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Proc. nº 647/2012
(Recurso contencioso)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 18 de Abril de 2013
Descritores:
-Falta de fundamentação
-Falta de notificação
-Interdição de entrada na RAEM
-Erro sobre os pressupostos de facto (Ónus de prova)
-Indícios de crime
-Princípio da razoabilidade


SUMÁRIO:
I- A fundamentação é intrínseca do acto. Notificação e publicação são já extrínsecas ao acto decisor e a ele necessariamente posteriores; São veículos ou instrumentos de comunicação, por isso se dizendo instrumentais, e visam conferir eficácia ao acto.

II- A falta de notificação, porque concernente à eficácia do acto, não conduz à anulação do acto, enquanto a falta de fundamentação, tendo que ver com validade deste, pode levar a uma decisão anulatória.

III- Sentindo-se o recorrente impotente ou em más condições para dirigir contra o acto uma eficaz sindicância, pode servir-se do disposto no art. 27º do CPAC, com os efeitos que o nº2, 2ª parte, deste normativo ao caso comina.

IV- O vício de erro sobre os pressupostos de facto, como tem sido abundantemente referido, deve ser alegado e provado por quem o invoca, a não ser nos casos de administração ablativa, impositiva e agressiva, hipóteses em que sobre a Administração recai o ónus de prova dos factos em que se baseia para agir contra o particular.

V- A interdição de entrada no território não colide com os princípios consagrados nos arts. 29º e 43º da Lei Básica.

VI- Não estamos neste caso de aplicação de medidas de prevenção em situação semelhante à da aplicação de regras que são próprias de um plano puramente penal. As penas são a reacção pública ao crime, enquanto a medida administrativa de segurança, como esta é, destina-se a salvaguardar um certo padrão social de ordem e tranquilidade públicas sob a forma de reacção a uma atitude comportamental de alguém que se não dobrou às regras de convivência societária.

VII- Ao contrário do que sucede com a alínea 2), do nº2, do art. 4º da Lei 4/2003, em que se torna necessário um crime “julgado”, na alínea 3), desse número basta a existência de meros indícios de um crime “praticado”.

VIII- Decisão desrazoável é aquela cujos efeitos se não acomodam ao dever de proteger o interesse público em causa, aquela que vai para além do que é sensato e lógico tendo em atenção o fim a prosseguir. Um acto desrazoável é um acto absurdo, por vezes até irracional.

IX- A interdição de entrada insere-se na discricionariedade administrativa, caso em que a desrazoabilidade só em caso de manifesta, ostensiva e grosseira violação pode ser sindicada pelo tribunal.









Proc. nº 647/2012
(Recurso Contencioso)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I- Relatório
A, do sexo feminino, de nacionalidade chinesa, residente na República Popular da China, com os demais sinais dos autos, interpôs recurso contencioso da decisão do Ex.mo Secretário para a Segurança datado de 26/03/2012, que lhe negou provimento ao recurso hierárquico interposto do despacho do Ex.mo Comandante da PSP de 28/11/2011, o qual lhe havia imposto a medida de interdição de entrada na RAEM por um período de 3 anos.
Na petição inicial, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
“a) Recorre-se do Despacho do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança de 26/03/2012.
b) Estão reunidos os pressupostos processuais.
c) O Despacho recorrido enferma do vício de forma, por falta de fundamentação, sendo, por isso, anulável.
Quando assim se não entenda, o que se admite sem conceder,
d) Existe uma divergência quanto à versão dos factos constante do Despacho recorrido e aqueloutra da recorrente, o que materializa um erro nos pressupostos de facto do Despacho recorrido.
e) Versão aquela que é sustentada pela única testemunha ouvida nos autos.
f) Mas também o Despacho recorrido enferma do vício de violação da lei, já que, por um lado, impõe à recorrente uma sanção sem infracção e, por outro lado, viola o princípio de presunção de inocência.
Finalmente,
g) A sanção imposta à recorrente é desrazoável.
Nestes termos e nos mais de direito, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, anulado o Despacho recorrido, com todas as consequências legais.
Assim se fazendo JUSTIÇA”.
