Processo nº 247/2010-A
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
Notificado do Acórdão deste TSI proferido em 18OUT2012, o recorrente BANCO DA CHINA, S.A., veio pedir, mediante o requerimento datado de 29OUT2012, o esclarecimento da ambiguidade existente entre o primeiro e o segundo ponto da decisão e a reforma da decisão quanto a custas substituindo-a por outra que condene as partes na proporção dos seus decaimentos, nos termos seguintes:
中國銀行股份有限公司, em inglês BANK OF CHINA LIMITED, Recorrente nos autos à margem identificados, notificado do douto Acórdão proferido nos autos acima identificados, vem, nos termos do artigo 572º do Código de Processo Civil, requerer o seu esclarecimento e reforma quanto a custas, nos termos e com os seguintes fundamentos:
1.O Recorrente interpôs recurso da decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base pedindo, a final, que a decisão recorrida fosse revogada: i) declarando-se a nulidade da sentença por não ter apreciado a questão da exceptio domini invocada pelo Embargado/Recorrente na contestação, ou caso assim não se entenda, ii) considerando-se que a Embargada não tem a posse da fracção penhorada.
2. O douto Acórdão da Segunda Instância decidiu "declarar nula a sentença na parte que omitiu o reconhecimento da executada como proprietária da fracção autónoma e passar a reconhecer a executada A como proprietária da fracção autónoma, designada por L4, do prédio descrito sob o n° 22770, inscrição n° 2533 na CRP".
3. Significa isto que o recurso do recorrente foi parcialmente procedente, isto é o .pedido de nulidade da sentença por omissão de pronúncia foi procedente.
4. No entanto, o douto Acórdão decidiu também "julgar improcedente o recurso interposto pelo exequente/ embargado, mantendo na íntegra a sentença recorrida".
5. Salvo o devido respeito, que é muito, parece-nos que é aqui que reside a ambiguidade da decisão, porquanto se a sentença da primeira instância é parcialmente nula não pode ser mantida na íntegra.
6. Mutatis mutandis se o pedido do Recorrente de nulidade da sentença por omissão de pronúncia foi procedente, não pode o recurso ser considerado integralmente improcedente.
7. O esclarecimento da decisão referida afecta directamente a decisão relativa à condenação em custas.
8. Com efeito, o douto Acórdão diz apenas "Custas pelo Recorrente.".
9. Contudo, o pedido do Recorrente relativo à nulidade da sentença foi julgado procedente,
10. e quanto a ele se pronunciou a Recorrida dizendo: "não há omissão de pronúncia" e pugnando pelo não provimento do recurso.
11. Pelo que a Recorrida ficou vencida em parte.
12. E nos termos do art.376°, nº2 do Código de Processo Civil, entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
13. Pelo que deveria o douto Acórdão ter condenado Recorrente e Recorrida na proporção dos respectivos decaimentos.
Pelo exposto, requer a V.Exas.:
i) que se dignem esclarecer a ambiguidade existente entre primeiro e o segundo ponto da decisão proferida; e
ii) a reforma da decisão quanto a custas, substituindo-a por outra que condene as partes na proporção dos seus decaimentos.
