Processo n.º 176/2008
(Recurso Contencioso)
Recorrente: A
Recorrida: Secretária para a Administração e Justiça (行政法務司司長)
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, casado, arguido nos autos de processo disciplinar número 01/DSAJ/DAT/2006, não se conformando com a decisão proferida pela Ex.ma Senhora Secretária para a Administração e Justiça, veio, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 25º do Código de Processo Administrativo Contencioso, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M, de 13 de Dezembro, e da alínea 7 do artigo 36º da Lei n.º 9/1999, dela interpor Recurso Contencioso da Segunda Instância, alegando que, em síntese:
1. O presente recurso vem interposto do despacho da Senhora Secretária para a Administração e Justiça, que aplicou a pena de demissão, ao aqui Recorrente, na sequência do processo disciplinar que lhe foi instaurado, pela Direcção dos Serviços de Assuntos de justiça.
2. O Recorrente tem legitimidade activa para impugnar o acto em causa na medida em que é titular de um interesse pessoal e directo, designadamente por se considerar lesado pelo acto aqui recorrido, como resulta do disposto na alínea a) do artigo 33º do Código de Processo de Administrativo Contencioso.
3. Concluídos os actos de instrução do Processo Disciplinar, antes da aplicação da medida concreta da pena, devia a Administração notificar o arguido para se pronunciar sobre a pena concreta proposta.
4. É que resulta do artigo 93º do Código de Procedimento Administrativo um dever/obrigação sobre o órgão da administração de concluída a instrução e antes de ser tomada a decisão final, de ouvir, por escrito ou oralmente, os interessados, devendo informá-los do sentido provável da decisão.
5. Acontece que, quer a Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça, na pessoa do Instrutor e quer a entidade recorrida (Secretária para a Administração e Justiça) não notificou o ora Recorrente para que fosse ouvido previamente em relação à alegada decisão final.
6. E, por isso mesmo não facultou nem o notificou dos elementos resultantes do n.º 2 do artigo 94º do referido C.P.A.
7. Desse modo, o Recorrente não pôde exercer o direito elementar de se pronunciar sobre as questões relevantes do procedimento, nem requerer diligências complementares de prova.
8. O direito de audiência dos interessados visa a introdução no procedimento de elementos novos por parte dos particulares/interessados, que possam conduzir a decisão diversa daquela que seria tomada sem esses novos elementos.
9. Com efeito, a audiência de interessados consubstancia uma manifestação lógica do princípio do contraditório, que visa assegurar uma discussão prévia no âmbito do procedimento através do confronto dos critérios e argumentos dos interessados em relação à decisão final.
10. Configurando um desenvolvimento estruturante do princípio da participação, expressamente consagrado no artigo 10º do C.P.A.
11. Por conseguinte, a preterição da realização da audiência de interessados inquina o acto, por vício de forma, que aqui se invoca para os devidos efeitos legais, nomeadamente para efeitos do estatuído na alínea a) do n.º 1 do artigo 21º do C.P.A.C..
12. Da leitura do despacho recorrido se depreende que a entidade recorrida não faz como lhe competia uma clara e correcta delimitação dos factos, misturando-os com questões de natureza jurídica.
13. Com isto não se pretende pôr em causa a liberdade de determinação dos factos, que compete à entidade recorrida, conforme resulta do n.º 1 do artigo 86º do Código do Procedimento Administrativo.
14. Deste preceito legal resulta que o órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento.
15. Podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito, constituindo esse normativo a concretização do princípio do inquisitório ou da oficialidade.
16. Assim e em conformidade com essas considerações gerais aqui aduzidas e trazidas à colação, depois de devidamente compulsados os autos de processo disciplinar não se poderá deixar de afirmar que o despacho ora recorrido enferma do vício de violação de lei.
17. Na vertente da total desrazoabilidade no exercício de poder discricionário, conforme consta da alínea d) do n.º 1 do artigo 21º do Código de Procedimento Administrativo Contencioso.
