Processo n.º 579/2012
(Recurso de Decisões Jurisdicionais)
Data : 22/Novembro/2012
ASSUNTOS:
- Fundamentação do acto tributário
SUMÁRIO:
1. A fundamentação, ao servir para enunciar as razões de facto e de direito que levaram o autor do acto a praticá-lo com certo conteúdo, encobre duas exigências de natureza diferente: a exigência de o órgão administrativo justificar a decisão, identificando a situação real ocorrida, subsumindo-a na previsão legal e tirando a respectiva consequência e uma outra exigência, nas decisões discricionárias, de motivar a decisão, ou seja, explicar a escolha da medida adoptada, de forma a compreender-se quais foram os interesses e os factores considerados na opção tomada.
2. E no que respeita ao acto tributário que é o acto terminal de uma fase processual, de um procedimento tributário ou administrativo que se estrutura com base num complexo de normas reguladoras da acção administrativa o devido procedimento administrativo constitui para o contribuinte uma importante garantia formal, pois supõe que a actividade da Administração tem de seguir necessariamente canais determinados como requisito mínimo para poder ser considerada actividade legítima.
3. O dever legal de fundamentação deve responder às necessidades de esclarecimento do destinatário, informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo do respectivo acto e permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito que determinaram a sua prática. E o grau de fundamentação há-de ser o adequado ao tipo concreto do acto e das circunstâncias em que o mesmo foi praticado.
4. Estando em causa a avaliação de um determinado prédio em MOP348.000.000,00, a que a Comissão de Revisão do Imposto de Selo procedeu, na sequência de uma reclamação de uma primeira avaliação da 2ª Comissão de Avaliação de Imóveis, de MOP452.652.000,00, pugnando a interessada por um valor de MOP314.000.000,00, ficando-se sem saber por que razão se chegou àquele valor e não a qualquer outro, ocorre o apontado vício de falta de fundamentação.
Relator,
(João Gil de Oliveira)
Processo n.º 579/2012
(Recurso de Decisões Jurisdicionais)
Data : 22 de Novembro de 2012
Recorrente: Comissão de Revisão do Imposto de Selo da DSF
Recorrida: Gestão de Participações B, S.A.
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A Exma Senhora Presidente da Comissão de Revisão do Imposto do Selo, tendo sido notificada do despacho de admissão do presente recurso, interposto da sentença proferida pela Mma Juíza do Tribunal Administrativo, que anulou a deliberação tomada pela Comissão de Revisão do Imposto do Selo e que decidiu pelo deferimento parcial da reclamação referente ao imóvel situado na Avenida do ......, n.º …, Macau, ao qual foi atribuído para a transmissão do mesmo o valor de $348,000,000.00, vem alegar, concluindo, em síntese:
Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. 59 a 62 dos autos, que julgou procedente o recurso interposto pela contribuinte e, consequentemente, anulou a deliberação da Comissão de Revisão do Imposto do Selo por Transmissões de Bens datada de 22.09.2010 que deferiu parcialmente a reclamação e a que foi atribuído o valor de $348,000,000.00.
Aduz-se na Sentença do Tribunal "a quo" que através da leitura e análise dos artigo 43.° e 44.° do RCPU, o acto recorrido violou o dever de fundamentação (artigo 114.° do CPA), pelo que deve ser anulado.
Todavia - face ao atrás exposto - deve concluir-se que a fundamentação - para o ser-há-de ser clara, congruente e suficiente (e basta que o seja), por outro lado, o conteúdo da fundamentação é variável.
Ou seja, caso as formulações utilizadas sejam confusas, se a argumentação é dubitativa, prejudicando a opção consciente da contribuinte entre a aceitação do acto ou a interposição de recurso, isto sim incorre no vício de falta de fundamentação entretanto não foi o que aconteceu no presente caso.