E mediante o requerimento datado de 06NOV2012, arguir a nulidade do Acórdão nos termos seguintes:
中國銀行股份有限公司, em inglês BANK OF CHINA LIMITED, Recorrente nos autos à margem identificados, notificado do douto Acórdão proferido nos autos acima identificados, vem, nos termos do artigo 571º, nº1 alínea d) e nº3 e do artigo 633°, nº1 do Código de Processo Civil, apresentar a sua Reclamação o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
1°
O Recorrente nas suas Conclusões - Alíneas A a D - diz expressamente o seguinte:
- Quando os embargos de terceiro são fundados apenas na posse, a legitimidade activa baseia-se numa presunção de propriedade que, como tal, pode ser i1idida, vindo o art. 298°, nº2 do CPC proporcionar, quer ao Exequente, quer ao Executado, a alegação e a prova de que o direito de fundo pertence a este. Provada a alegação, os embargos são improcedentes;
- Ora, o Embargado pediu, precisamente na contestação, o reconhecimento do direito de propriedade do Executado (vide artigo 68° da contestação) e dos factos dados como provados resulta que "A executada é proprietária da fracção autónoma, designada por L4 (...)";
- Este direito de propriedade é incompatível com a posse alegada pela Embargante: estamos, pois, perante a chamada exceptio dominii;
- Os doutos Juízes do Tribunal Judicial de Base deram como provada a propriedade da Executada; no entanto, não se pronunciaram sobre a questão levantada pelo Recorrente na contestação e que deviam ter apreciado: a improcedência dos embargos face à exceptio dominni invocada, uma vez que o direito de propriedade prevalece sobre o direito de posse.
2°
O Recorrente pediu, a final, a declaração de nulidade da sentença por não ter apreciado a questão da exceptio dominni invocada pelo Embargado/Recorrente na contestação.
3°
Sucede que o douto Acórdão do Tribunal de Segunda Instância também não se pronuncia sobre a questão da prevalência do direito de propriedade sobre a posse no caso concreto.
4°
Com efeito, o douto Acórdão do Tribunal de Segunda Instância vai apenas um pouco mais longe do que a decisão do Tribunal Judicial de Base ao reconhecer, e bem, a propriedade da Executada,
5°
mas não decide sobre a improcedência dos embargos com base na prevalência da propriedade sobre a posse.
6°
Com efeito, os Venerandos Juízes acordam em "declarar nula a sentença na parte em que omitiu o reconhecimento da executada como proprietária da fracção autónoma e passar a reconhecer a executada A como proprietária da fracção autónoma, designada por L4, do prédio descrito sob o n° 22770, inscrição n° 2533 na CRP" mas não retiram daí quaisquer consequências, abstendo-se assim de se pronunciar sobre a questão fulcral levantada na Contestação dos Embargos e sobejamente desenvolvida nas Alegações de Recurso.
7°
Tal resulta, salvo o devido respeito, de uma interpretação errada do que os Venerandos Juízes desse Tribunal entendem ser a "estratégia" do Recorrente.
8º
É evidente que se o douto Tribunal de Segunda Instância dúvidas não tem de que a Embargante/Recorrida actuou com corpus e animus sobre a fracção autónoma, dúvidas também não tem o Recorrente de que aquela merecerá tutela possessória e tem legitimidade para deduzir embargos de terceiro, nos termos do art. 292°, nºl do Código de Processo Civil.
9°
No entanto, mesmo neste caso - isto é mesmo considerando-se que a Embargante/Recorrida é para todos os efeitos legais possuidora - se ficou provada, como in casu ficou, a propriedade da Executada, os embargos teriam que improceder.
10°
Foi esta a questão que o Recorrente levantou na Contestação e que nunca foi apreciada.
11°
Verifica-se assim uma omissão de pronúncia.
12°
Por outro lado, vêm os Venerandos Juízes dizer, a páginas 16, que "a embargante goza também de direito de retenção sobre a fracção", desenvolvendo amplamente considerações sobre o tema.
13°
Sucede que na decisão da primeira instância ficou consignado que "a Embargante invocou e provou a posse, mas não o direito de retenção (...) ".
14°
Ora, a Embargante não recorreu da decisão da primeira instância e tal questão não é de conhecimento oficioso.
15°
Pelo exposto, não podia o douto Acórdão pronunciar-se sobre a questão mencionada uma vez que dela não devia tomar conhecimento.
Pelo exposto, requer a V. Exas. a declaração de nulidade do Acórdão proferido, nos termos do artigo 571°, nº1 alínea d) ex vi do artigo 633°, nº1 do Código de Processo Civil:
i) Por omissão de pronúncia, substituindo a decisão por outra que além de reconhecer o direito de propriedade da Executada se pronuncie sobre a prevalência desse direito de propriedade sobre a posse da Embargante/Recorrida; e
ii) Por excesso de pronúncia, devendo a questão do direito de retenção ser excluída da decisão.
