enumerados no recurso contencioso, por força da decisão recorrida ter aceitado na íntegra o parecer do Ministério Público.
11. A preterição da realização da audiência de interessados inquina o acto, por vício de forma, que aqui se invoca para os devidos efeitos legais, nomeadamente para efeitos do estatuído na alínea a) do n.º 1 do artigo 21.º do C.P.A.C.
12. Sendo que a audiência de interessados consubstancia uma manifestação lógica do princípio do contraditório, que visa assegurar uma discussão prévia no âmbito do procedimento através do confronto dos critérios e argumentos dos interessados em relação à decisão final.
13. Da leitura do despacho recorrido se depreende que a entidade recorrida não fez como lhe competia uma clara e correcta delimitação dos factos, misturando-os com questões de natureza jurídica.
14. Com isto não se pretende pôr em causa a liberdade de determinação dos factos, que compete à entidade recorrida, conforme resulta do nº 1 do artigo 86º do Código do Procedimento Administrativo.
15. Deste preceito legal resulta que o órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento.
16. Podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito, constituindo esse normativo a concretização do princípio do inquisitório ou da oficialidade.
17. Assim e em conformidade com essas considerações gerais aqui aduzidas e trazidas à colação, depois de devidamente compulsados os autos de processo disciplinar não se poderá deixar de afirmar que o despacho ora recorrido enferma do vício de violação de lei.
18. Na vertente da total desrazoabilidade no exercício de poder discricionário, conforme consta da alínea d) do nº 1 do artigo 21º do Código de Procedimento Administrativo Contencioso.
19. Na acusação deduzida contra o arguido, ora Recorrente, são lhe imputadas uma série de infracções, tais como a violação dos deveres de zelo e sigilo previstos no artigo 279º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
20. Aprovado pelo Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Setembro, com a agravante prevista na alínea d) do artigo 283º do referido código, ou seja, o conluio com outros indivíduos para a prática da infracção, nos termos do nº 1 do artigo 283º do ETAPM.
21. Com base nesta imputação, considerou a Senhora Secretária para a Administração e justiça que atendendo: à gravidade das infracções praticadas pelo arguido, à indignidade e falta de idoneidade moral para o exercício das funções, estão preenchidos os dispostos no nº 1 e nas alíneas h) e o) do nº 2 do artigo 315º, pelo que decidiu pela aplicação da pena de demissão.
22. Acontece que a decisão de condenar o arguido com a pena de demissão, teve por base unicamente a decisão final, devidamente transitada em julgado e, que, como se sabe, traduziu numa pena única e global de oito anos e seis meses de prisão efectiva.
23. Denotando-se uma clara e flagrante insuficiência (deficit de instrução) dos actos de instrução do processo disciplinar, com violação do chamado princípio da culpa, da livre convicção, entre outros.
24. Por conseguinte, tendo sido considerado a nível do processo penal determinadas factualidades, entendeu o Senhor Instrutor, seguir na mesma alínea dando por provado os factos ali considerados como assentes.
25. No entanto, resulta da lei uma obrigação de investigar nos termos do nº 1 do artigo 86º do Código do Procedimento Administrativo e do artigo 329º do ETAPM, que não foi cumprido no presente caso, na medida em que o Instrutor contentou-se com as provas produzidas a nível penal.
26. Assim, a falta de diligências reputadas necessárias para a constituição da base fáctica da decisão afectará esta, não só se tais diligências forem obrigatórias (acarretando, assim, a violação do princípio da legalidade), mas também se a materialidade dos factos não estiver comprovada, ou faltarem, nessa base, factos relevantes alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a administração poderia e deveria ter colhido (o que gera erro quanto aos pressupostos de facto).
27. Ou seja, as omissões, inexactidões ou insuficiências na instrução estão na origem de um deficit de instrução, que redunda em erro invalidante da decisão, decorrente não só da omissão ou preterição de diligências legais, mas também, de não se tomar em devida conta, na instrução, interesses que tenham sido carreados pelo interessado, ou factos que indispensáveis para a decisão do procedimento.
28. Ora, o Recorrente na defesa apresentada afirmou que de facto tinha na casa de morada de família, folhas com informações de alguns prédios, mas que tais prédios não faziam parte do leque dos prédios objecto de crime e que tais papéis se destinavam a utilização como rascunhos para sua filha menor.
29. Pergunta-se, então, qual foi a diligência de prova levado a cabo no sentido de se indagar da veracidade do elemento de prova trazido para os autos pelo Arguido?
30. Indagou-se junto de algum responsável da Conservatória ou dos demais funcionários, no sentido de saber se esta prática era comum entre os funcionários da referida casa?
31. O Recorrente na sua defesa advogou que todos os dados e informações guardados na Conservatória do Registo Predial são públicos e acessíveis, entre outras, uma das suas funções era precisamente revelar tais informações ao público em geral.
32. Com estas alegações era de esclarecer se efectivamente o Arguido disponibilizou tais elementos aos co-arguidos no processo-crime, sem ser através dos meios legalmente permitidos.
33. Ou seja, que o mesmo forneceu elementos para os seus co-arguidos sem ser através das chamadas buscas (Informações por Escrito) e/ou de Certidões.
34. Mais uma vez, se questiona, que diligências de provas é que foram realizadas no sentido de se apurar como é que o Recorrente forneceu tais elementos?
35. No âmbito do direito disciplinar, à semelhança do que acontece no direito penal ou processual penal, a lei dá ao julgador uma certa margem de manobras.
36. Todavia, tal princípio obedece a determinadas regras, sujeito a certos limites. Não há que confundir o grau de discricionariedade implícito na formação de juízo de valoração do julgador com o livre arbítrio.
37. Daí que se considere que não foram realizadas todas as diligências de prova necessárias para a boa decisão da causa, pelo que se entende que o despacho aqui recorrido padece do vício de deficit de instrução que se lhe assaca, para todos os legais efeitos.
38. Só após uma investigação exaustiva se poderá concluir que um determinado agente praticou uma infracção disciplinar e, que a mesma infracção é merecedora de uma pena.
39. Sendo que o facto voluntário na edificação deste conceito consubstancia-se na exteriorização de uma vontade consciente e livre a que se juntou, mais recentemente o elemento culpa.
40. É que do extenso rol de factos e infracções constantes do acto recorrido não se mostra provada a verificação do elemento subjectivo, para efeitos disciplinares.
41. Ou seja, não se provou que o Recorrente violou de forma grave e irreversível, os deveres atrás referidos e muito menos que esta violação tenha tornado absolutamente irreversível e inviável a sua continuação como servidor da Administração.
42. O Recorrente invoca a seu favor o facto de ter trabalhado na Função Pública durante 19 anos, 5 meses e 21 dias, obtendo classificações variáveis entre bom ou superior, sendo que nunca foi advertido ao longo desses anos de serviços na Administração Pública de Macau, onde de resto teve sempre um comportamento exemplar, constituindo indubitavelmente circunstância atenuante que não foi tida em conta, a quando da ponderação da medida concreta da pena a aplicar.