18. Na acusação deduzida contra o arguido, ora Recorrente, são lhe imputadas uma série de infracções, tais como a violação dos deveres de zelo e sigilo previstos no artigo 279º do Estatuto dos trabalhadores da Administração Pública de Macau.
19. Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Setembro, com a agravante prevista na alínea d) do artigo 283º do referido código, ou seja, o conluio com outros indivíduos para a prática da infracção, nos termos do n.º 1 do artigo 283º do ETAPM.
20. Com base nesta imputação, considerou a Senhora Secretária para a Administração e justiça que atendendo: à gravidade das infracções praticadas pelo arguido, à indignidade e falta de idoneidade moral para o exercício das funções, estão preenchidos os dispostos no n.º 1 e nas alíneas h) e o) do n.º 2 do artigo 315º, pelo que decidiu pela aplicação da pena de demissão.
21. Acontece que a decisão de condenar o arguido com a pena de demissão, teve por base unicamente a decisão final, devidamente transitada em julgado e, que, como se sabe, traduziu numa pena única e global de oito anos e seis meses de prisão efectiva.
22. Denotando-se uma clara e flagrante insuficiência (déficit de instrução) dos actos de instrução do processo disciplinar, com violação do chamado princípio da culpa, da livre convicção, entre outros.
23. Por conseguinte, tendo sido considerado a nível do processo penal determinadas factualidades, entendeu o Senhor Instrutor, seguir na mesma alínea dando por provado os factos ali considerados como assentes.
24. No entanto, resulta da lei uma obrigação de investigar nos termos do n.º 1 do artigo 86º do Código do Procedimento Administrativo e do artigo 329º do ETAPM, que não foi cumprido no presente caso, na medida em que o Instrutor contentou-se com as provas produzidas a nível penal.
25. Assim, a falta de diligências reputadas necessárias para a constituição da base fáctica da decisão afectará esta, não só se tais diligências foram obrigatórias (acarretando, assim, a violação do princípio da legalidade), mas também se a materialidade dos factos não estiver comprovada, ou faltarem, nessa base, factos relevantes alegados pelo interessado, por insuficiência de prova que a administração poderia e deveria ter colhido (o que gera erro quanto aos pressupostos de facto).
26. Ou seja, as omissões, inexactidões ou insuficiências na instrução estão na origem de um deficit de instrução, que de instrução, que redunda em erro invalidante da decisão, decorrente não só da omissão ou preterição de diligências legais, mas também, de não se tomar em devida conta, na instrução, interesses que tenham sido carreados pelo interessado, ou factos que indispensáveis para a decisão do procedimento.
27. Ora, o Recorrente na defesa apresentada afirmou que de facto tinha na casa de morada de família, folhas com informações de alguns prédios, mas que tais prédios não faziam parte do leque dos prédios objecto de crime e que tais papéis se destinavam a utilização como rascunhos para sua filha menor.
28. Pergunta-se, então, qual foi a diligência de prova levado a cabo no sentido de se indagar da veracidade do elemento de prova trazido para os autos pelo Arguido?
29. Indagou-se junto de algum responsável da Conservatória ou dos demais funcionários, no sentido de saber se esta prática era comum entre os funcionários da referida casa?
30. O Recorrente na sua defesa advogou que todos os dados e informações guardados na Conservatória do Registo Predial são públicos e acessíveis, entre outras, uma das suas funções era precisamente revelar tais informações ao público em geral.
31. Com estas alegações era de esclarecer se efectivamente o Arguido disponibilizou tais elementos aos co-arguidos no processo-crime, sem ser através dos meios legalmente permitidos.
32. Ou seja, que o mesmo forneceu elementos para os seus co-arguidos sem ser através das chamadas buscas (Informações por Escrito) e/ou de Certidões.
33. Mais uma vez, se questiona, que diligências de provas é que foram realizadas no sentido de se apurar como é que o Recorrente forneceu tais elementos?
34. No âmbito do direito disciplinar, à semelhança do que acontece no direito penal ou processual penal, a lei dá ao julgador uma cera margem de manobras.