*
Apresentou contestação a entidade recorrida, pugnando pela improcedência do recurso, no que foi acompanhado pelo digno Magistrado do MP.
*
Não houve alegações.
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Cumpre decidir.
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II- Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão bem representadas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III- Os Factos
1 - A recorrente emprestou a B, motorista de táxi, a quantia de RMB$60.000,00.
2 - No dia 11 de Outubro de 2011, cerca das 01,00 horas junto ao Canídromo, a recorrente e B discutiram sobre a devolução da quantia emprestada.
3 - O pára-brisas do táxi, de matrícula MN-24-XX foi partido nessa ocasião.
4 - Foi apresentada queixa-crime por crime de dano contra a recorrente, mas o processo viria a ser arquivado por desistência de queixa.
5 - A recorrente, casou com C, titular do BIRM nº XXX e, por via desse casamento, requereu a sua residência da NAREM, mas ainda não obteve decisão final.
6 - Em 14/01/2012 foi a recorrente notificada do despacho do Comandante da PSP de 28/12/2011 através do qual lhe fora aplicada a media de interdição de entrada na RAEM pelo período de 3 anos.
7 - O seu teor é o seguinte:
“1. Através do CCO (linha 999), a polícia teve conhecimento de um caso de dano ocorrido na madrugada do passado dia 11 de Outubro, cerca das 01.00 horas, junto do Canídromo.
2. A guarnição policial que se deslocou ao local, verificou o seguinte: Um táxi, com a chapa de matrícula nº MN 24-XX, tinha o pára brisa danificado, sem qualquer hipótese de conserto (vide fotografias nos autos).
3. Segundo as declarações recolhidas junto dos intervenientes, a razão do dano foi a seguinte: Que A, em Junho deste ano emprestara RMB $60.000 (sessenta mil remimbis), a um dos motoristas do' referido transporte, B, e este até à data dos factos não tinha devolvido a quantia emprestada.
4. A, dirigiu-se ao referido local, que é onde B costuma largar o seu talhe e entregar a viatura a outro condutor (de nome D).
5. Chegada ali, entrou em discussão com B, sobre a quantia da dívida (A a afirmar que eram 60.000, e o condutor a dizer que eram somente 3.000), e do seu pagamento. E, perante a Impossibilidade de liquidação imediata da mesma, puxou de um martelo e partiu o pára brisa do veículo.
6. Entretanto, em fase de inquérito os autos foram arquivados por, desistência de queixa.
7. Apesar da natureza deste crime e, assim, da disponibilidade da parte legítima de desejar ou não o prosseguimento do processo penal, a situação enquadra-se na alínea 3), do nº 2, do artº 4º, da Lei nº 4/2003, e aconselha e fundamenta a aplicação de uma medida de interdição de entrada a fim de evitar que a cidadã A, volte nos tempos mais próximos a praticar actos semelhantes na RAEM, defendendo-se assim a em e a segurança públicas.
8. Pelo exposto, nos termos dos nºs 2 alínea 1), 3 e 4, do artº 12º da Lei nº 6/2004, aplico a medida de interdição de entrada na RAEM, a A, pelo período de 3 (três) anos. I
9. Notifique-se a interessada, nos termos do CPA”.
8 - Desse despacho interpôs a recorrente recurso hierárquico necessário.
9 - O mesmo Comandante pronunciou-se sobre o recurso nos seguintes termos:
“1. A recorrente, vem impugnar o despacho através do qual lhe foi aplicada a medida de interdição de entrada, pelo período de 3 anos, invocando em síntese o seguinte:
2. Que o acto que deu origem ao dano, foi um acto involuntário, pois foi devido ao estado de exaltação em que se encontrava por causa da discussão que estava a ter com o cidadão chamado B, sobre uma dívida, o que a fez brandir a sua mala de mão e, porque dentro da mala da recorrente havia um martelo, acabou por partir o pára-brisa do veículo, pelo que a medida assim decidida está baseada num facto que não corresponde à realidade;
3. Que a lei refere a prática de crime ou a existência de fortes indícios da prática de crime, pelo que se houve desistência de procedimento não haverá julgamento e, daí, nenhuma sanção por falta de crime, isto é, não há pena sem crime e não havendo crime não poderá ser aplicada a medida;
4. E, também, a medida não poderá ser aplicada porque não se pode falar em indícios, pois se houve desistência processual nunca chegará a haver crime; E, finalmente, que a medida é desrazoável e que as relações familiares da recorrente serão afectadas no caso da medida ser aplicada, urna vez que é casada com um residente da RAEM,
5. Pedindo o recorrente a anulação da decisão, que no caso de não ser concedida, requer que se faça urna diligência completar de prova quanto aos nºs 7 a 10 da petição de recurso.