Contra-alegou a entidade recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
l.ª - O Recorrente foi condenado, com trânsito em julgado, na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão, como autor, na forma consumada, de 3 crimes de burla e 1 de peculato, p. e p., respectivamente, nos artigos 211.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), 196.º, alínea a), e artigo 340.º, n.º 1, do Código Penal;
2.ª - E, sendo um facto a existência de uma decisão penal condenatória, demonstrativa da gravidade dos factos praticados pelo Recorrente, porquanto atingidos bens e valores jurídicos protegidos pelo direito penal, a Entidade Recorrida no prosseguimento do interesse público que tem a seu cargo não deixou de a considerar na decisão que o puniu com pena de demissão;
3.ª - No ilícito penal pretende-se punir as ofensas intoleráveis dos valores ético-sociais ou interesses fundamentais da vida em sociedade;
4.ª - «O tipo legal do crime de peculato configura uma dupla protecção: por um lado, como um crime patrimonial, tutela bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação ou oneração ilegítima de bens alheios; por outro, como um crime de abuso duma função pública ou equiparada, tutela a probidade e fidelidade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração pública, ou, por outras palavras, a “intangibilidade da legalidade material da administração pública”, punindo casos de abusos de cargo ou função»;
5.ª - Por conseguinte, «o desvalor jurídico de natureza penal não pode deixar de relevar, no âmbito disciplinar como índice de qualificação da infracção, pelo alarme social que provoca e pela danosidade associada que, em regra, terá para a eficiência do serviço, a prática de uma falta que seja, ao mesmo tempo, qualificada como crime»;
6.ª - Ademais a condenação por determinados factos no processo criminal não deixa de implicar a prova desses factos no processo disciplinar – artigo 8.º, n.º 2 da Lei n.º 9/1999, artigo 7.º, n.º 4 do Código Civil, artigo 449.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e artigo 576.º do Código de Processo Civil;
7.ª - Ao contrário do que diz o Recorrente foram realizadas todas as diligências de prova necessárias para a boa decisão da causa, e bem assim aquelas por este solicitadas, como seja, a junção aos autos do processo disciplinar das gravações dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência do processo penal, pelo que no processo disciplinar não se detecta qualquer omissão que obstasse a uma decisão mais favorável por parte da Entidade Recorrida ao Recorrente ou que afectasse o correcto exame e a justa decisão do processo disciplinar;
8.ª - A Entidade Recorrida deu por assentes os factos que vieram a suportar a punição quando apreciou e valorou as provas que o processo disciplinar colheu;
9.ª - Como demonstrado e assente no processo disciplinar em causa, incluindo na fase de dedução da acusação e a apresentação da respectiva defesa, foi assegurado o princípio da audiência do interessado e o respectivo contraditório em termos da necessária intelegibilidade e eficácia;
10.ª - Ao contrário do que o Recorrente alega, é jurisprudência assente que: «O direito de audiência do interessado a que se refere o artigo 93.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, e que tem lugar concluída a instrução e antes de ser tomada a decisão final, não se aplica no processo disciplinar, já que neste processo a audiência do arguido está organizada de forma especial: este tem de ser obrigatoriamente ouvido no processo e contra ele é deduzida uma acusação à qual pode responder, indicando testemunhas e requerendo outros meios de prova»;
11.ª - Ademais constitui jurisprudência que: «o que resulta da lei é que a entidade com competência disciplinar, em abstracto, tanto pode punir o funcionário com a pena de demissão como com a pena de aposentação compulsiva, desde que se trate de infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional. ( ... ) Ou seja, a Administração não está obrigada a punir o funcionário com a pena de aposentação compulsiva se forem aplicáveis à infracção as penas de aposentação compulsiva ou demissão. A Administração pode escolher livremente entre as duas penas, excepto quando o funcionário não reúna os 15 anos de serviço ou se não puder ser aposentado, caso em que terá que ser punido com a pena de demissão»;
12.ª - A Entidade Recorrida no despacho punitivo, que acolhe o relatório final e a acusação, não deixou de proceder à qualificação jurídica do comportamento imputado ao arguido alvo de condenação penal, considerando como inviabilizador da manutenção da situação jurídico-funcional por ter demonstrado indignidade e falta de idoneidade moral para o exercício das funções públicas em que estava investido, anunciando o propósito da aplicação da pena expulsiva e citando as disposições legais aplicáveis;
13.ª - Não merece, ademais, qualquer reparo a qualificação jurídica das infracções imputadas ao Recorrente, porquanto este na qualidade de oficial dos registos e notariado da Conservatória do Registo Predial ao procurar imóveis, edificados ou meros terrenos, cujos proprietários tivessem falecido e não tivessem herdeiros, a fim de, usurpando-se a identidade dos proprietários por meio de documentos de identificação e procurações falsos, serem vendidos a terceiros, inviabilizou irremediavelmente a manutenção do vínculo funcional à Administração Pública, por quebra de confiança geral necessária ao exercício das funções em que estava provido, o que justificou a aplicação da pena disciplinar expulsiva;
14.ª - Na decisão punitiva foram ponderadas todas as circunstâncias atenuantes possíveis, não merecendo a pena aplicada qualquer censura dado o seu enquadramento nas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que as infracções se inseriram;
15.ª - A pena fixada corresponde pois ao grau de desvalor da conduta do infractor, tendo em conta todas as circunstâncias relacionadas com a prática da infracção. Daí que a pena de demissão aplicada ao Recorrente não deixa de ser proporcional à gravidade da conduta disciplinarmente ilícita;
16.ª - Não se mostra que a Entidade Recorrida, no espaço da sua autonomia decisória, tenha desrespeitado os princípios da proporcionalidade e da justiça.