Apreciemos.
No que diz respeito ao pedido mediante o requerimento datado de 29OUT2012, tem razão o arguente.
É verdade que o Banco da China arguiu a nulidade por omissão de pronúncia e a arguição acabou por ser julgada procedente pelo TSI.
Consequentemente o TSI conheceu a questão nos termos autorizados pelo artº 630º do CPC.
Não havendo decaimento total do recurso, é de alterar a parte dispositiva do Acórdão passando a declarar nula a sentença na parte que omitiu o reconhecimento da executada como proprietária da fracção autónoma e passar a reconhecer a executada A como proprietária da fracção autónoma, designada por L4, do prédio descrito sob o nº 22770, inscrição nº 2533 na CRP, julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo exequente/embargado, julgando improcedente o pedido da improcedência dos embargos formulado pelo recorrente na petição do recurso e mantendo na íntegra a sentença recorrida.
E consequentemente passa a condenar ambas as partes, recorrente e recorrida, a pagar as custas, na proporção de 20% a suportar pela recorrida e 80% pelo recorrente.
No que diz respeito ao pedido no requerimento datado de 06NOV2012, o arguente já não tem razão.
Ora, no Acórdão datado de 18OUT2012, foi tecida a seguinte fundamentação de direito:
1. Da nulidade de sentença
É verdade que o embargado Banco da China, ora recorrente, pediu na contestação aos embargos deduzidos pela embargante, ora recorrida, o reconhecimento do direito de propriedade da executada, nos termos permitidos no disposto no artº 298º/2 do CPC.
É também verdade que falta à sentença recorrida a pronúncia expressa na parte dispositiva do reconhecimento do direito de propriedade do executado, apesar de ter sido dado como facto assente que a executada A é proprietária da fracção autónoma em causa.
Por força da regra de substituição consagrada no artº 630º do CPC, é de reconhecer que a executada é proprietária da fracção autónoma em causa.
Todavia, conforme iremos expor infra na apreciação da questão da posse reivindicada pela embargante, o tal reconhecimento em nada afecta a posse da embargante.
Então passemos logo a debruçarmo-nos sobre a questão da posse da embargante.
2. Da insusceptibilidade de o contrato-promessa de transmitir a posse
Lidas tanto a contestação como a motivação do presente recurso, verifica-se que a estratégia do embargado ora recorrente é tentar convencer o Tribunal de que caso seja reconhecido o direito de propriedade da executada sobre a fracção autónoma, os presentes embargos não podem deixar de ser julgados improcedentes porque o direito de embargar só pertence ao possuidor em nome próprio por este gozar da presunção de propriedade correspondente à sua posse e já não pertence ao mero detentor ou possuidor precário.
Estratégia essa que é bem demonstrada pelo recorrente ao dizer na sua motivação do recurso que “quando os embargos de terceiro são fundados apenas na posse, a legitimidade activa baseia-se numa presunção de propriedade.”.
Todavia, essa ideia na mente do recorrente só se apresenta parcialmente correcta.
Ao estabelecer o âmbito dos embargos de terceiro, o artº 292º do CPC dispõe que:
1. Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
2. Não é admitida a dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens realizada no processo de falência ou insolvência.
Para explicar a mens legislatoris subjacente ao artº 351º do Código Civil português, que corresponde ao nosso acima citado artº 292º, o Conselheiro Amâncio Ferreira citou o preâmbulo do D.L. nº 329-A/95 de Portugal, onde se diz que “permite-se, deste modo, que os direitos substanciais atingidos ilegalmente pela penhora ou outro acto de apreensão judicial de bens possam ser invocados, desde logo, pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva da posse teve lugar, em vez de o orientar necessariamente para a propositura da acção de reivindicação – por esta via se obstando, no caso de a oposição de embargos se revelar fundada, à própria venda dos bens e prevenindo a possível necessidade de ulterior anulação desta, no caso de procedência da reivindicação”.