6. A recorrente emprestou dinheiro a um indivíduo chamado B, e este até à data dos factos não tinha devolvido a quantia emprestada.
7. E a recorrente dirigiu-se ao referido local onde B costuma entregar o táxi a outro condutor de nome D.
8. Chegada ali, entrou em discussão com B, sobre a quantia da dívida e do seu pagamento. E, perante a impossibilidade de liquidação imediata da mesma, puxou de um martelo e partiu o pára brisa do veículo.
9. As fotografias constantes nos autos (e o instrumento apreendido) mostram bem a violência da acção e documentam bem o modo corno foi danificado o vidro, o que deita por terra a invocação do uso da mala de mão que por acaso tinha um martelo no interior.
10. Portanto, ficou provado que a recorrente, quis resolver urna questão particular, cível, recorrendo às suas próprias mãos, sabendo porém que a sua acção era contrária à lei, mas dolosamente cometeu o crime de dano.
11. Se a parte ofendida não desejou o prosseguimento do procedimento, está no seu direito devido à natureza do crime, mas tal não apaga o acto praticado e provado (nem o legislador faz depender a aplicação da medida a um procedimento que tenha de correr os seus termos até final),
12. Conduta que aconselhou e fundamentou a aplicação da medida, por se recear que a recorrente volte a praticar na RAEM actos semelhantes e, assim, a pôr em risco a ordem e a segurança públicas.
13. Pelo exposto, por se considerar que o despacho recorrido não se encontra ferido de qualquer vício que possa levar à sua anulabilidade, não deve ser concedido provimento ao presente recurso.
14. À consideração de V. Exa.”
10- O Ex.mo Secretário para a Segurança proferiu então o seguinte despacho, datado de 26/03/2012:
“ASSUNTO: Recurso hierárquico necessário
RECORRENTE: A
   Atento o teor do Despacho e Informação do Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, de 28/12/2011 e de 16/03/2012, respectivamente, com os quais concordo e o recurso hierárquico do recorrente de 13/02/2012, que aqui dou por reproduzidos.
   Considero que a decisão proferida é legal, adequada, mostra-se devidamente fundamentada de facto e de direito, é idónea, necessária e proporcional em sentido estrito.
   Pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 161.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, confirmo o acto impugnado, negando provimento ao presente recurso hierárquico.
   Gabinete do Secretário para a Segurança da Região Administrativa Especial de Macau, aos 26 de Março de 2012.
O Secretário para a Segurança
Cheong Kuoc Vá”
***
IV- O Direito
1- O caso, muito resumidamente, é o seguinte:
A recorrente tinha emprestado uma importância em dinheiro a um motorista de táxi de nome B. E porque este demorava a restituir a quantia mutuada, a recorrente dirigiu-se no dia 11 de Outubro de 2011 à praça de táxis onde pensaria encontrar o mutuário. Encontrou. Após discussão entre ambos, a recorrente acabou por partir o pára-brisas do veículo.
A polícia foi chamada ao local e, na sequência disso, foi aplicada à recorrente a medida de interdição de entrada na RAEM por um período de três anos.
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2- A decisão administrativa começou por ser do Comandante da PSP. Tendo embora presente a natureza do ilícito, esta entidade entendeu que a situação se enquadrava na previsão da alínea 3), do nº2, do art. 4º da Lei nº 4/2003, a aconselhar uma medida de interdição de entrada “…a fim de evitar que a cidadã A volte nos tempos mais próximos a praticar actos semelhantes na RAEM, defendendo-se assim a ordem e a segurança pública”. E por isso, nos termos dos nºs 2, alínea 1), 3) e 4), do art. 12º da Lei nº 6/2004, aplicou a medida de interdição de entrada na RAEM por um período de 3 (três) anos.
