Processo n.º 715/2011 Data do acórdão: 2012-10-18 (Autos de recurso penal)
Assuntos:
– art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código Penal
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– tema probando
– empréstimo
– mútuo
– art.o 1070.o do Código Civil
– negócio real quod constitutionem
– entrega do dinheiro objecto do empréstimo
S U M Á R I O
1. Não tendo sido apresentada contestação escrita pelo arguido à acusação, todo o tema probando já se encontrou delimitado na matéria de facto então articulada no libelo acusatório, e tendo toda essa matéria fáctica acusada sido depois julgada como provada pelo tribunal recorrido, não pode haver assim qualquer lacuna no apuramento ou investigação da matéria de facto objecto do processo, o que equivale a dizer que não existe o vício de insuficiência para decisão da matéria de facto provada a que alude a alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal.
2. Sendo o empréstimo (ou rectius mútuo, com noção definida no art.o 1070.o do Código Civil) um negócio real quod constitutionem (porque a sua celebração pressupõe, como elemento essencial, a entrega do dinheiro ou coisa fungível objecto do empréstimo), a não entrega efectiva do dinheiro ou coisa fungível inicialmnte em mira implica necessariamente a não perfeição desse negócio jurídico.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 715/2011
(Autos de recurso penal)
Arguido recorrente: A
Arguido não recorrente: B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 328 a 336 dos autos de Processo Comum Singular n.° CR4-11-0197-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na concreta parte que inclusivamente o condenou como co-autor material de um crime consumado de usura para jogo, p. e p. pelo art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M, de 22 de Julho, conjugado com o art.o 219.o, n.o 1, do Código Penal (CP), na pena de nove meses de prisão, e na pena acessória de proibição de entrada nos casinos de Macau por dois anos, e com declaração de perda, nos termos do art.o 18.o da dita Lei e do art.o 101.o do CP, dos objectos e valores apreendidos nos autos (tais como fichas de jogo de casino e dinheiro em numerário, etc.) a favor da Região Administrativa Especial de Macau, veio o 1.o arguido A, então julgado à revelia por si consentida, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a absolvição dele do crime de usura para jogo com consequente devolução dos objectos e valores apreendidos a ele pertencentes ou, pelo menos, a devolução desses mesmos, com fundamento na alegada existência, na decisão judicial por ele impugnada, dos vícios de contradição insanável da fundamentação, de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para decisão da matéria de facto provada, bem como de falta de fundamentação da decisão de declaração de perda dos objectos e valores apreendidos, sendo certo que para ele tal declaração de perda, fosse como fosse, não deixaria de ter violado flagrantemente o disposto no art.o 101.o, n.o 1, do CP, ou, pelo menos, o princípio da proporcionalidade (cfr. a motivação de recurso apresentada a fls. 342 a 359, com conclusões reformuladas a fls. 402 a 404, dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o Digno Procurador-Adjunto (a fls. 362 a 366) no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Nesta Segunda Instância, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 377 a 378v), pugnando pelo reenvio do processo para novo julgamento por haver erro notório na apreciação da prova.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos legais e realizada a audiência neste TSI, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, decorrem os seguintes elementos, pertinentes à decisão do recurso:
– a sentença ora recorrida pelo 1.o arguido A encontra-se redigida em chinês, e dividida em quatro partes, a saber: o relatório, a fundamentação fáctica, a fundamentação jurídica e o dispositivo;
– no processo, para além do 1.o arguido, há ainda o 2.o arguido, chamado B, ambos julgados à revelia consentida pelos próprios, e condenados na mesma sentença como co-autores materiais de um crime de usura para jogo a um ofendido num casino em Macau;
– os dois arguidos não chegaram a apresentar contestação escrita à acusação;
– na fundamentação fáctica da sentença, o Tribunal seu autor começou por descrever como provados os factos então articulados na acusação pública então deduzida a fls. 231v a 234 dos autos (tais como, e na sua essência que ora interessa à solução do recurso: em 5 de Abril de 2006, cerca das 22:00 horas, num restaurante perto do Hotel Lisboa, o 1.o arguido, sob apresentação e na presença de duas senhoras de identidade não apurada, disse ao ofendido que podia emprestar um milhão de dólares de Hong Kong para este jogar em casinos, com condição de que fossem retirados 5% em cada montante de aposta como juros, tendo o ofendido concordado com isso; mais tarde, os dois arguidos e tais duas senhoras acompanharam o ofendido para ir a um casino na Taipa para jogar, tendo o 1.o arguido, dentro desse casino, entregue um milhão de dólares de Hong Kong em fichas de jogo ao ofendido para jogar; no decurso dos jogos, os dois arguidos e uma das ditas senhoras retiraram os juros acima convencionados; até dia 6 de Abril de 2006, cerca das 05:55 horas, os dois arguidos e tal senhora já retiraram, ao total, cerca de quarenta mil dólares de Hong Kong como juros), e afirmou depois, sob a epígrafe de factos não provados, que não ficou nenhum outro facto acusado por provar;
– e aquando da fundamentação probatória da sua livre convicção formada sobre a matéria de facto, o mesmo Tribunal afirmou, no último parágrafo da fundamentação fáctica da sua sentença, que a sua convicção se baseou “nos elementos constantes dos autos, na prova documental, no apreendido, e nas declarações dos dois arguidos e das testemunhas”;
– o mesmo Tribunal também referiu, logo no primeiro parágrafo da fundamentação jurídica da sua decisão condenatória penal, que: “A pedido dois dois arguidos feito a fls. 89 e 145, procedeu-se na audiência de julgamento à leitura do conteúdo das declarações prestadas pelos arguidos ao Ministério Público; o 1.o arguido reconheceu que emprestou dinheiro para jogo ao ofendido e que foi acordado em receber, com recompensa, 20% do dinheiro a ganhar nas apostas, e confessou o acusado uso de documento falso e a reentrada ilegal, mas negou que as condições do empréstimo fossem retirar 5% de cada aposta como juros; o 2.o arguido negou ter auxiliado o 1.o arguido a retirar juros”;
– do conteúdo das ditas declarações do 1.o arguido lidas na audiência de julgamento em primeira instância, não resulta que ele tenha reconhecido a feitura efectiva de empréstimo ao ofendido para jogar (cfr. concretamente o teor do auto de interrogatório no Ministério Público lavrado a fl. 85, do qual consta que o 1.o arguido dá aí por reproduzido o teor das declarações então prestadas à Polícia Judiciária, declarações essas que constam de fls. 25 a 26 (das quais consta que o arguido ora recorrente – que, porém, prestou aí declarações com uso de um nome falso – não chegou a entregar efectivamente ao ofendido o montante inicialmente prometido a este para jogar em casino) e de fls. 63 a 66 (das quais consta que o arguido ora recorrente utilizou tal nome falso)).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O recorrente começou por assacar à decisão concretamente por ele impugnada os três vícios aludidos no art.o 400.o, n.o 2, do CPP.