Cremos ser a mesma razão de ser subjacente à feitura do nosso artº 292º.
Assim, de acordo com estatuído no artº 292º/1, podem recorrer aos embargos de terceiro não só o possuidor que goza da presunção da titularidade de propriedade do bem, como também o titular de qualquer direito incompatível com a realização da diligência judicialmente ordenada ou o âmbito da diligência.
In casu, ficou provado que:
* A embargante e a executada celebraram um contrato, nos termos do qual a primeira prometeu comprar e a segunda prometeu vender a fracção autónoma em causa;
* A embargante pagou a totalidade do preço da fracção à executada e esta lhe entregou a fracção;
* Após a entrega da fracção, a embargante começou a pagar as despesas do condomínio e a renda e a contribuição predial urbana relativa à fracção; e
* A embargante executou obras de beneficiação na fracção.
Ante essa factualidade, interessa apurar se a embargante pode invocar a posse alegadamente ofendida pela penhora como fundamento da tutela possessória.
Em princípio, o contrato-promessa de compra e venda de uma coisa é um mero contrato obrigacional e não de per si translativo da propriedade da coisa.
Todavia, há situações em que à celebração do contrato-promessa de compra e venda se seguem o pagamento da totalidade do preço e a entrega da coisa, e o promitente comprador age como se fosse o verdadeiro proprietário.
Nesse sentido, podemos citar as observações feitas pelo Prof. Antunes Varela na anotação ao artº 1252º do código de 1966, onde o Mestre ensina que:
O contrato-promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário (cfr. os acórdãos do S. T. J., de 29 de Março de 1968, de 15 de Janeiro de 1974 e de 29 de Janeiro de 1980, respectivamente no B. M. J., n.º 175, págs. 272 e segs., n.º 233, págs. 173 e segs., e n.º 293, pãgs. 341 e segs.),
São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v. g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse.
Ora, na esteira dessas doutas observações e tendo em conta a factualidade provada na primeira instância, dúvidas não temos que a embargante actua com corpus e animus sobre a fracção autónoma e consequentemente merece a tutela possessória.
Ex abundantia, tendo em conta a especificidade do caso em apreço, para além da tutela possessória, a embargante goza também de direito de retenção sobre a fracção, pois à luz do artº 745º/1-f) do Código Civil, o beneficiário da promessa de transmissão que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte.
Genericamente falando, o direito de retenção é o direito do credor, que detém ou possui um bem pertencente ao devedor, de recusar a entrega do bem enquanto não for satisfeito o seu crédito.
Nas situações específicas previstas no artº 745º/1-f) do Código Civil, isto é, nos casos em que o promitente comprador que goza do direito de retenção, esse direito garante não só o pagamento da indemnização devida por incumprimento, mas também o cumprimento contratual em espécie, e portanto o direito de retenção é incompatível com a adjudicação ou a venda da coisa retida, na sequência da penhora que sobre ela tenha incidido – nesse sentido cf. Amância Ferreira, op. cit. Pág. 281.
Assim sendo, mesmo por via da segunda hipótese prevista no artº 292º/1 do CPC, isto é, enquanto titular do direito incompatível com a penhora, a embargante merece tutela possessória.
Finalmente ou mais uma vez ex abundantia, convém citar aqui os Doutos ensinamentos do Prof. Orlando de Carvalho para afastar a tese restritiva defendida pelo embargado ora recorrente, no sentido de que, quando os embargos de terceiro são fundados apenas na posse, a legitimidade activa de quem pretende deduzir embargos de terceiro tem de se basear numa presunção de propriedade ou de outro direito real de gozo.