35. Todavia, tal princípio obedece a determinadas regras, sujeito a certos limites. Não há que confundir o grau de discricionariedade implícito na formação de juízo de valoração do julgador com o livre arbítrio.
36. Daí que se considere que não foram realizadas todas as diligências de prova necessárias para a boa decisão da causa, pelo que se entende que o despacho aqui recorrido padece do vício de deficit de instrução que se lhe assaca, para todos os legais efeitos.
37. Só após uma investigação exaustiva se poderá concluir que um determinado agente praticou uma infracção disciplinar e, que a mesma infracção é merecedora de uma pena.
38. Sendo que o facto voluntário na edificação deste conceito consubstancia-se na exteriorização de uma vontade consciente e livre a que se juntou, mais recentemente o elemento culpa.
39. É que do extenso rol de factos e infracções constantes do acto recorrido não se mostra provada a verificação do elemento subjectivo, para efeitos disciplinares.
40. Ou seja, não se provou que o Recorrente violou de forma grave e irreversível, os deveres atrás referidos e muito menos que esta violação tenha tornado absolutamente irreversível e inviável a sua continuação como servidos da Administração.
41. Em face dos factos assentes, a entidade recorrida, concluiu pela inviabilidade da manutenção da situação jurídico-funcional, tendo optado por aplicar ao Recorrente a pena de demissão, a mais grave e irreversível de todas as penas previstas no Estatuto dos Trabalhadores da Função Pública de Macau.
42. Todavia, fê-lo com violação grave de normas que regulamentam o funcionamento da função pública, mormente quanto ao processo disciplinar.
43. O Recorrente considera que as imputações que lhe são imputadas não demonstram e nem as infracções são de natureza tão grave que inviabilizem a manutenção da relação jurídico-funcional.
44. Na verdade, a natureza da pena aplicada exigia como medida cautelar e da mais elementar prudência que se demonstrasse a razão daquela inviabilidade, na medida em que a sanção ora imposta põe um fim definitivo a uma relação que já perdura há mais de dezanove anos, se tomarmos como referência o dia anterior à detenção.
45. Não se concluindo pela aplicação da medida de aposentação compulsiva, caberia, à entidade recorrida, demonstrar que efectivamente a aplicação daquela medida em detrimento da menos gravosa é manifestamente vantajosa.
46. É jurisprudência deste Venerando Tribunal que as insuficiências na instrução consubstanciam um deficit de instrução, que gera um erro invalidante da decisão resultante da omissão ou preterição de diligências legais.
47. Verifica-se, assim, a violação da norma do número 3 do artigo 315º do Estatuto dos Trabalhadores da Função Público de Macau.
48. É que a entidade recorrida tem a obrigação de averiguar, por força do princípio da oficialidade, se a situação em concreto preenche ou não os requisitos necessários para aplicação da pena de aposentação compulsiva, sempre que se conclua com segurança que as infracções provadas inviabilizam a manutenção da situação jurídico-funcional.
49. A lei defere, assim, para o poder discricionário da entidade competente a respectiva concretização, vinculando-a apenas ao referido pressuposto objectivo, discricionariedade em que, certamente, pesará o grau de gravidade das infracções.
50. Portanto, o ETAPM, no número 3 do artigo 315º, permite a faculdade de escolher entre a pena de “aposentação compulsiva” e a mais gravosa de “demissão”, quando se verifique na pessoa do arguido a contagem de, pelo menos 15 anos de serviço efectivo.
51. Faculdade que a entidade recorrida não lançou mão, porquanto considerou que a mesma só deve ser ponderada e tomada em consideração, nos casos em que se conclua que a conduta do agente não é tão gravosa.
52. Ou seja, da verdadeira motivação constante do Relatório, parece que o Senhor Instrutor partiu de pressuposto errado para, a final, concluir pela pena de demissão.