Desde logo, mostra-se infundada a alegada existência do vício de insuficiência para decisão da matéria de facto provada referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, dado que não tendo sido apresentada contestação escrita à acusação, todo o tema probando já se encontrou delimitado na matéria de facto então articulada no mesmo libelo, e tendo toda essa matéria fáctica acusada sido depois julgada como provada pelo Tribunal recorrido conforme o materialmente descrito na fundamentação fáctica da sua sentença, não pode haver assim qualquer lacuna no apuramento ou investigação da matéria de facto objecto do processo.
Por outra banda, também não se vislumbra alguma contradição insanável da fundamentação no juízo condenatório penal emitido pelo Tribunal recorrido a propósito do crime de usura para jogo, em virtude de a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida ser susceptível de conduzir congruentemente à condenação em sede do tipo legal de usura para jogo.
E agora no que se refere ao vício da alínea c) do n.o 2 do mesmo preceito processual penal, já assiste razão ao recorrente, porquanto do conteúdo das declarações então prestadas pelo recorrente na fase do inquérito e lidas na audiência então realizada em primeira instância, não decorre o afirmado pelo Tribunal recorrido no primeiro parágrafo da fundamentação jurídica da sentença impugnada no sentido de que o arguido recorrente “reconheceu que emprestou dinheiro para jogo ao ofendido”.
De facto, sendo o empréstimo (ou rectius mútuo, com noção definida no art.o 1070.o do vigente Código Civil) um negócio real quod constitutionem (porque a sua celebração pressupõe, como elemento essencial, a entrega do dinheiro ou coisa fungível objecto do empréstimo), a não entrega efectiva do dinheiro ou coisa fungível inicialmnte em mira implica necessariamente a não perfeição desse negócio jurídico.
Assim sendo, ao invocar tal “reconhecimento do empréstimo” como um dos elementos de suporte à formação da sua convicção sobre os factos, violou o Tribunal recorrido patentemente as legis artis vigentes na matéria de julgamento da matéria de facto, por ter referido e ponderado uma passagem tida como decorrente do conteúdo das declarações do recorrente prestadas na fase do inquérito e ulteriormente lidas na audiência de julgamento, mas realmente não constante das mesmas declarações.
Deste modo, é de reenviar o processo para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base, nos termos dos art.os 418.o, n.os 1 e 2, do CPP, mas só relativamente à matéria fáctica acusada respeitante ao crime consumado de usura para jogo por que os dois arguidos do processo se encontravam acusados como co-autores materiais (decisão de reenvio essa que, como se compreende naturalmente, é estensível ao 2.o arguido não recorrente, por força do art.o 393.o, n.o 3, do CPP).
Do acima analisado, resulta a desnecessidade de abordagem, por estar logicamente prejudicada, de todo o remanescente invocado e pretendido pelo 1.o arguido também como objecto do seu recurso, à volta da questão de declaração de perda dos objectos e valores apreendidos, por essa questão dever ser novamente julgada pelo Tribunal Judicial de Base em função do resultado de novo julgamento do crime de usura para jogo.
Entretanto, já fica intacta toda a decisão fáctica e jurídica já tomada na sentença recorrida a respeito dos crimes de uso de documento falso e de reentrada ilegal então também acusados ao 1.o arguido.
IV – DECISÃO
Ante o exposto, acordam em julgar parcialmente provido o recurso, reenviando o processo para novo julgamento em tribunal colectivo no Tribunal Judicial de Base, mas apenas relativamente à matéria fáctica então descrita na acusação a propósito do crime consumado de usura para jogo por que vinham acusados o 1.o arguido ora recorrente A e o 2.o arguido B.
Pagará o recorrente 1/2 das custas do recurso, por essa porção corresponder à parte do seu recurso ora julgada concretamente e na qual decaiu ele finalmente, com oito UC de taxa de justiça respectiva.
Fixam em oitocentas patacas os honorários do Ex.mo Defensor Oficioso do arguido não recorrente, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 18 de Outubro de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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