A interessada apresentou recurso hierárquico, chamando a atenção para a circunstância de o facto danoso ter sido involuntário e praticado em estado de exaltação em virtude da discussão que estava tendo com o cidadão a quem tinha emprestado dinheiro. Acrescentou nele também a noção de a desistência de queixa impedir que se considere a existência de crime subsumível à previsão normativa invocada pelo Comandante da Polícia. Finalmente alegou a desrazoabilidade da medida e a repercussão que a sua aplicação terá nas suas relações familiares, já que é casada com um residente na RAEM.
Antes da decisão desse recurso hierárquico foi dito pelo mesmo Comandante, em Informação prestada a esse fim, ter sido “provado” que a recorrente agiu em resolução de uma questão particular e cível recorrendo “às suas próprias mãos”, bem sabendo que a sua acção era contrária à lei e que cometia, desse modo, um crime de dano que a desistência de queixa não apagaria.
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3- Eis-nos, agora, perante a reacção contenciosa da interessada, trazendo ao recurso os seguintes vícios imputados ao acto: vício de forma (por falta de fundamentação), erro nos pressupostos de facto, violação de lei e violação do princípio da razoabilidade. Vejamo-los.
*
3.1 – Vício de forma por falta de fundamentação
A densificação do vício decorreria da circunstância de o acto administrativo ora sindicado, apesar da referência nele feita à Informação do Comandante da PSP de 16/03/2012, não a ter incluído no seu conteúdo, para dele fazer parte integrante.
Percebemos a recorrente, mas não a podemos acompanhar. A questão está na distinção entre aquilo que faz parte do conteúdo do acto e o que dele é transmitido ao destinatário.
Sobre o assunto, deixemos falar por nós desta vez aquilo que noutra ocasião já tivemos oportunidade de exarar:
“Como se sabe, há diferenças fundamentais entre fundamentação e comunicação. Com efeito, diferentemente do que sucede no direito civil onde, em princípio, existe liberdade de forma na manifestação da vontade (art. 21º, C.C.), no direito administrativo a externação da vontade administrativa tem que obedecer a modelos mais ou menos rígidos, em ordem a um princípio de segurança e certeza nas relações jurídico-administrativas. Dir-se-á que não há liberdade de forma neste campo.
A regra é a de que os actos têm que aparecer pela forma escrita (art.º112º, nº1, C.P.A.), deverão conter certo número de menções e terão que obedecer a certos requisitos de fundamentação (art. 115º do CPA)1. Observado isto, o acto há-de ser levado ao conhecimento do interessado em certas circunstâncias e através de um dos modelos de publicidade referidos na lei (arts. 68º, 70º, 120º e 121º, do C.P.A.).
Do que não há dúvida, porém, é que a fundamentação tem que ser observada no procedimento concreto e no respectivo contexto decisório, isto é, deve ser contextual, por isso não se admitindo, geralmente, a fundamentação “a posteriori”. Mas, é precisamente por isso mesmo, isto é, por se entender que cumpre o requisito da contextualidade a chamada fundamentação por remissão, aquela através da qual o autor do acto remete os seus fundamentos para o conteúdo de pareceres, informações ou propostas (art. 115º, nº1, do CPA).
Foi o que aqui sucedeu, tal como, de resto, a recorrente reconhece. De modo que sobre o assunto, pouco mais haverá que dizer, senão que a principal crítica que ela erige se foca na ausência de comunicação do teor do acto, o que é coisa bem distinta. Ora, como é sabido, notificação e publicação são, no entanto, já actos extrínsecos ao acto decisor e a ele necessariamente posteriores. São veículos ou instrumentos de comunicação, por isso se dizendo instrumentais. E na medida em que cumprem essa singela função, não visam senão conferir eficácia externa ao objecto comunicado, dotando-o da necessária aptidão para a produção de efeitos, por isso também se intitulando integrativos de eficácia. Deste modo, um acto deficientemente notificado não é necessariamente ilegal, embora seja ineficaz2”. A fundamentação é intrínseca do acto; a notificação é extrínseca a ele.