O que importa é que, as razões que devam ser declaradas não sejam as subjectivamente mais importantes, nem as essenciais, mas as determinantes, isto é, aquelas que sejam, RO mesmo tempo, justificativas - por revelarem um juízo típico ou próprio de um orgão público, objectivamente apto a suportar uma decisão administrativa - e decisivas - por terem sido, entre todas, aquelas que serviram de causa impulsiva do agir da Administração
De todo o modo, importa salientar que conforme o artigo 66.°, n.º 1 do RIS, os artigos 43.° e 44.° do RCPU não são aplicáveis ao presente caso, uma vez que, o que está em causa é um terreno e não um prédio urbano omisso na matriz.
Isto é, só à luz de especificidade atrás exposta (das transmissões da propriedade sobre prédios urbanos omissos na matriz e das transmissões resultantes de escritos particulares) se deverá determinar que a avaliação a efectuar deverá ser empreendida segundo o disposto no RCPU.
Por conseguinte, visto que houve aplicação incorrecta de normas jurídicas pelo Tribunal "a quo", conclui-se no sentido de não assistir fundamento gerador de qualquer anulação, uma vez que a deliberação recorrida não padecia de qualquer vício.
Nestes termos, pugna pela revogação da sentença.
Gestão de Participações B, S.A. (B控股股份有限公司), recorrente contenciosa nos autos acima referidos, aqui recorrida, contra-alega, sublinhando:
A alegante não concorda com os fundamentos apresentados pela recorrente, por que a decisão recorrido tem fundamentos precisos e expressos e aplica correctamente a lei. Pelo que a alegante entende que a decisão recorrida não padece de qualquer vício indicado pela recorrente, por isso, deve ser mantida a decisão a quo.
Segundo o entendimento da requerente, a fundamentação deve ser breve e só precisa de ter conteúdo necessário, para os efeitos da eficácia administrativa, no entanto, isso é absolutamente desrazoável.
Não se encontra o conteúdo necessário da fundamentação, assim, nenhuma pessoa consegue entender o fundamento da decisão face à fundamentação tão simples!
O Tribunal a quo, aplicando os dispostos do Regulamento da Contribuição Predial Urbana, entende que na avaliação do bem imóvel, o interessante deve conhecer de forma expressa os dados que tal avaliação tem como referência e as regras para o cálculo, caso contrário, será insuficiente a fundamentação. A aplicação da lei supracitada é totalmente correcta, isso é por que na avaliação do bem imóvel, qualquer Comissão afecta à DSF deve observar os respectivos dispostos e critérios previstos no Regulamento da Contribuição Predial Urbana. Mas não é, como referido pela recorrente, que os respectivos dispostos não se aplicam aos terrenos sem matriz predial.
É desapropriado que a Administração não fundamenta de forma suficiente um acto administrativo sob a invocação do sigilo, por que isso viola o princípio da transparência que a administração pública moderna se propõe prosseguir.
Face ao exposto, defende a manutenção do decidido.
O Exmo Senhor Procurador Adjunto emite o seguinte douto parecer:
Insurge-se a entidade recorrente contra a douta sentença em escrutínio, pretextando que, ao invés do ali assumido, o acto sujeito a recurso contencioso se encontra suficiente e devidamente fundamentado, já que, na sua perspectiva, se bem apreendemos, "o conteúdo da declaração fundamentada não deve ser um máximo", exigindo a lei "apenas uma exposição sucinta dos fundamentos", não podendo a Administração Fiscal "exibir tudo", ao que acresce o facto de o louvado nomeado pela recorrida ter sido presente aquando da tomada de decisão, tomando, pois, boa nota àcerca da motivação que presidiu ao acto, sendo que, finalmente, no seu critério, se lançou mão de dispositivos legais não concretamente aplicáveis à situação em apreço.
Não lhe assiste, em nosso critério, qualquer razão.