Diz o Saudoso Professor:
“Tem sido defendido que só se pode possuir em termos de direitos reais de gozo, não de direitos reais de garantia nem de direitos reais de aquisição. O que estaria correcto se o poder fáctico ou empírico que a posse implica fosse necessariamente um poder de uso ou (e) de fruição do bem. Mas não é assim. Esse poder tem, decerto, de ser um poder de facto, uma disponibilidade empírica sobre a coisa de que possa inferir-se uma vontade de a ter a título de uma margem maior ou menor de disponibilidade jurídico-real (ou dominial, lato sensu), mas não um poder fáctico de utilização ou (e) fruição sensu stricto. Daí que só possa possuir-se em termos de jura in re que conferem poderes de facto sobre a coisa, o que não ocorre apenas com os direitos reais de gozo. Ocorre também com certos direitos reais de garantia ou seja, com o direito de penhor e o direito de retenção. Sem embargo de não se presumir o pacto anticrético (arts. 671º, al. b), e 758.º e 759.º, n.º 3), é claro que a coisa fica na disponibilidade empírica do retentor ou do credor penhoratício (arts. 669.º e segs. e 754.º; mesmo quando no penhor é entregue a terceiro, este age como representante do credor penhoratício ou, pelo menos, como seu «servidor possessório»). A existência de posse parece-nos, nesses casos, indiscutível, e é o que a lei confirma, ao estabelecer que o credor penhoratício tem o direito «de usar, em relação à coisa empenhada, das acções destinadas à defesa da posse, ainda que seja contra o próprio dono» (art. 670.º, al. a)- o que, por força dos arts. 758.º e 759.º, n.º 3, vale também para o retentor. – cf. Orlando de Carvalho, in RLJ, nº 3781.
Na esteira do que defende o Professor, cremos que quando os embargos de terceiro são fundados apenas na posse, a legitimidade activa do embargante pode também basear-se na circunstância de o embargante possuir o bem nos termos de direitos reais de garantia e de direitos reais de aquisição.
O que justamente sucede in casu.
Pelo que fica exposto, é de concluir que o facto de a executada ser proprietária da fracção autónoma em nada se mostra incompatível com a posse da embargante ora por nós confirmada nos termos supra.
Sem mais delonga, é de julgar improcedente esta parte do recurso.
Tal como vimos na fundamentação transcrita, o Acórdão reconheceu que a executada é proprietária da fracção autónoma em causa, e concluiu que o simples facto de a executada ser proprietária da fracção autónoma em nada se mostra incompatível com a posse da embargante por nós confirmada nos termos consignados no Acórdão.
Inexiste a alegada omissão de pronúncia, pois o Acórdão acabou por manter a posse reconhecida na primeira instância à embargante.
Quanto ao alegado excesso da pronúncia, também não tem rezão o arguente.
Pois diz o Acórdão que:
Ex abundantia, tendo em conta a especificidade do caso em apreço, para além da tutela possessória, a embargante goza também de direito de retenção sobre a fracção, pois à luz do artº 745º/1-f) do Código Civil, o beneficiário da promessa de transmissão que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte.
Genericamente falando, o direito de retenção é o direito do credor, que detém ou possui um bem pertencente ao devedor, de recusar a entrega do bem enquanto não for satisfeito o seu crédito.
Nas situações específicas previstas no artº 745º/1-f) do Código Civil, isto é, nos casos em que o promitente comprador que goza do direito de retenção, esse direito garante não só o pagamento da indemnização devida por incumprimento, mas também o cumprimento contratual em espécie, e portanto o direito de retenção é incompatível com a adjudicação ou a venda da coisa retida, na sequência da penhora que sobre ela tenha incidido – nesse sentido cf. Amância Ferreira, op. cit. Pág. 281.
Assim sendo, mesmo por via da segunda hipótese prevista no artº 292º/1 do CPC, isto é, enquanto titular do direito incompatível com a penhora, a embargante merece tutela possessória.
Finalmente ou mais uma vez ex abundantia, convém citar aqui os Doutos ensinamentos do Prof. Orlando de Carvalho para afastar a tese restritiva defendida pelo embargado ora recorrente, no sentido de que, quando os embargos de terceiro são fundados apenas na posse, a legitimidade activa de quem pretende deduzir embargos de terceiro tem de se basear numa presunção de propriedade ou de outro direito real de gozo.