Ora, assim sendo, não podemos subscrever a afirmação da recorrente acerca do vício em causa. Com efeito, o acto remeteu directamente, não apenas para a decisão tomada pelo Comandante da PSP no âmbito do procedimento primário ou de 1º grau, como ainda para o teor da Informação do mesmo autor, desta vez no quadro da impugnação hierárquica deduzida pela recorrente. Esta remissão cumpre assim os requisitos da fundamentação a que se refere o art. 115º, nº1, 2ª parte, do CPA.
Do que se queixa, verdadeiramente, é da falta de comunicação daquela informação do Comandante e de que o acto também se apropriou. Mas, se disso se trata, então, a questão é de notificação incompleta ou insuficiente. E, sentindo-se o recorrente impotente ou em más condições para dirigir contra o acto uma eficaz sindicância, poderia servir-se do disposto no art. 27º do CPAC, com os efeitos que o nº2, 2ª parte, deste normativo ao caso comina3. Não o tendo feito, recairão sobre si as respectivas consequências, sem que possa vir arguir com êxito um vício de forma (por falta de fundamentação), que inexiste. Uma deficiente notificação não se confunde com insuficiente fundamentação; são coisas distintas, sendo que a primeira, porque concernente à eficácia do acto, não conduz à anulação do acto, enquanto a segunda tem que ver com a validade deste e pode levar a uma decisão anulatória4. Podia, aliás, a recorrente, face à junção do processo administrativo e ao contacto com o seu integral conteúdo, adicionar algum vício novo ou reforçar algum outro que já tivesse inicialmente invocado (cfr. art. 68º, nº3, do CPAC). E não o fez. Prova é de que a falta de notificação da referida “Informação” em nada prejudicou o seu direito de impugnação contenciosa, o que, aliás, se constata pela forma completa e sem hiatos como o recurso está introduzido em juízo.
Improcede, pois, o vício.
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3.2 – Erro nos pressupostos de facto
Agora, o acto padeceria de um vício substancial, porquanto teria radicado num facto não demonstrado. Com efeito, o acto primário de 28/01/2011, da autoria do Ex.mo Comandante, se teve como pressuposto que a recorrente partiu o pára-brisas do táxi com um martelo, tal não corresponde à verdade, pois que na versão que ora aporta aos autos, em estado de exaltação, apenas teria batido com a sua mala de mão no vidro da viatura, que assim se teria quebrado por efeito da pancada. É esta a forma como a recorrente descreve os factos. E tendo-o feito dessa maneira, avançou para a conclusão de que a quebra do vidro se deveu a um facto involuntário e que a interdição de entrada se baseou num facto que não corresponde à realidade.
Pois bem. Se tomarmos por referência as afirmações da vítima D e do mutuário B, então adiantaríamos que a versão trazida ao processo contencioso pela recorrente não tem força suficiente para se impor. Aliás, para desacreditar a tese das marteladas que aqueles logo afirmaram perante a autoridade policial, seria necessário fazer apelo às mais inverosímeis e pouco prováveis leis da física, porque uma mala de mão dificilmente parte um pára-brisas, se praticamente toda a gente já sabe da sua dureza e da técnica do seu fabrico. Acontece que a recorrente teria prestado no local da ocorrência uma versão, mais tarde confirmada na esquadra, que não se afasta da daqueles.
Em todo o caso, podia a recorrente ter apresentado no presente recurso contencioso os meios de prova capazes de dar cobertura à sua tese (cfr. art. 42º, nº1, al. h), do CPAC), nomeadamente requerendo prova testemunhal (art. 43º, nº1, al. c), do CPAC). E porque não o fez, vão inteiras para si as culpas de ter postergado o direito de contradizer o facto que o acto administrativo deu por verdadeiro. Não esqueçamos que o vício de erro sobre os pressupostos de facto, como tem sido abundantemente referido, deve ser alegado e provado por quem o invoca5, a não ser nos casos de administração ablativa, impositiva e agressiva6, caso em que é à Administração que cabe fazer a prova dos factos em que se baseia para agir contra o particular. Como diz Vieira de Andrade, «há-de caber, em princípio, à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais da sua actuação, sobretudo se agressiva (…); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, quando estejam verificados esses pressupostos.»7 (A Justiça Administrativa (Lições) ”, 2ª edição, a págs. 268-271., pag. 268/269).