Começando precisamente por esta última parte do alegado, dir-se-à, desde logo, tomar-se (para o que agora conta) irrelevante e, até, inócua, quer a circunstância de, aquando da nova avaliação, se encontrar presente um louvado nomeado pela recorrida, quer o facto de, eventualmente, se ter, em qualquer passo do externado, lançado mão de dispositivo legal não especificamente aplicável à situação : por um lado, a presença, aquando da avaliação, de louvado nomeado pela recorrida, não obsta, como é óbvio, a que a deliberação exarada tenha que conter, ela própria, expressa, clara, suficiente e congruentemente, as razões de facto e de direito que a determinaram, sendo que, por outra banda, mesmo dando de barato a existência de menção, no aresto sob análise, de qualquer dispositivo não especificamente adequado, essa circunstância também não invalida aquela necessidade de devida motivação do acto.
E, quanto à apreciação dessa matéria, não nos merece qualquer reparo o decidido.
Na verdade, do externado pela deliberação alvo do recurso contencioso, que admitiu parcialmente a reclamação, fixando um valor mais baixo a transmissão do imóvel em questão, é, quando muito, possível extrair a razão dessa baixa de valor, derivada, designadamente, do valor mais baixo do lote "A" do terreno sito na via interna.
Contudo, fica-se, de todo, sem alcançar os dados, os factores, os critérios objectivos que conduziram, na 2ª avaliação a alcançar o valor preciso encontrado (o que, ao invés, terá sucedido aquando da 10 avaliação), isto é, como bem se expressa no douto parecer dia Exmo Colega junto do tribunal "a quo" " ... a entidade recorrida não deve expor apenas, obscuramente, os dados adoptados, mas também deve esclarecer concretamente como os respectivos dados afectam a avaliação do valor, quais dados foram ajustados na fórmula de cálculo adoptada pela 2ª Comissão de Avaliação e quais os valores concretos após o ajustamento"
A insuficiência de fundamente apresenta-se, assim, como manifesta, razão por que nenhum reparo nos merece o decidido.
Donde, haver que negar provimento ao presente recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vem provada a factualidade seguinte:
“Em 9 de Abril de 2009, a recorrente declarou, junto da Direcção dos Serviços de Finanças, que tinha adquirido um bem imóvel sito em Macau, na Avenida do ...... n.º..., no valor de MOP$302.270.760,00 (vd. fls. 2 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
No mesmo dia, a Direcção dos Serviços de Finanças emitiu à recorrente a Guia de Pagamento do Imposto de Selo modelo M/2, na qual a matéria colectável foi de MOP$ 302.270.760,00, e indicou que o valor trata-se do valor provisório sujeito a avaliação (vd. fls. 5 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 29 de Julho de 2009, de acordo com o despacho de 15 de Maio proferido pelo director da Direcção dos Serviços de Finanças, o Chefe da Repartição de Finanças de Macau emitiu a ordem de valorimetria à Comissão de Avaliação de Imóveis em relação ao bem imóvel acima referido (vd. fls. 6 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Realizou-se no mesmo dia uma reunião da Comissão de Avaliação de Imóveis que, tendo em conta a área do lote A do bem imóvel (área para o uso comercial: 2.257m2, para o uso da habitação: 13.542 m2), a área do lote B (área para o uso comercial: 1.802m2, para o uso da habitação: 10.812 m2), bem como o valor de outros imóveis no mesmo bairro, avaliou em MOP$452.652.000,00 o bem imóvel supracitado (vd. fls. 7 a 11 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 30 de Julho de 2009, o Chefe da Repartição de Finanças da DSF proferiu o despacho que notificou a recorrente do supracitado resultado da avaliação e que procedeu à liquidação adicional para a cobrança de impostos de selo adicional (vd. fls. 12 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 26 de Agosto de 2009, a DSF emitiu à recorrente, através de carta, notificação da avaliação do valor e nela indicou que o bem imóvel tinha sido avaliado em MOP$452.652.000,00, devendo a recorrente efectuar o pagamento, no prazo de 30 dias contados desde a data da notificação, do imposto no valor de MOP$4.737.009,00 diferido da liquidação adicional; a carta mais indicou que a recorrente