E o Exmo. Procurador-Adjunto do Ministério Público emitiu o douto parecer, entendendo que não merece provimento o presente recurso.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Os Factos Provados
Nos autos foram dados como assentes os seguintes factos com pertinência:
- A Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça, por Despacho nº XX/2006, de XX de X, ordenou, nos termos do número 2 do artigo 318º, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, a instauração de um processo disciplinar contra A, 2º Ajudante, 3º Escalão, da Conservatória do Registo Predial.
- Em virtude do mesmo ter sido detido preventivamente no âmbito dos autos de acção penal que viria a correr os seus termos junto dos Tribunais da RAEM.
- E que culminaria com a sua condenação em cúmulo na pena de prisão efectiva de oito anos e seis meses, pela prática, em cumplicidade e na forma consumada, de três crimes de burla e, em autoria material e na forma consumada, de um crime de peculato.
- Realizadas as diligências de recolha de provas e de averiguações das respectivas provas, foi deduzida em 30 de Outubro de 2007, a competente acusação, tendo o arguido apresentado a sua defesa, em 26 de Novembro do mesmo ano, dentro do prazo fixado para o efeito.
- Concluídas as diligências de provas o processo foi remetido à Secretária para a Administração e Justiça, devidamente instruído por um relatório final e, em face da análise do relatório.
- Decidiu, a Senhora Secretária para Administração e Justiça, aplicar mediante proposta do Instrutor a pena de demissão, nos termos do artigo 322º do ETAPM, conjugado com o número 1 das Ordens Executivas nºs 11/2000 e 6/2005.
- Ordenando à Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça, que procedesse à notificação do arguido, do referido despacho, advertindo que o mesmo pode ser impugnado mediante recurso a interpor para este douto Tribunal, no prazo de 30 dias, nos termos em que se transcreve para facilitação de análise:
“A, segundo-ajudante, 3º escalão, da Conservatória do Registo Predial, abusando do acesso, aos registos dos imóveis no exercício de funções nesta Conservatória, procurou terrenos que se constituíam objectos de dois crimes de burlas praticadas nos anos de 2004 e 2005, factos que foram provados no processo penal e em relação aos quais foi instaurado o presente processo disciplinar (vide ponto 4 da página 2 a ponto 14 da página 5 da Informação/Proposta n.º X/DSAJ/DAT.2008).
Relativamente aos factos acima referidos, o instrutor nomeado para o efeito ouviu, nos termos da lei, a testemunha e o A, permitindo-o apresentar defesa em relação a acusação deduzida (vide páginas 212 a 221 do Processo n.º XX/DSAJ/DAT/2006).
Os feridos actos que o A praticou violam os deveres de zelo e sigilo previstos no artigo 279.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Setembro, constituindo circunstância agravante prevista na alínea d) (“o conluio com outros indivíduos para a prática da infracção”) do n.º 1 do artigo 283.º do ETAPM.
Atendendo a gravidade das infracções praticadas pelo A e a indignidade e falta de idoneidade moral para o exercício das funções, estão preenchidos os dispostos no n.º 1 e nas alíneas h) e o) do n.º 2 do artigo 315.º do ETAPM.
Nestes termos, aplico ao A a pena de demissão, nos termos do artigo 322.º do ETAPM, conjugado com o n.º 1 das Ordens Executivas n.ºs 11/2000 e 6/2005.
Cabe à Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça notificar o Sr. A do presente despacho, que pode ser impugnado mediante recurso a interpor para o Tribunal de Segunda Instancia, dentro do prazo de 30 dias.”
- Mais se provou em sede de instrução que o Recorrente é 2º ajudante, 3º escalão da Conservatória do Registo Predial e pertence aos quadros dos Serviços dos Registos e Notariado e que,
- De 3 de Outubro de 1995 (data de início de funções na função público) até 17 de Março de 2005 (dia anterior à data em que foi detido), a antiguidade do Recorrente na função pública correspondia a 19 anos, 5 meses e 21 dias,
- Variando a sua classificação de serviços de 1988 a 2004 entre bom ou superior, sendo que nunca tinha sido advertido ao longo desses anos todos de serviços na Administração Pública de Macau, onde de resto sempre teve um comportamento exemplar.
- É do despacho da Senhora Secretária para a Administração e Justiça supra que ora se recorre em virtude de se entender que o mesmo padece de vários vícios, designadamente o de forma, violação do princípio da proporcionalidade, entre outros como daremos conta a seguir.

