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Processo nº 927/2012 Data: 06.12.2012
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “burla (qualificada)”.
Erro notório na apreciação da prova.



SUMÁRIO

1. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.

É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

2. Não se vislumbrando “onde”, “como” ou “em que termos” terá o Colectivo a quo violado regras sobre o valor da prova tarifada, as regras de experiência ou legis artis, impõe-se a rejeição do recurso em que o recorrente apenas imputa à decisão recorrida o vício de “erro notório”.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 927/2012
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em audiência colectiva respondeu A, com os sinais dos autos, vindo a ser condenado pela prática em autoria material e na forma consumada de 1 crime de “burla (qualificada)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. a) do C.P.M., na pena de 3 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 750 a 750-v).

*

Inconformado, o arguido recorreu, em síntese, imputar à decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., fls. 763 a 767-v).

*

Respondendo, diz o Exmo. Magistrado do Ministério Público que a dita decisão não merece censura pois que se fez “uma criteriosa apreciação da prova”; (cfr., fls. 778 a 780).

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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer opinando também pela integral confirmação do Acórdão recorrido; (cfr., fls. 788).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Colectivo do T.J.B. foram dados como provados os factos elencados no Acórdão recorrido, a fls. 749 a 751, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou pela prática em autoria material e na forma consumada de 1 crime de “burla (qualificada)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. a) do C.P.M., na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.

Afirma – tão só – que a decisão recorrida padece do vício de “erro notório na apreciação da prova”.

Cremos porém que labora o recorrente em (manifesto) equívoco, valendo a pena aqui transcrever a douta Resposta do Exmo. Magistrado do Ministério Público que, de forma cristalina, rebate cabalmente os argumentos pelo recorrente apresentados.

Tem o teor seguinte:

“O arguido foi condenado neste juízo, na peno de 3 anos e 6 meses de prisão efectivo, pela prática de um crime de burla p. e p. no art. 211 n 1 e n 4 a), e art 29 n 2 CPM, crime esse perpetrado em 2007.
Inconformado coma sua condenação, dela veio interpor o presente recurso, alegando ter existido erro notório na apreciação da prova ( art. 400 n.2 CPM).
E funda este seu convencimento no facto de o ofendido ter prestado declarações contraditórias, e que constam do processo, sendo que o tribunal não terá atendido às declarações mais recentes e que eram notoriamente mais favoráveis ao arguido.
Por um lado, o ofendido destes autos, B prestou, em 1 de Agosto de 2007, declarações para memória futura, no Juízo de Instrução Criminal, comprometedoras para o arguido, e que em parte, contribuíram para a sua condenação,
Por outro lado, o arguido juntou aos autos duas declarações escritas do mesmo ofendido, uma feita no Hong Kong Home Affairs Department e datada de 28 de Maio de 2012, e outra reconhecida por "notário internacional de Hong Kong", datada de 18 de Julho, declarações essas contraditórias e opostas com as prestadas para memória futura e em que isenta de responsabilidade o recorrente, atribuindo-as a um outro co-arguido, entretanto já falecido.
E é justamente por o tribunal ter "desprezado" estas mais recentes declarações que o recorrente entende ter existido erro notório na apreciação da prova.
Pretende assim, o recorrente por em pé de igualdade, prova antecipada, produzida perante autoridade judiciária de Macau e meras declarações prestadas perante entidades privadas ou mesmo públicas de outros ordenamentos jurídicos.
Em processo penal, e para o que ao presente recurso interessa, vigoram três importantíssimos princípios, consagrados na lei.
O primeiro está plasmado no art. 114 CPPM atribuindo ao julgador a livre apreciação da prova, assente nas regras da experiência comum e na sua livre convicção.
Naturalmente que a lei não atribui ao julgador um poder arbitrário, estabelecendo a este principio algumas restrições, nomeadamente quanto ao valor probatório de documentos autênticos ou autenticados, ao caso julgado, à confissão integral e sem reservas em audiência de julgamento ou mesmo à prova pericial.
Mas, o que este princípio consagra é a liberdade de julgamento do juiz, liberdade essa assente essencialmente, nos seus conhecimentos científicos e experiência pessoal
O segundo principio, que está consagrado no art. 336 CPPM, impõe que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
Tendo o depoimento para memória futura do ofendido sido lido na audiência de julgamento, nos termos do disposto do art. 337 n. 2 a ) CPPM, obviamente que o mesmo foi tomado em consideração para a obtenção de solução final.
Os documentos, entretanto juntos pelo arguido e alegadamente atribuídos aquele ofendido, não foram lidos na audiência nem o tinha de ser, tratando-se de "prova documental", quanto a nós, ilegal.
A lei é clara quanto ao tipo de declarações prestadas que em fase de inquérito possam ser apreciadas em audiência de julgamento. Uma delas é a declaração para memória futura, prestada por testemunha não residente em Macau e perante Juiz de Instrução Criminal.
Por terem sido prestadas perante magistrado, e em regra num momento histórico mais próximo do cometimento dos factos em juízo, a lei permite que o julgador as possa ter em conta de acordo com o principio da livre apreciação da prova.
O mesmo já não se passa com os "documentos" juntos pelo arguido e atribuídos ao ofendido. Os mesmos são declarações prestadas pelo ofendido, perante entidades estrangeiras.
Pretender que o tribunal lhes dê relevância probatória é algo que não tem qualquer apoio legal, nomeadamente nos artigos 336 e 337 n.2 a) CPPM .
Uma vez que são autênticas declarações, não podem ser lidas em audiência de julgamento, por não obedeceram aos requisitos legais citados. Por maioria de razão também não pode o julgador tê-los em consideração, em mera apreciação da prova documental junta aos autos, ou em sede de deliberação. (e cuja leitura não tem necessariamente de ser produzida em audiência de julgamento), pelo simples motivo que não se trata de prova documental, mas testemunhal.
Quer isto dizer que este tipo de prova, na nossa opinião, não podia ser produzida em julgamento nem nele ser examinada.
O terceiro principio é o principio da imediação o qual mais não significa que o possibilitar ao juiz ter contacto directo com as provas, sobretudo com a prova testemunhal pondo-o em contacto directo com as partes, testemunhas e peritos, e está, igualmente consagrado no art. 336 cPPM.
Se atentarmos, o ofendido terá prestado as suas declarações em Maio e Julho de 2012, cinco anos de ter prestado as declarações para memória futura mo Juízo de Instrução Criminal de Macau.
Tendo o julgamento ocorrido em Setembro de 20112, não se compreende que não se tenha deslocado a Macau para produzir tão importante depoimento e ter a oportunidade de explicar o porquê de tanta contradição nas sues declarações.
Se assim o fizesse daria cumprimento no principio da imediação e permitia o integral respeito por um outro principio sagrado do Processo Penal: o respeito pelo principio do contraditório.
Faltando ao julgamento não pode o Ministério Público contraditá-lo.
Não sabemos se o douto acórdão tomou em consideração os documentos em causa. É certo que nele consta:
“A convicção do Tribunal fundamenta-se na apreciação critica e comparativa de todos os meios de prova, nomeadamente .... no exame dos documentos juntos aos autos, relevando os documentos juntos pelo ofendido aos autos, mormente aqueles que contam a assinatura do arguido em representação das empresas referenciadas nos autos e as correspondências via emails entre o ofendido e o arguido ... "
Apesar poder subsistir esta incerteza, não restam quaisquer dúvidas que àqueles documentos (caso tenham sido alvo de consideração para a obtenção da decisão final), não foi dada qualquer relevância probatória.
E bem. Só assim o julgador, ao não dar credito a “declarações sem valor probatório”, actuou de acordo com as regras da experiência comum e em submissão aos demais princípios processuais penais citados.
(…)”; (cfr., fls. 778 a 780).

Perante isto, pouco há a acrescentar.

De facto, repetidamente tem este T.S.I. afirmado que:

“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 27.09.2012, Proc. n.° 403/2012 do ora relator).

E, não se vislumbrando onde, como ou em que termos terá o Colectivo a quo violado regras sobre o valor da prova tarifada, as regras de experiência ou legis artis, à vista está a solução.

Na verdade, constata-se que se limita o recorrente a contestar a versão dos factos pelo Tribunal a quo dada como provada, pretendendo, impor a sua versão, afrontando o princípio da livre apreciação da prova, (cfr., art. 114° do C.P.P.M.), o que, como é óbvio não colhe.

Dest’arte, e apresentando-se o presente recurso manifestamente improcedente, imperativa é a sua rejeição; (cfr., art. 410°, n.° 1 do C.P.PM.).

Decisão

4. Face ao exposto, e em conferência acordam rejeitar o recurso; (cfr., art. 409°, n.° 2, al. a) e 410°, n.° 1 do C.P.P.M.).

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs, e como sanção pela rejeição, o equivalente a 3 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 4 do C.P.P.M.).

Honorários ao Ilustre Defensor no montante de MOP$1.000,00.

Macau, aos 6 de Dezembro de 2012

José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa

Proc. 927/2012 Pág. 14

Proc. 927/2012 Pág. 1