pode apresentar reclamação para a Comissão de Revisão do Imposto de Selo no prazo de 15 dias contados a partir da data da notificação (vd. fls. 14 e 24 a 25 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 9 de Setembro de 2009, a recorrente apresentou a reclamação para Comissão de Revisão do Imposto de Selo, alegando que não estava de acordo com que a Comissão de Fixação do Imposto de Selo tinha tido como referência as habitações cujos preços unitários são mais altos, e que esta Comissão não tinha ponderado o ambiente real das lojas, também não concordou com a área do terreno avaliado pela Comissão em causa; a recorrente mais apresentou as respectivas provas documentais (vd. fls. 15 a 20 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 22 de Julho de 2010, a DSF, através do ofício n.º 069A/CRIS/2010, notificou a recorrente para comparecer à reunião realizada pela Comissão de Revisão do Imposto de Selo no tempo indicado, trazendo consigo os documentos originais ou autenticados que podem alterar o valor avaliado; mais notificou a recorrente de que pode nomear louvado para estar presente na reunião (vd. fls. 82 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 6 de Setembro de 2010, a recorrente apresentou declaração para a Comissão de Revisão do Imposto de Selo, alegando que tinha sido nomeado o Senhor C (C) como o seu louvado (vd. fls. 76 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 15 de Setembro de 2010, realizou-se, entre a presidente substituta da Comissão de Revisão do Imposto de Selo, o seu vogal, e o louvado C (C), uma reunião em que este entregou as provas documentais. Assim sendo, a presidente substituta e o seu vogal da Comissão de Revisão do Imposto de Selo entenderam necessário conhecer mais pormenorizadamente os dados, pelo que marcaram outra reunião em 22 de Setembro (vd. fls. 31 a 75 e 122 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 22 de Setembro de 2010, a Comissão de Revisão do Imposto de Selo fez a deliberação que indicou que, de acordo com o rascunho da planta sobre o supracitado terreno autorizado pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que foi apresentado pelo louvado, os respectivos dados de natureza técnica, bem como o valor do lote A do terreno sito na via interna que é mais baixo, admite-se parcialmente a reclamação apresentada pela recorrente, fixa-se o valor de transmissão em MOP$348.000.000,00 (vd. fls. 123 a 124 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 12 de Outubro de 2010, através do ofício n.º 069B/CRIS/2010, a DSF notificou a recorrente da deliberação da Comissão de Revisão do Imposto de Selo, em que foi admitida parcialmente a reclamação apresentada pela recorrente relativa ao bem imóvel sito em Macau, na Avenida do ...... n.º... e fixado o valor de transmissão no MOP$348.000.000,00. Também foi apensada a cópia da deliberação. Mais notificou a recorrente de que pode, nos termos do artigo 92, n.º 3 do Regulamento do Imposto do Selo e artigos 25, n.º 2, al. a) do Código do Processo Administrativo Contencioso, recorrer para o Tribunal Administrativo no prazo de 30 dias. (vd. fls. 125 dos anexos e 32 a 34 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
No mesmo dia, a DSF notificou a recorrente para dirigir-se, no prazo fixado, à Repartição de Finanças de Macau para pagar o imposto adicionalmente liquidado no valor de MOP$1.440.471,00, no caso de não pagamento, o mesmo será enviado à Repartição das Execuções Fiscais para efeitos de cobrança coerciva. (vd. fls. 131 dos anexos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 11 de Novembro de 2010, o recorrente interpôs para este Tribunal recurso contencioso da deliberação supracitada. “
IV - FUNDAMENTOS
1. Está em causa a apreciação relativa ao invocado vício de falta de fundamentação na avaliação do referido prédio em MOP348.000.000,00, vício este que foi acolhido pela Mma Juíza do TA e que a levou a anular o acto aí recorrido, respeitante àquela avaliação, a que a Comissão de Revisão do Imposto de Selo procedeu, na sequência de uma reclamação de uma primeira avaliação da 2ª Comissão de Avaliação de Imóveis, de MOP452.652.000,00, sendo que a ora recorrida, Gestão de Participações B S.A., pugnava por um valor de MOP314.000.000,00.