3. O Direito
O recorrente colocou as seguintes questões:
- Falta de audiência do arguido;
- Falta de fundamentação; e
- Ofensa aos princípios da proporcionalidade e da justiça.

3.1. Falta de audiência
Alega o recorrente que, antes da remissão do relatório final elaborado pelo Senhor Instrutor à Senhora Secretária para a Administração e Justiça para tomar decisão, devia o recorrente ser de novo notificado no sentido de lhe dar a possibilidade de se pronunciar sobre a medida concreta da pena que o Senhor Instrutor entendeu propor, ao abrigo do art.º 93.º do Código do Procedimento Administrativo e sob pena de violar os chamados princípios do contraditório e da audiência prévia.
Ora, é verdade que, nos termos do art.º 93.º do CPA, os interessados têm o direito de ser ouvidos depois de concluída a instrução e antes de ser tomada a decisão final, com as excepções previstas nos art.ºs 96º e 97.º do mesmo diploma.
No entanto, há que ver o referido direito de audiência do interessado tem ou não aplicação no caso ora em apreciação.
Não se pode perder de vista que estamos perante um processo disciplinar, instaurado contra o ora recorrente pela prática dos factos que integram crimes de burlas.
Como é sabido, o processo disciplinar está expressa e minuciosamente regulado no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, concretamente nos art.ºs 276.º e seguintes, que prevêem também o procedimento disciplinar.
Ora, na instrução do processo, o instrutor deve proceder oficiosamente a todas as diligências necessárias à averiguação destinada a apurar a existência de infracção disciplinar e a determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e ouvir obrigatoriamente o arguido em declarações, podendo este requerer ao instrutor que promova as diligências que considere essenciais para a descoberta da verdade (cfr. art.º 329.º do ETAPM).
Realizadas as diligências previstas no art.º 329.º e no caso de entender que os factos constantes dos autos constituem infracção disciplinar e que não se verifica nenhuma das razões impeditivas da punição disciplinar, o instrutor deduz a acusação nos termos do n.º 2 do art.º 332.º do ETAPM.
E a acusação será notificada ao arguido, marcando-se-lhe um prazo de 10 a 20 dias para apresentar a sua defesa escrita, prazo este dentro do qual podem o arguido e o seu advogado constituído examinar o processo e apresentar a defesa escrita, em que deve o arguido expor os factos e as razões da sua defesa, bem como juntar documentos, indicar o rol de testemunhas e requerer as diligências de prova, sendo que a falta de resposta, dentro do prazo marcado, vale como efectiva audiência do arguido para todos os efeitos legais (art.ºs 333.º e 334.º do ETAPM).
Finda a instrução do processo, e mostrando-se junto ao mesmo o registo disciplinar do arguido, o instrutor elaborará um relatório completo e conciso donde conste a descrição dos factos que integram as infracções, sua qualificação e gravidade, importâncias que porventura haja a repor e seu destino, e bem assim a pena que entender justa, ou a proposta para que os autos se arquivem por ser insubsistente a acusação. E o processo, depois de relatado, será remetido no prazo de 24 horas à entidade que o tiver mandado instaurar, que por sua vez deve enviar, no caso de não ser competente para decidir, o processo a quem deve proferir a decisão (art.º 337.º do ETAPM).
Recebido e analisado o processo, a entidade competente pode ordenar a realização de diligências complementares de prova e proferir depois a decisão, que será notificada ao arguido (cfr. art.ºs 338.º e 339.º do ETAPM).
Ora, descrito assim sumariamente o procedimento administrativo disciplinar a propósito da audiência e da defesa do arguido, detecta-se logo que, neste tipo do processo, não há lugar à audiência do arguido antes da remissão do relatório elaborado pelo instrutor à entidade competente para tomar a decisão.
Daí que é de afastar a aplicação do art.º 93.º do CPA no processo disciplinar, em que o contraditório é garantido não só pela audiência obrigatória do arguido na fase instrutória, que pode requerer diligências e apresentar prova, mas também pela notificação da acusação deduzida, contra a qual pode o arguido apresentar a defesa escrita, expondo os factos e as razões da sua defesa, juntando documentos, indicando o rol de testemunhas e requerendo novamente diligências.
No mesmo sentido, de não aplicação do art.º 93.º do CPA no processo disciplinar, se pronunciou este Tribunal de Última Instância, que entendeu que “o direito de audiência do interessado a que se refere o artigo 93.º, n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo, e que tem lugar concluída a instrução e antes de ser tomada a decisão final, não se aplica no processo disciplinar, já que neste processo a audiência do arguido está organizada de forma especial: este tem de ser obrigatoriamente ouvido no processo e contra ele é deduzida uma acusação à qual pode responder, indicando testemunhas e requerendo outros meios de prova”.
“Além disso, se o instrutor ordenar novas diligências de prova, por sua iniciativa, após a notificação da acusação, designadamente, inquirindo testemunhas ou juntando documentos novos ou informações dos serviços que relevem em desfavor do arguido, tem de ouvir o arguido sobre estes novos elementos.” 1
No nosso caso concreto, o recorrente foi ouvido no procedimento e foi notificado da acusação deduzida pelo instrutor, contra a qual apresentou a defesa escrita, ficando assim cumprida a formalidade legal e assegurado o seu direito do contraditório.
É de concluir pela falta de fundamento da pretensão do recorrente.