Isto serve para dizer que não foi capaz de destruir a factualidade que emerge do procedimento administrativo.
Já agora, e mesmo em sede de esclarecimento, nunca seria pelo facto de ter jogado a mala para o pára-brisas (mala que, segundo admite a recorrente, conteria no seu interior um martelo, sim senhor: facto 23 da p.i., a fls. 6), mesmo que fosse essa a verdade, que o crime de dano deixaria de estar cometido.
Portanto, não há quanto a este aspecto nada que seja de censurar ao acto, pelo que improcede o vício em apreço.
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3.3 – Violação de lei
Neste segmento da sua impetrância, a recorrente considera que, não tendo a queixa tido prosseguimento, e antes tendo a queixa sido retirada por desistência, não se pode considerar ter havido prática de crime, nem sequer indícios dele, tal como previsão do art. 4º, nº2, al. 3), da Lei nº 4/2003. Logo, o caso não se submiria ao disposto no referido preceito, o qual assim estaria violado pelo acto, até pela circunstância de, dessa maneira, ter ficado ferido o princípio da presunção da inocência, contra o que dispõe os arts. 29º e 43º da Lei Básica da RAEM.
Comecemos já por este último aspecto. Os citados artigos da Lei Básica não fornecem nenhum subsídio válido à recorrente, salvo melhor opinião. Com efeito, o que o primeiro estabelece (art. 29º) é a regra da precedência da lei, traduzida pelo princípio da legalidade de que o art. 1º do CP se fez eco, capaz de tipificar um ilícito criminal ao qual possa subsumir-se uma determinada conduta humana e que ao julgador penal permita aplicar uma pena. Isto é, a previsão da Lei Básica concerne exclusivamente à punição criminal. E disso se não trata no presente caso, seguramente.
Mas a 2ª parte do mesmo artigo ainda consagra aquilo que tranquilamente se acolhe nos ordenamentos jurídicos dos estados de direito modernos: o princípio da presunção de inocência. E é olhando para esse princípio jurídico de ordem para-constitucional que a recorrente recolhe a opinião de que o acto o violou. Porém, mais uma vez, sem razão. Na verdade, o 2º parágrafo do artigo onde o princípio está hospedado continua a partir da mesma ideia de base: a de que a inocência se reporta ao arguido em processo penal, necessariamente por ela protegido até que sentença transitada em julgado o condene pela prática do crime. Ou seja, é um princípio que a Lei Básica dedica na sua literalidade clara ao processo penal. E tal não é o que ocorre nos autos.
De resto, mesmo que se entenda que o princípio faz uma cobertura plena de todas as situações em que esteja presente um eventual crime, conquanto por ele não esteja o seu agente a ser responsabilizado criminalmente, então o seu vigor tão longe não vai no caso que nos ocupa.