Basicamente o que interessa apurar é saber se do despacho ora recorrido decorre a fundamentação necessária, de forma a que se compreenda por que se chegou àquele valor.
2. Da fundamentação do acto tributário em abstracto
Posto isto, há que reflectir sobre os requisitos que a fundamentação deve revestir.
Como escrevemos já, nesta sede1, a fundamentação, ao servir para enunciar as razões de facto e de direito que levaram o autor do acto a praticá-lo com certo conteúdo, encobre duas exigências de natureza diferente: a exigência de o órgão administrativo justificar a decisão, identificando a situação real ocorrida, subsumindo-a na previsão legal e tirando a respectiva consequência e uma outra exigência, nas decisões discricionárias, de motivar a decisão, ou seja, explicar a escolha da medida adoptada, de forma a compreender-se quais foram os interesses e os factores considerados na opção tomada.2
E no que respeita ao acto tributário que é o acto terminal de uma fase processual, de um procedimento tributário ou administrativo que se estrutura com base num complexo de normas reguladoras da acção administrativa3 o devido procedimento administrativo constitui para o contribuinte uma importante garantia formal, pois supõe que a actividade da Administração tem de seguir necessariamente canais determinados como requisito mínimo para poder ser considerada actividade legítima.
O devido procedimento tributário tem estrutura e assume funções idênticas às do procedimento administrativo. O princípio do devido procedimento tributário deve ser considerado um dos elementos caracterizadores do Estado de Direito. As normas constitucionais, da constituição formal e da constituição material, que exprimem os princípios da legalidade, da boa administração e da imparcialidade são reconduzíveis ao denominador comum daquele devido procedimento.
Sendo necessário controlar judicialmente o procedimento, como o controle se realiza através dos trâmites e dos fundamentos do acto, as modalidades de aquisição e qualquer outro momento de formação do acto devem ser exteriorizados. A fundamentação expressa obriga a Administração a tomar consciência dos "motivos" do acto e a reflectir sobre eles4.
E a atribuição de poderes discricionários, embora se trate em direito tributário de mera discricionariedade técnica, não deve afastar a adequada fundamentação, deixando a discricionariedade de ser um espaço em aberto à vontade incontrolada e incontrolável da Administração, para se reduzir a um normal percurso legalmente vinculado a princípios como os da igualdade, da justiça, da tributação do rendimento real, da capacidade contributiva.
Como se disse, a fundamentação deve referir as razões de direito e de facto que justificam o acto. Não todas as razões possíveis ou, muito menos, um debate entre elas. Mas sim todas as razões, sejam elas quais forem, que determinaram o autor do acto à sua prática. Se estas razões foram legais ou não, é um problema a analisar posteriormente
É certo que tais razões podem ser apresentadas sucintamente, faculdade que não exclui que devam ser apresentadas todas as razões, e completamente, nos seus aspectos essenciais. A fundamentação deve ser expressa através de sucinta exposição das razões aduzidas, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anterior parecer, informação ou proposta que, neste caso, constituirão parte integrante do respectivo acto. É equivalente à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência não esclareçam concretamente a motivação do acto. Por outras palavras: deverão ser aduzidas razões que tivessem sido suficientes para revelar um percurso jurídico-intelectivo adequado a conduzir ao acto.
Estando em causa a discricionariedade técnica da Administração, deve haver particulares exigências, nomeadamente, a Administração deve indicar as regras técnicas que escolheu para se auto-vincular.5
Em suma, o dever legal de fundamentação deve responder às necessidades de esclarecimento do destinatário, informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo do respectivo acto e permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito que determinaram a sua prática.6 E o grau de fundamentação há-de ser o adequado ao tipo concreto do acto e das circunstâncias em que o mesmo foi praticado.7
3. Projectando este enquadramento abstracto no caso concreto, somos, desde logo, a aderir às razões da Mma Juíza, enquanto consignou:
«Na sua petição inicial, a recorrente sustenta que a deliberação carece de fundamentação, incorre em erro nos pressupostos de facto, viola o princípio de proporcionalidade, e que verifica-se irrazoabilidade no exercício do poder discricionário pela entidade recorrida.