3.2. Falta de fundamentação
Na tese do recorrente, o acto administrativo posto em causa está enfermado por vício de falta de fundamentação, redundante no chamado deficit de instrução, pois a entidade recorrida não fez, como lhe competia, uma clara e correcta delimitação dos factos, limitando-se a proferir a decisão punitiva com base unicamente na decisão proferida no processo penal, que o condenou com a pena de oito anos e seis meses de prisão.
Antes de mais, é de notar que não corresponde à verdade a afirmação do recorrente no sentido de a decisão administrativa ter por base unicamente a decisão penal, pois resulta dos autos que, para além desta decisão condenatória, foram ainda ouvidos o próprio recorrente e as testemunhas arroladas por ele, tendo até o Senhor Instrutor requerido ao Tribunal Judicial de Base as agravações dos depoimentos e declarações prestados na audiência de julgamento realizada no âmbito do processo penal (fls. 748 a 750 do processo instrutor).
Nos termos do art.º 86.º n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, o órgão competente para a decisão deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito.
Ao mesmo tempo, dispõe o art.º 329.º do ETAPM que o instrutor deve proceder oficiosamente a todas as diligências necessárias à averiguação destinada a apurar a existência de infracção disciplinar e a determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, ouvindo para tanto o participante, as testemunhas por este indicadas e as demais que julgar necessárias, procedendo a exames e outras diligências de prova. E pode o arguido requerer ao instrutor que promova as diligências que considere essenciais para a descoberta da verdade, requerimento este que apenas pode ser indeferido se o instrutor o declarar, por despacho fundamentado, dilatório por considerar suficiente a prova já produzida.
No caso vertente, o processo disciplinar foi instaurado em virtude do ora recorrente ter sido detido preventivamente no âmbito dos autos de acção penal que estava a correr os seus termos no Tribunal Judicial de Base, que culminou com a sua condenação, em cúmulo, na pena de prisão efectiva de oito anos e seis meses, pela prática, em cumplicidade e na forma consumada, de três crimes de burla e, em autoria material e na forma consumada, de um crime de peculato.
Ora, a decisão final proferida no processo penal, já transitada em julgado, constitui seguramente uma prova, legalmente admissível, essencial que contribui para apurar os factos e determinar a responsabilidade disciplinar do recorrente.
Ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 287.º do ETAPM, o procedimento disciplinar é independente do procedimento criminal. É a chamada autonomia do processo disciplinar relativamente ao processo penal.
No entanto, podendo ser instaurados pelos mesmos factos, os dois processos em causa estão intrinsecamente interligados, não só pela comunicação obrigatória ao foro competente (criminal) dos factos apurados no processo disciplinar que sejam também penalmente puníveis, com vista à instauração do procedimento criminal, pela comunicação também obrigatória ao serviço a que pertence o arguido do despacho de pronúncia ou equivalente proferido em processo penal, logo que transite em julgado, mas também pelo facto de a sentença que condene um funcionário, por qualquer crime, logo que transitada em julgado, determinar a instauração de procedimento disciplinar, com relação a todos os factos nela dados como provados, sendo que, neste último caso, o processo disciplinar será obrigatoriamente instruído com certidão da sentença penal (cfr. art.ºs 287.º e 288.º do ETAPM).
Daí resulta que as decisões proferidas no processo crime, tanto o despacho de pronúncia ou equivalente como a sentença final, não podem deixar de produzir efeitos no processo disciplinar.