53. Quando é a própria lei a determinar de forma taxativa que esse pressuposto objectivo vincula toda a Administração.
54. A Administração ao abster-se de verificar esse requisito legal e, em consequência repercutir na pena concreta aplicada essa omissão, viola directamente o n.º 3 do artigo em análise e de forma indirecta o n.º 2 do artigo 5º do Código do Procedimento Administrativo, na medida em que a pena escolhida e aplicada é desproporcional e inadequada ao facto que visa proteger.
55. O Recorrente invoca ao seu favor os anos que têm da Administração (mais de dezanove anos) com classificação de serviços variáveis entre bom e/ou Muito Bom.
Nestes termos requer-se a V.Ex.as que se dignem anular o acto recorrido, concedendo provimento ao presente recurso, com todas as legais consequências que daí advêm.
Foi citada a entidade recorrida, esta contestou, alegando, em síntese o seguinte:
1. O acto recorrido não padece de qualquer ilegalidade ou de《vários vícios》, como pretende o recorrente naquilo que alega na sua P.R.;
2. Quanto à instrução do processo, incluindo a dedução da acusação e a apresentação da respectiva defesa foi assegurado o princípio da audiência do interessado e o respectivo contraditório em termos da necessária intelegibilidade e eficácia, como demonstrado e assente no processo disciplinar em apenso;
3. E, ao contrário do que o recorrente alega:《no caso do processo disciplinar o processo de audiência dos interessados está organizada de forma especial, a notificação da acusação em processo disciplinar concretiza, neste procedimento sancionatório, o direito de audiência, não sendo necessário ouvir novamente o arguido antes da decisão definitiva, ao abrigo do artigo 93º do CPA, pois a lei não pretende que este disposto seja aplicável ao procedimento disciplinar》(cfr. o acórdão desse Douto Tribunal, de 17-11-2005, proc. n.º 323/2004);
4. Ademais, os factos que deram origem ao acto ora posto em crise encontram-se devida e suficientemente provados nos autos;
5. Factos que foram dados como provados no processo que correu termos nos tribunais judiciais – Processo Comum Colectivo n.º CR1-05-0250-PCC do 1º Juízo Criminal e recursos penais n.º 341/2006 do Tribunal de Segunda Instância e nº 31/2007 do Tribunal de Última Instância -, onde o recorrente foi condenado na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão, como autor, na forma consumada, de 3 crimes de burla e de 1 crime de peculato, previstos e puníveis, respectivamente pelo artigo 211º, n.ºs 1 e 4, alínea a), 196º, alínea a), e artigo 340º, n.º 1, todos do Código Penal (cfr., nomeadamente, fls. 63 a 130, 227 a 719 do p.i.);
6. Além de que a autonomia do processo disciplinar face ao processo penal não significa que a decisão penal que apreciou os mesmos factos objecto do processo disciplinar seja de todo indiferente (também nesse sentido, o acórdão do STA, de 13-02-2007, proc. n.º 047555), nomeadamente como no caso presente em que as faltas foram cometidas no exercício da função de oficial dos registos e notariado da Conservatória do Registo Predial;
7. Como se refere no acórdão do STA, de 18-02-1999, proc. n.º 037479:《a Administração pode proceder a uma qualificação diversa dos actos, à luz do direito disciplinar, embora a sentença criminal, transitada em jurado, seja definitiva quanto à existência dos FACTOS e dos seus Autores.》ou no acórdão do mesmo Tribunal, de 19-06-2007, proc. n.º 01058-06:《a condenação do réu em processo criminal por certos factos não pode deixar de implicar a prova desses mesmos factos em processo disciplinar》;
8. No processo disciplinar em apreço não se detecta, por conseguinte, qualquer omissão que obstasse a uma decisão mais favorável por parte da entidade recorrida ao ora recorrente ou que afectasse o correcto exame e a justa decisão do processo disciplinar;
9. A entidade recorrida deu como assentes os factos que vieram a suportar a punição quando apreciou e valorou as provas que o processo disciplinar colheu;