Segundo os dados dos autos, em relação ao valor fixado pela Comissão de Avaliação de Imóveis quanto ao imóvel adquirido, a requerente requereu a revisão à entidade recorrida, impugnando, principalmente,
1) O valor de venda das fracções de habitação;
2) O local das fracções comerciais e o seu preço de venda; e
3) A área da planta autorizada sobre os lotes A e B; a recorrente entende que o valor do respectivo bem imóvel é de apenas MOP$314.000.000,00, e apresentou as respectivas provas documentais.
Apresenta-se a seguir o teor da parte principal da deliberação recorrida:
“…
Segundo o rascunho da planta sobre o supracitado terreno autorizado pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que foi apresentado pelo louvado, os respectivos dados de natureza técnica, bem como o valor do lote A do terreno sito na via interna que é mais baixo. Por isso, sob o consentimento da presidente substituta, do vogal e do louvado, foi admitida parcialmente a reclamação e fixado em MOP$348.000.000,00 o valor de transmissão do referido imóvel.
...”
Na doutrina, é universalmente reconhecido que à entidade fiscal é atribuída pelo legislador a liberdade probatória.
O Dr. Diogo Freitas do Amaral citou no seu livro: “A lei dá à administração a liberdade de, em relação aos factos que hajam de servir de base à aplicação do direito, interpretando a avaliando as provas obtidas das harmonia com a sua própria convicção íntima. Nesses casos, não há discricionariedade, por que não há liberdade de escolha entre várias soluções igualmente possíveis, há sim uma margem de livre apreciação das provas com obrigação de apurar a única solução correcta…o regime jurídico aplicável é o mesmo que o da discricionariedade propriamente dita – isto é, ausência de controle jurisdicional de mérito, possibilidade de controle de legalidade (por incompetência, vício de forma, violação de lei, desvio de poder, erro de facto, etc.)…” 《Direito Administrativo, Volume II, Lisboa, 1988, página 171 e 173》
Nos termos dos artigos 43º e 44º do Regulamento da Contribuição Predial Urbana aprovado pela Lei n.º 19/78/M de 12 de Agosto, ex vi dos artigos 61º e 62º do Regulamento do Imposto do Selo aprovado pela Lei n.º 17/88/M de 27 de Junho,
“Artigo 43.º
(Fundamentação da avaliação)
As Comissões de Avaliação devem fundamentar as avaliações efectuadas, sendo obrigatória a indicação dos artigos matriciais dos prédios tomados para comparação e respectivos motivos, tendo em consideração que os valores a atribuir devem sempre reflectir a justa renda por um período de um ano em regime de liberdade contratual.
Artigo 44.º
(Regras para a avaliação)
Na avaliação dos prédios devem as comissões observar as regras seguintes:
a) Os jardins, quintais, parques, alamedas, lugares de recreio e similares que constituam anexos a prédios urbanos e lhes sirvam de mero logradouro, serão incluídos na descrição sem indicação de rendimento; mas na avaliação do valor locativo dos prédios, atender-se-á ao benefício e comodidade resultantes de tais logradouros;
b) Se os terrenos, lugares de recreio e similares referidos na alínea anterior tiverem afectação diferente da que nela se prevê, serão objecto de atribuição de rendimento em separado;
c) O valor locativo dos prédios arrendados não pode ser inferior à renda convencionada, tal como se encontra definida no artigo 14.º;
d) O valor locativo dos prédios não arrendados determina-se por confronto com outros que se encontrem dados de arrendamento, em regime de liberdade contratual, de preferência na mesma localidade ou zona urbana, e que melhor sirvam de padrão;
e) Os andares ou divisões susceptíveis de arrendamento separado e as construções ligadas ao prédio com carácter de permanência devem ser discriminados na descrição e avaliação.