E o mesmo deve suceder em relação à factualidade considerada provada na sentença condenatória já transitada em julgado, que também não pode deixar de ser atendida no processo disciplinar.
É neste sentido que apontam a doutrina e a jurisprudência de Portugal.
Ensina o Professor Eduardo Correia que a autonomia do processo disciplinar “não pode todavia afirmar-se em prejuízo da unidade superior dos órgãos do Estado. E assim, se uma absolvição em processo criminal, mesmo por falta de provas, não deve constituir caso julgado em processo disciplinar – atenta a diferente natureza da qualificação jurídica e o maior rigor dos requisitos da prova em processo criminal –, já a condenação do réu em processo criminal por certos factos não pode deixar de produzir o efeito de serem tais factos considerados provados em matéria disciplinar”.2
E “o efeito vinculativo da sentença criminal no domínio disciplinar – relativamente aos factos provados e à sua autoria, nunca à respectiva qualificação jurídica –, agora já não como efeito do caso julgado penal, antes a resultar da especial força probatória de que disfruta, enquanto documento autêntico, uma certidão da sentença criminal”.3
Face às considerações acima expostas, é de concluir que não merece censura a actuação da Administração que, depois de ter ouvido o próprio arguido e as testemunhas e feito as diligências necessárias de investigação, atendeu à factualidade dada como provada no Acórdão condenatório, já transitado em julgado, proferido no processo penal instaurado contra o mesmo arguido.

Alega ainda o recorrente que não foi levado em consideração o facto de num dos crimes ele ter sido condenado em regime de cumplicidade, que significa que a sua intervenção foi considerada pelo próprio Tribunal de relevância diminuta, pelo que se afasta a circunstância agravante.
Não corresponde à verdade a alegação do recorrente, já que, conforme as certidões dos Acórdão proferidos pelos tribunais (fls. 63 a 129 do processo instrutor), não obstante ter sido punido pelo Tribunal Judicial de Base como cúmplice de 3 crimes de burla qualificada, o recorrente acabou por ser condenado, pelo Tribunal de Segunda Instância, como co-autor dos mesmos crimes, condenação esta que foi confirmada pelo Tribunal de Última Instância. E quanto ao outro crime de peculato, o recorrente foi condenado, desde o início, na qualidade de autor.

Assaca o recorrente ao relatório final a “nítida contradição”, alegadamente verificada nos pontos 17 a 19 do relatório final, que têm o seguinte teor:
“17. Por outro lado, no plano de análise aparente, as informações reveladas pelo Arguido eram informações de registo dos terrenos, e, por força dos artigo 1.º, n.º 1 do artigo 99.º e n.ºs 2 e 3 do artigo 101.º do Código do Registo Predial, o conteúdo do registo predial do imobiliário encontra-se público relativa à sociedade, qualquer pessoa pode pedir, junto da Conservatória do Registo Predial, a informação por escrito ou certidão dum imóvel concreto por meio dos elementos básicos de identificação, e.g., o número da descrição predial, o endereço, etc., sabendo assim a situação jurídica dum determinado imóvel.
18. No entanto, ninguém pode pedir à Conservatória do Registo Predial a informação por escrito dos imóveis com características referidas no ponto 5 como elementos básicos de identificação, ou seja, não se pode pedir ao funcionário da Conservatória a informação por escrito ou certidão dos terrenos com a característica de “até altura actual, já há muito tempo não foram feitas nenhumas outras transmissões de propriedade ou outros direitos”.
19. Por isso, não são públicas as informações e seus elementos de registo predial sobre os imóveis com as características referidas no ponto 5 da presente acusação que foram obtidos pelo desempenho da função pública, pelo que o Arguido não devia revelar aos outros os elementos de registo predial referidos no ponto 10 desta acusação.”