Diz o Saudoso Professor:
“Tem sido defendido que só se pode possuir em termos de direitos reais de gozo, não de direitos reais de garantia nem de direitos reais de aquisição. O que estaria correcto se o poder fáctico ou empírico que a posse implica fosse necessariamente um poder de uso ou (e) de fruição do bem. Mas não é assim. Esse poder tem, decerto, de ser um poder de facto, uma disponibilidade empírica sobre a coisa de que possa inferir-se uma vontade de a ter a título de uma margem maior ou menor de disponibilidade jurídico-real (ou dominial, lato sensu), mas não um poder fáctico de utilização ou (e) fruição sensu stricto. Daí que só possa possuir-se em termos de jura in re que conferem poderes de facto sobre a coisa, o que não ocorre apenas com os direitos reais de gozo. Ocorre também com certos direitos reais de garantia ou seja, com o direito de penhor e o direito de retenção. Sem embargo de não se presumir o pacto anticrético (arts. 671º, al. b), e 758.º e 759.º, n.º 3), é claro que a coisa fica na disponibilidade empírica do retentor ou do credor penhoratício (arts. 669.º e segs. e 754.º; mesmo quando no penhor é entregue a terceiro, este age como representante do credor penhoratício ou, pelo menos, como seu «servidor possessório»). A existência de posse parece-nos, nesses casos, indiscutível, e é o que a lei confirma, ao estabelecer que o credor penhoratício tem o direito «de usar, em relação à coisa empenhada, das acções destinadas à defesa da posse, ainda que seja contra o próprio dono» (art. 670.º, al. a)- o que, por força dos arts. 758.º e 759.º, n.º 3, vale também para o retentor. – cf. Orlando de Carvalho, in RLJ, nº 3781.
Na esteira do que defende o Professor, cremos que quando os embargos de terceiro são fundados apenas na posse, a legitimidade activa do embargante pode também basear-se na circunstância de o embargante possuir o bem nos termos de direitos reais de garantia e de direitos reais de aquisição.
O que justamente sucede in casu.
Obviamente são considerações acerca duas alternativas, face à situação concreta, à disposição da embargante, para defender os seus interesses através da recusa da entrega da coisa, perante uma diligência ordenada no processo de que não é parte.
Aliás, é apenas com base na doutrina, citada no Acórdão, do Professor Antunes Varela que preconiza a posse por parte do promitente-comprador que pagou a totalidade do preço, com entrega da coisa e com intenção de exercer sobre ela um verdadeiro direito de propriedade, o Acórdão já reconheceu à embargante a posse.
Assim sendo, inexiste o alegado excesso de pronúncia.
Improcede assim a arguição de ambas as nulidades mediante o requerimento datado de 06NOV2012.
Tudo visto, resta decidir.
Pelo exposto, acordam em julgar procedente o pedido no requerimento datado de 29OUT2012 e passar a reformular a parte dispositiva do Acórdão nos seguintes termos:
* julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo exequente/embargado;
* declarar nula a sentença na parte que omitiu o reconhecimento da executada como proprietária da fracção autónoma e passar a reconhecer a executada A como proprietária da fracção autónoma, designada por L4, do prédio descrito sob o nº 22770, inscrição nº 2533 na CRP;
* julgar improcedente o pedido da improcedência dos embargos formulado pelo recorrente na petição do recurso, mantendo na íntegra a sentença recorrida; e
* condenar ambas as partes, recorrente e recorrida, a pagar as custas, na proporção de 20% a suportar pela recorrida e 80% pelo recorrente.
E julgar improcedente a arguição das nulidades mediante o requerimento datado de 06NOV2012.
Custas do incidente da arguição das nulidades pelo arguente, com taxa de justiça fixada em 8 UC.
Registe e notifique.
RAEM, 10JAN2013
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira
Ac. 247/2010-A-1