Tendo em conta a análise supracitado, na avaliação do bem imóvel com base nas disposições supracitadas, o interessante deve conhecer de forma expressa os dados que tal avaliação tem como referência e as regras para o cálculo, caso contrário, será insuficiente a fundamentação.
Este Tribunal entende que a recorrente não consegue conhecer claramente, na deliberação recorrida, os fundamentos de a sua reclamação ter sido parcialmente admitida. Por um lado, da reclamação resulta que a recorrente não estava conformada com o preço de venda das habitações e lojas a ser construídas, nem com a área bruta. No entanto, a deliberação recorrida só indicou geralmente que “De acordo com o rascunho da planta sobre o supracitado terreno autorizado pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que foi apresentado pelo louvado, os respectivos dados de natureza técnica, bem como o valor do lote A do terreno sito na via interna que é mais baixo ”, sem explicar como o valor avaliado foi ajustado a 348.000.000,00 segundo os dados supracitados, de forma que a recorrente não conseguisse conhecer qual parte da sua reclamação foi admitida e qual foi rejeitada, nem saber se o valor avaliado preenche as regras para avaliação legalmente fixadas.
Nestes termos, de acordo com o artigo 114º, al. a), artigo 115º e artigo 124º do Código do Procedimento Administrativo, e artigo 21º, n.º 1, al. c) do Código do Processo Administrativo Contencioso e as respectivos disposições do Regulamento da Contribuição Predial Urbana, a deliberação em causa deve ser anulada pelo vício de forma de falta de fundamentação.»
4. Na verdade, quais os critérios por que se chegou àquele valor e não a menos ou mais um, cinco ou dez milhões? Parece que de acordo com a fundamentação aduzida tudo seria possível.
Ficamos a saber da fundamentação da entidade recorrida que esta reduziu o valor tendo em conta o rascunho da planta sobre o supracitado terreno autorizado pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, os respectivos dados de natureza técnica e o factor de que o valor do lote A do terreno sito na via interna é mais baixo. No entanto, a entidade recorrida só indicou os documentos e factores que tinha considerado, mas não esclareceu concretamente o valor objectivo a partir dos quais chegou àquele montante e, para mais, quando estamos a jogar com milhões.
De facto, a 2ª Comissão de Avaliação de Imóveis fez uma primeira avaliação tendo em conta vários factores, tais como “preço unitário”, “área do edifício”, “área bruta”, “rendimento da venda”, “lucro do construtor” e “custo total”, bem como os valores das lojas e edifícios do mesmo bairro, pelo que avaliou o terreno em MOP$452.652.000,00 (fls. 24 dos autos), resultando daí um cálculo que se afigura bem explicado e se pautou por critérios objectivo, rigorosos e científicos, em manifesto contraste com o valor posteriormente encontrado pelo Comissão de Revisão que reavaliou, sob reclamação o referido prédio.
A recorrente questionou a “a área bruta – edifício” e “o preço de venda por metro quadrado no edifício a ser construído (habitação e comercial)” reconhecidos pela tal Comissão, tendo apresentado o rascunho da planta sobre o supracitado terreno autorizado pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes e os respectivos dados para suportar que “a área bruta – habitação” do terreno é 17353,73m e a “área bruta – comercial” é 4527,87. É manifesta a diferença relativamente grande entre estes números e os que foram adoptados pela 2ª da Comissão de avaliação (“a área bruta - habitação” do terreno é 24.353m e a área bruta - comercial é 4.059m).
Por outro lado, a recorrente pretende que o preço unitário de venda das habitações é de MOP$20.000,00, o preço unitário de venda das lojas sitas no lote A é de MOP$25.000,00 e o das lojas sitas no lote B é de MOP$32.000,00.
Donde se impor que a Comissão de Revisão tivesse esclarecido concretamente quais os dados e valores em que se baseou no ajustamento efectuado.
É patente, no despacho impugnado, a ausência dos critérios expressamente referidos nos já transcritos artigos 43º e 44º do Regulamento da Contribuição Predial Urbana.