A questão prende-se com o carácter público do sistema predial.
Ora, é verdade que qualquer pessoa pode pedir certidões dos actos de registo e dos documentos arquivados, mediante apresentação do pedido. E o pedido deve conter o número da descrição do prédio ou fracção autónoma a que respeite. Quando se tratar de prédio que se presuma não descrito, deve indicar-se a natureza do prédio, o número e data da respectiva planta cadastral, a sua denominação, a sua situação por referência à freguesia e ao lugar, rua e número de polícia ou confrontações, o artigo de matriz ou a menção de nela estar omisso e o nome do proprietário ou possuidor actual (art.ºs 99.º n.º 1 e 101.º do Código do Registo Predial).
E só os funcionários da conservatória podem manusear os livros e documentos, de harmonia com as indicações dadas pelos interessados (art.º 99.º n.º 2 do Código do Registo Predial).
Daí resulta que, a fim de obter certidão do registo respeitante a um determinado imóvel, o interessado deve indicar o número da sua descrição e, no caso de prédio que se presuma não descrito, deve oferecer elementos concretos susceptíveis e tendentes a identificar o prédio ou fracção autónoma.
Como se refere no ponto 18 do relatório final, não se pode pedir ao funcionário da Conservatória do Registo Predial a informação por escrito ou certidão dos terrenos, identificando-os com a característica de “até altura actual, já há muito tempo não foram feitas nenhumas outras transmissões de propriedade ou outros direitos”.
Acredita-se que foi neste sentido e parâmetro que se fala no ponto 19 do relatório do carácter não público das informações e elementos de registo predial sobre os imóveis com as características acima referidas.
E tal como se constata no Acórdão condenatório proferido pelo Tribunal de Última Instância no processo crime instaurado contra o ora recorrente e os outros arguidos, qualquer pessoa pode requerer a certidão dos registos de um determinado imóvel identificado, mas não pode pedir à Conservatória do Registo Predial os registos dos imóveis sem registos há muito tempo e muito menos ter acesso aos documentos utilizados para a efectivação dos últimos registos.
Não se vê verificada a contradição alegada pelo recorrente.
No caso vertente, se não fosse a intervenção do recorrente, na qualidade do funcionário da Conservatória do Registo Predial, ninguém teria conseguido informações e elementos de registo referentes aos terrenos indicados nos autos, já que não é possível obter tais informações sem ter indicado no respectivo pedido elementos básicos de identificação, tais como o número da descrição predial, o endereço, etc..

E é absurdo afirmar, tal como afirmou o recorrente, que não se mostra provado o elemento subjectivo com o qual actuou o recorrente, elemento este que se revela claramente nos factos considerados provados pelos tribunais e também se consta na acusação elaborada pelo instrutor, já que ficou provado que o recorrente agiu livre, deliberada e voluntariamente, tendo perfeito conhecimento sobre o plano dos outros arguidos, fazendo dolosamente análise das identidades dos proprietários, ajudando aqueles arguidos a fixar o alvo de burla, e para tal, aproveitando a sua profissão e o acesso ao arquivo da Conservatória, apropriou-se dos documentos autênticos no arquivo que servia de base do registo.

Resumindo: face aos elementos constantes dos autos, nomeadamente a factualidade dada como provada pelos tribunais, as diligências desencadeadas no processo instrutor com vista à averiguação dos factos, incluindo as requeridas pelo próprio recorrente, não se afigura existir o vício de deficit de instrução apontado pelo recorrente.
Improcede o argumento do recorrente.

3.3. Ofensa aos princípios da proporcionalidade e da justiça.
A questão suscitada prende-se com a medida concreta da pena.
Na óptica do recorrente, não foram levados em conta os elementos respeitantes ao seu tempo de serviço, que perfaz um total de 19 anos, 5 meses e 21 dias, durante o qual nunca foi advertido, tendo sempre um comportamento exemplar e obtendo classificações variáveis entre bom ou superior, que constitui indubitavelmente circunstância atenuante, que terá de ter relevo preponderante na escolha da pena, face à inexistência de circunstância de natureza agravante.
E verifica-se manifesta desproporção entre a sanção aplicada e a falta cometida, sendo que a conduta do recorrente não é gravosa e não trouxe nenhum prejuízo para a Administração Pública da RAEM, designadamente para a Conservatória do Registo Predial, que nunca viu ser posta em causa a sua credibilidade como um importante sector da actividade local, pelo que o despacho punitivo viola o princípio da proporcionalidade na sua vertente de adequação e necessidade e o princípio da justiça bem como as normas do art.º 316.º n.º 1, b) e n.º 5 e do art.º 283.º do ETAPM.
Pretende a fixação de uma pena disciplinar menos gravosa, in casu, a aposentação compulsiva ou outra de natureza meramente suspensiva.
Vejamos.

Desde logo, salienta-se que, tal como se constata no relatório final que propôs a aplicação da pena de demissão, a Administração não deixou de ponderar os elementos indicados pelo recorrente, tanto o seu tempo de serviço como as classificações obtidas (ponto 2 do relatório).
Por outro lado, a Administração considera verificada a circunstância agravante prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 283.º do ETAPM, que se refere precisamente ao “concluio com outros indivíduos para a prática da infracção”.