É que a aplicação da medida de interdição não decorreu da existência de um crime “julgado”, mas de indícios de um crime “praticado”. Lê-se, com efeito, da decisão do Ex.mo Comandante da PSP que “…a situação enquadra-se na alínea 3), do nº2, do art. 4º da Lei nº 4/2003…”. Isto é, o que para o autor da decisão do procedimento de 1º grau prevaleceu unicamente – que o autor do acto administrativo impugnado sancionou – foi a existência de fortes indícios de um crime. Ao contrário do que sucede com a alínea 2) do nº2, do mesmo art. 4º, não se torna necessária a condenação em pena privativa de liberdade na RAEM ou no exterior; basta a simples existência de indícios de que tenha sido cometido o crime. Evidentemente, formalmente e para efeitos jurídico-penais o crime depende de uma decisão judiciária que o reconheça e puna. Mas, para outros efeitos, pode a existência de fortes indícios ser motivo suficiente para que o legislador ordinário queira precaver a sociedade contra a alteração da ordem e a segurança públicas que um indivíduo (sobre quem recaiam severas suspeitas de ilícito criminal) pode ocasionar. Nada de estranho há nisso e os países costumam ter, na sua generalidade, regras semelhantes a propósito da recusa de entrada de cidadãos estrangeiros dentro de determinados condicionalismos8. Aliás, como é sabido, não estamos neste caso de aplicação de medidas de prevenção em similitude de regras que são próprias do plano puramente penal. As penas são a reacção pública ao crime, enquanto a medida administrativa de segurança, como esta é, destina-se a salvaguardar um certo padrão social de ordem e tranquilidade públicas sob a forma de reacção a uma atitude comportamental de alguém que se não dobrou às regras de convivência societária9
De resto, quando a lei fala em “quaisquer crimes” a propósito do art. 4º, nº2, al. 3), da Lei nº 4/2003, sob pena de contra-senso absurdo, não se está a referir a “crimes julgados”, pois por enquanto ainda tudo não passa de indícios, mas a ilícitos criminais que, com grande dose de verosimilhança, preenchem os elementos típicos de um crime previsto na lei.
Ora, se indícios são circunstâncias conhecidas e indiscutíveis, que permitem deduzir a existência de um facto, na situação “sub judice”, parece claro que os factos apurados, parcialmente até confessados pela própria recorrente, permitem inferir a existência do “crime” de dano, tal como tipificado na lei penal (art. 206º e sgs., do C.P.M.). Não há dúvida quanto a isso.
Sendo isto assim, estamos em crer que nenhuma disposição da lei nº 4/2003 foi violada pelo acto, nomeadamente a invocada pela recorrente.
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3.4 – Violação do princípio da razoabilidade
Muito pouco fundamentada foi a invocada violação do princípio da razoabilidade. Para a recorrente, a decisão em apreço seria desrazoável porque, sendo casada com C, residente da RAEM, ficariam afectadas as suas relações familiares.
Não obstante a escassa argumentação em prol deste vício, somos capazes de bem compreender o que a recorrente quererá dizer, se tomarmos por certo que a aplicação da medida implica um afastamento do seu marido por um período de três anos, o tempo da interdição.
Ainda assim, esta argumentação sugere-nos a seguinte ordem de considerações. Antes de tudo, ela só é verdadeira em parte. Quer dizer, as relações familiares não ficam afectadas inexoravelmente, já que o acto em causa apenas recusa a entrada da recorrente na RAEM, mas não inibe a saída do marido para a China, as vezes que ele quiser, para estar com a esposa. Em segundo lugar, a proibição de entrada só é decorrência deste acto agressivo, por a recorrente se ter colocado, precisamente, na mira da aplicação da lei. Foi por sua “culpa” que se viu imersa nesta situação desagradável e restritiva de não poder estar com o marido em Macau, onde ele é residente. Por outro lado, esta restrição à convivência familiar não está subtraída ao dever administrativo de vigilância da ordem pública. Na verdade, “A liberdade de circulação e o direito à reunião familiar, como direito fundamental, não são absolutos, pois estão sujeitos ao condicionamento legal que visa a salvaguarda de interesses públicos relevantes, tal como ao regime legal de entrada e permanência na RAEM”10. Quando a Administração age dentro destes parâmetros não está directamente a inquinar as relações familiares, que seguramente nem quererá deslaçar, mas sim a agir num quadro de prognose e a prevenir ou acautelar situações futuras em relação a uma determinada pessoa, independentemente da sua condição social e do seu estado civil. O que importa à Administração é, em primeiro lugar e no pleno respeito pela lei que a tanto a legitima, o respeito pelos interesses públicos que lhe cabe prosseguir, como é, por exemplo, a ordem e a segurança públicas11.
Foi o caso. O que a Administração fez foi, segundo as suas próprias palavras, aplicar uma medida que tivesse o objectivo de consciencializar a recorrente de que não deve “...nos tempos mais próximos praticar actos semelhantes na RAEM, defendendo-se assim a ordem e segurança pública”.