10. E ao contrário do que diz o recorrente《o que resulta da lei – artigo 315º, n.º 3 do ETAPM – é que a entidade com competência disciplinar, em abstracto, tanto pode punir o funcionário com a pena de demissão como com a pena de aposentação compulsiva, desde que se trate de infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional.》(cfr. acórdão do Douto Tribunal de Última Instância, de 28-07-2004, no proc. n.º 22/2004, e no mesmo sentido o acórdão desse Douto Tribunal de Segunda Instância, de 10-04-2003, proc. n.º 114/2000);
11. Em face desses factos dados como provados, que foram passíveis de responsabilidade-de criminal, considerou a entidade recorrida que revelavam uma falta de idoneidade moral de quem os praticou, justificando a aplicação da pena de demissão, ademais pelo reflexo negativo que a manutenção do vínculo ao serviço poderia trazer para o prestígio deste;
12. A pena disciplinar fixada corresponde ao grau do desvalor da conduta do recorrente, tendo em conta todas as circunstâncias relacionadas com a prática da infracção, sendo proporcional à gravidade da conduta disciplinarmente ilícita;
13. Não merece, assim, qualquer reparo a qualificação jurídica das infracções imputadas ao recorrente, porquanto este na qualidade de oficial dos registos e notariado da Conservatória do Registo Predial ao procurar imóveis, edificados ou meros terrenos, cujos proprietários tivessem falecido e não tivessem herdeiros, a fim de, usurpando-se a identidade dos proprietários por meio de documentos de identificação e procurações falsos, serem vendidos a terceiros, inviabilizou irremediavelmente a manutenção do vínculo funcional à Administração Pública, por quebra de confiança geral necessária ao exercício das funções em que o ora recorrente estava provido, o que justifica a aplicação da pena disciplinar expulsiva;
14. Não se vislumbram pois quaisquer vícios que inquinem a validade jurídica do acto impugnado, inexistindo qualquer causa de anulabilidade;
15. Pelo que, face à apresentação de provas documentais que se dão aqui por integralmente reproduzidas que se anexam, se dá por descipiendo formular mais alegações, deixando à consideração de V.Exa. tecer os juízos de valor que entender mais justos, tendo em vista a procura da justiça.
Termos em que, se pugna pela manutenção do despacho recorrido, proferido em 4 de Fevereiro de 2008, pela Senhora Secretária para a Administração e Justiça, e pela consequente negação de provimento ao presente recurso.
Ao recurso respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso.
Cumpre conhecer.
Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Como pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:
- A Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça, por Despacho nº 59/2006, de 24 de Maio, ordenou, nos termos do número 2 do artigo 318°, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, a instauração de um processo disciplinar contra A, 2° Ajudante, 3° Escalão, da Conservatória do Registo Predial.
- Em virtude do mesmo ter sido detido preventivamente no âmbito dos autos de acção penal que viria a correr os seus termos junto dos Tribunais da RAEM.
- E que culminaria com a sua condenação em cúmulo na pena de prisão efectiva de oito anos e seis meses, pela prática, em cumplicidade e na forma consumada, de três crimes de burla e, em autoria material e na forma consumada, de um crime de peculato.
- Realizadas as diligências de recolha de provas e de averiguações das respectivas provas, foi deduzida em 30 de Outubro de 2007, a competente acusação, tendo o arguido apresentado a sua defesa, em 26 de Novembro do mesmo ano, dentro do prazo fixado para o efeito.
- Concluídas as diligências de provas o processo foi remetido à Secretária para a Administração e Justiça, devidamente instruído por um relatório final e, em face da análise do relatório.
- Decidiu, a Senhora Secretária para Administração e Justiça, aplicar mediante proposta do Instrutor a pena de demissão, nos termos do artigo 322º do ETAPM, conjugado com o número 1 das Ordens Executivas nºs 11/2000 e 6/2005.