Em face do que se vem expondo, impõe-se a conclusão de que estamos perante um manifesto vício de falta de fundamentação no acto posto em crise e submetido a juízo.
5. Invoca ainda a entidade recorrente que a recorrida não podia ignorar os critérios que foram utilizados porquanto tinha um louvado por si nomeado na Comissão que examinou a reclamação sobre a avaliação impugnada.
Como está bem de ver essa representação do contribuinte naquela Comissão não tem o condão de suprir a regularidade da actuação da Administração e não sana os vícios em que esta incorra a Administração.
Desde logo, porquanto esse louvado não representa, juridicamente falando, o contribuinte, o que resulta da sua qualidade de perito, persistindo dúvida de que mesmo que a Comissão adoptasse o valor avançado por esse perito que tal o vinculasse sem mais. É o que resulta do estatuto e regime do louvado que presta compromisso de honra, é remunerado pelos Serviços, as garantias de imparcialidade de que se deve revestir, tudo como decorre dos artigos 39º, 49º, 50º e 51º do Regulamento da Contribuição Predial Urbana.
Depois, sempre importa saber qual a posição que este tomou, se se inteirou, concordando ou discordando como o valor encontrado e respectivos critérios.
A fundamentação do acto não pode ser substituída pela presença de um louvado na Comissão, bem podendo acontecer que ele tenha ficado vencido e que a maioria tenha acordado avançar com um valor, cujos critérios aquele perito desconheça.
Soçobra, pois, esta argumentação.
6.Analisemos agora outro argumento invocado pela recorrente.
Diz a recorrente que conforme o artigo 66.°, n.º 1 do RIS, os artigos 43.° e 44.° do RCPU não são aplicáveis ao presente caso, uma vez que, o que está em causa é um terreno e não um prédio urbano omisso na matriz.
Não tem razão. Trata-se, na verdade, de um terreno, omisso na matriz, mas afecto a construção urbana, comércio e habitação, com um número policial, tendo sido exactamente nessa finalidade e na sua aptidão edificanda que a Administração Fiscal se baseou para o avaliar.
Pretender que se trata de um prédio não urbano, significando, porventura, que seria rústico, é, no mínimo, anacrónico face à afectação que a própria Administração assumiu em relação a tal imóvel, importando não esquecer que os lotes de terreno destinados a construção urbana não deixam de ter tal natureza.
Aliás, não se deixa de anotar que nos termos do artigo 62º, n.º 2 do RIS “às avaliações de bens imóveis omissos na matriz e às avaliações extraordinárias aplica-se o disposto no Regulamento da Contribuição Predial Urbana”, não se distinguindo aqui a natureza do imóvel.
Em qualquer caso esta argumentação nunca procederia, face aos requisitos que sempre se impõem em qualquer fundamentação, seja ela feita por quem quer que seja, visto quanto sobre essa questão acima ficou dito.
Em face do exposto, o recurso não deixará de improceder.
V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo o que decidido foi no Tribunal administrativo.
Sem custas por delas estar isenta a entidade recorrente.
Macau, 22 de Novembro de 2012,
Presente João A. G. Gil de Oliveira
Vítor Manuel Carvalho Coelho (Relator)
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Ac. do TSI, proc. n.º 86/2003, de 20 de Nov./03
2 -Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e Pacheco Amorim, in CPA comentado, 2001, 591
3 Sobre o que se segue, vd. Diogo Leite de Campos, Fundamentação dos actos tributários: regras gerais, Revista do Instituto dos Advogados de S. Paulo, Ano II, 1986, n.-2, pág.48 e Direito Tributário, 1997, 209 e segs
4 - José Carlos Vieira de Andrade, O dever de fundamentação expressa dos actos administrativos, Coimbra, 1991, p.13 e 73 segs.
5 - Diogo Leite Campos, ob. cit., 215
6 - Ac. STA, proc. n.º 146/12, de 27/6/12 e proc. n.º 382/11
7 - Ac. STA de 11.12.2007, no recurso n.º 615/04
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