Neste sentido, estamos com a jurisprudência que sobre o tema se tem frequentemente pronunciado, quando refere que “O poder de recusar a entrada na RAEM de não residentes e de fixar o período em que é interditada a sua entrada consiste na discricionariedade da Administração, pois o legislador deixa largo âmbito de escolha à Administração para tomar a decisão de recusa de entrada e fixar o período de interdição de entrada na Região. Por o recurso contencioso ser de mera legalidade, é, em princípio, insindicável o exercício do poder discricionário pela Administração, salvo a violação de lei traduzida no erro manifesto ou na total desrazoabilidade do seu exercício. Também não conhece do mérito do acto impugnado, ou seja, a oportunidade e a conveniência do acto, por se tratar do núcleo essencial da função administrativa, subtraído, em princípio, do controlo jurisdicional”12.
Ou quando assevera que “O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro”13.
Sabemos que a desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários” também serve de fundamento ao recurso contencioso (art. 21º, al. d), do CPAC. Todavia, somente “…aquela que tem o sentido de uma absurda e desmesurada aplicação do poder discricionário administrativo perante um determinado caso real e concreto. Decisão desrazoável é aquela cujos efeitos se não acomodam ao dever de proteger o interesse público em causa, aquela que vai para além do que é sensato e lógico tendo em atenção o fim a prosseguir. Um acto desrazoável é um acto absurdo, por vezes até irracional”14.
Ora, porque não vemos que acto possa ter afrontado aqueles parâmetros de forma grosseira e manifesta ou ostensiva, nem quanto à medida, nem quanto à sua dimensão, não vemos motivo para uma intervenção judicial anulatória15.
Por tudo quanto vem de ser dito, o recurso tem que soçobrar.
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V- Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça em 3 UC.
TSI, 18 / 04 / 2013
José Cândido de Pinho
Estive presente Lai Kin Hong
Mai Man Ieng Choi Mou Pan



1 Ac. TSI, de 22/03/2012, Proc. nº 423/2011; 6/02/2012, Proc. nº 527/2010;
2 Em sentido semelhante, Ac. TSI, 7/12/2011, Proc. nº 346/2010.
3 Sobre o assunto, ver Ac. do TUI, de 28/09/2011, Proc.nº 33/2011 e do TSI, de 31/03/2011, Proc. nº 690/2010 e de 28/01/2010, Proc. nº 610/2009.
4 Ac. TUI, de 13/06/2012, Proc. nº 25/2012.
5 Ac. do TSI, 23/10/2003, Proc. nº 86/2002; 6/12/2012, Proc. nº 645/2012; Na jurisprudência comparada, em Portugal, v.g., Acs. STA de 20/02/86, in AD nº 303/364; 8/10/1992, in Rec. nº 28 975.
6 Ver sobre o assunto, Ac. TSI, de 25/10/2012, Proc. nº 23/2012.
7 A Justiça Administrativa (Lições) ”, 2ª edição, a págs. 268-271, pag. 268/269.
8 No direito comparado, em Portugal, por exemplo, ver arts. 32º e 33º da Lei nº 23/2007, de 4/07. A única diferença, e provavelmente para fugir à dificuldade em torno da diferença entre crime cometido e crime julgado, de que lá se previu somente a prática de “factos puníveis graves”.
9 Em sentido semelhante, Ac. TUI, de 30/07/2008, Proc. nº 34/2007.
10 Ac. TUI, de 6/04/2011, P. 56/2010
11 Ac. TSI, de 18/10/2012, Proc. nº 127/2012.
12 Ac. TUI, de 30/07/2008, Proc. nº 34/2007;
13 Ac. TUI, de 9/05/2012, Proc. nº 13/2012. No mesmo sentido, o Ac. do TSI, de 5/07/2012, Proc. nº 654/2011
14 Ac. TSI, de 7/12/2011, Proc. nº 647/2010. No mesmo sentido, Ac. TSI, de 11/10/2012, Proc. nº 229/2012 e 10/01/2013, Proc. nº 360/2012.
15 Neste sentido, Ac. TSI, 7/12/2011, Proc. nº 346/2010; 17/11/2011, Proc. nº 583/2010.
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