O recorrente foi punido com a pena de demissão, nos termos do art.º 315.º n.º s 1 e 2, al.s h) e o) do ETAPM, que tem o seguinte teor:
Artigo 315.º
(Aposentação compulsiva ou demissão)
1. As penas de aposentação compulsiva ou de demissão serão aplicáveis, em geral, às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional.
2. As penas referidas no número anterior serão aplicáveis aos funcionários e agentes que, nomeadamente:

h) Violarem segredo profissional ou cometerem inconfidências de que resultem prejuízos materiais ou morais para a Administração ou para terceiro;

o) Forem condenados, por sentença transitada em julgado em que seja decretada pena de demissão ou, por qualquer forma, revelem indignidade ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções.
3. A pena de aposentação compulsiva só poderá ser aplicada se o funcionário ou agente reunir o período mínimo de 15 anos de serviço contados para efeitos de aposentação, na ausência do que lhe será aplicada a pena de demissão.

Ora, face à disposição legal acima transcrita, é de reparar que tanto a pena de aposentação compulsiva como a de demissão pode ser aplicada às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional, cabendo à Administração escolher livremente a pena que achar mais adequada, excepto quando o funcionário não reúna os 15 anos de serviço contados para efeitos de aposentação, caso em que se aplica obrigatoriamente a pena de demissão.4

Como se sabe, a inviabilização da manutenção da relação funcional é uma conclusão a extrair dos factos imputados ao arguido e que conduz à aplicação de uma pena expulsiva.
Tem-se entendido que o preenchimento dessa cláusula constitui tarefa da Administração a concretizar por juízos de prognose efectuados a que há que reconhecer uma ampla margem de decisão.5
Tendo em conta todos os elementos constantes dos autos, designadamente os factos ilícitos imputados ao recorrente, o circunstancialismo em que os mesmos foram praticados, a gravidade da sua conduta e a sua culpa, não se afigura merecer censura a consideração da Administração sobre a inviabilização da manutenção da relação funcional com o recorrente.
De facto, e tal como se constata no relatório final, o recorrente participou no plano de burla elaborado pelos outros arguidos, com perfeito conhecimento do mesmo, tendo feito pesquisa dos elementos guardados na Conservatória do Registo Predial e revelado as informações de registo predial, fazendo com que provocou imensos prejuízos patrimoniais aos proprietários verdadeiros dos terrenos e aos indivíduos que compraram ou prometeram comprar estes terrenos, causando preocupação por parte do público sobre a rigorosidade, credibilidade e segurança do sistema de registo predial e notariado, produzindo efeitos negativos ao prestígio da Administração Pública.
A conduta do recorrente, praticada com dolo intenso, revela também a falta de confiança, de dignidade e de idoneidade moral para o exercício das funções públicas.

E no que concerne à pena disciplinar, afirma-se que a sua aplicação, graduação e escolha da medida concreta cabem na discricionariedade da Administração.
E só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável – art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC.
Daí que a intervenção do juiz fica reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida pelo funcionário.
E este Tribunal de Última Instância tem entendido que a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.6
Para Ana Fernanda Neves, “O poder de acertamento da sanção é um poder discricionário da Administração, cujo controlo judicial do seu exercício já não é questionável, nem reduzido ao (inoperativo) desvio de poder e ao erro manifesto de apreciação, entendido que está hoje, aos seus limites intrínsecos, os princípios gerais da actividade administrativa, como os princípios da igualdade, da justiça, da imparcialidade e da proporcionalidade”.7

No caso vertente, não se nos afigura existir erro manifesto ou grosseiro da Administração ao considerar inviabilizada a relação funcional com a recorrida nem manifestamente desproporcional a pena de demissão concretamente aplicada.
Tendo em conta a gravidade da ilicitude dos factos e a culpa do recorrente, é de concluir pela bondade da decisão que lhe aplicou a pena de demissão.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça fixada em 5 UC.

Macau, 13 de Novembro de 2013

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho


1 Cfr. Ac. do TUI, de 13-9-2006, Proc. n.º 22/2006.
2 Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, p. 38 e 39.
3 Luís Vasconcelos Abreu, Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português Vigente: As Relações com o Processo Penal, Almedina, p. 116.
4 Neste sentido, cfr. Ac. do Tribunal de Última Instância, de 28 de Julho de 2004, Proc. n.º 22/2004.
5 Ac.s do Tribunal de Última Instância, de 15 de Outubro de 2003, Proc. nº 26/2003 e de 29 de Junho de 2005, Proc. nº 15/2005.
6 Ac. do Tribunal de Última Instância, de 15 de Outubro de 2003, Proc. nº 26/2003.
7 Ana Fernanda Neves, O princípio da tipicidade no direito disciplinar da função pública, em Caderno de Justiça Administrativa, nº 32, pág. 27, em anotação ao acórdão de 19 de Março de 1999 do Supremo Tribunal Administrativo.
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Processo n.º 23/2013