- Ordenando à Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça, que procedesse à notificação do arguido, do referido despacho, advertindo que o mesmo pode ser impugnado mediante recurso a interpor para este douto Tribunal, no prazo de 30 dias, nos termos em que se transcreve para facilitação de análise:
“A, segundo-ajudante, 3° escalão, da Conservatória do Registo Predial, abusando do acesso, aos registos dos imóveis no exercício de funções nesta Conservatória, procurou terrenos que se constituíam objectos de dois crimes de burlas praticadas nos anos de 2004 e 2005, factos que foram provados no processo penal e em relação aos quais foi instaurado o presente processo disciplinar (vide ponto 4 da página 2 a ponto 14 da página 5 da Informação/Proposta n.° 2/DSAJ/DAT.2008).
Relativamente as factos acima referidos, o instrutor nomeado para o efeito ouviu, nos termos da lei, a testemunha e o A, permitindo-o apresentar defesa em relação a acusação deduzida (vide páginas 212 a 221 do Processo n.º 01/DSAJ/DAT/2 006).
Os feridos actos que o A praticou violam os deveres de zelo e sigilo previstos no artigo 279.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 87/89/M, de 21 de Setembro, constituindo circunstancia agravante prevista na alínea d) (“o conluio com outros indivíduos para a prática da infracção”) do n.º 1 do artigo 283.º do ETAPM.
Atendendo a gravidade das infracções praticadas pelo A e a indignidade e falta de idoneidade moral para o exercício das funções, estão preenchidos os dispostos no n.º 1 e nas alíneas h) e o) do n.º 2 do artigo 315.º do ETAPM.
Nestes termos, aplico ao A a pena de demissão, nos termos do artigo 322.º do ETAPM, conjugado com o n.° 1 das Ordens Executivas n.ºs 11/2000 e 6/2005.
Cabe à Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça notificar o Sr. A do presente despacho, que pode ser impugnado mediante recurso a interpor para o Tribunal de Segunda Instancia, dentro do prazo de 30 dias.”
- Mais se provou em sede de instrução que o Recorrente é 2º ajudante, 3º escalão da Conservatória do Registo Predial e pertence aos quadros dos Serviços dos Registos e Notariado e que,
- De 3 de Outubro de 1995 (data de início de funções na função público) até 17 de Março de 2005 (dia anterior à data em que foi detido), a antiguidade do Recorrente na função pública correspondia a 19 anos, 5 meses e 21 dias,
- variando a sua classificação de serviços de 1988 a 2004 entre bom ou superior, sendo que nunca tinha sido advertido ao longo desses anos todos de serviços na Administração Pública de Macau, onde de resto sempre teve um comportamento exemplar.
- É do despacho da Senhora Secretária para a Administração e Justiça supra que ora se recorre em virtude de se entender que o mesmo padece de vários vícios, designadamente o de forma, violação do princípio da proporcionalidade, entre outros como daremos conta a seguir.
Conhecendo.
O recorrente no seu recurso levantou essencialmente as seguintes questões:
1. Falta da audição do particular nos termos do artigo 93º do CPA;
2. Vício da insuficiência da instrução, tanto por falta da delimitação dos factos susceptíveis da condenação do recorrente, como ter confundido a questão de facto com a questão jurídica, em concreto:
i. Ter unicamente a condenação da demissão do recorrente com base na sentença condenatória;
ii. Faltar em proceder diligências necessárias nos termos do artigo 86º do CPA;
iii. Faltar na investigação da prova apresentada pelo arguido ora recorrente, para a sua defesa, durante o procedimento disciplinar;
3. Vícios de desproporcionalidade e inadequada da medida da pena de demissão.
A apreciar destas questões trazidas para o presente contencioso, não se custa aderir em todos os fundamentos do douto parecer do Ministério Público, que se transcreve no seguinte, no sentido de julgar improcedência do mesmo recurso:
“Vem A impugnar o despacho da Secretária para a Administração e Justiça de 4/2/08 que, na sequência de processo disciplinar, lhe aplicou a pena de demissão, assacando-lhe vício de forma, por preterição do direito de audiência previsto no artº 93º e sgs do CPA, bem como de violação de lei por assacado déficit de instrução, insurgindo-se, finalmente, contra a medida disciplinar concretamente aplicada, que considera desproporcionada e inadequada e que, a seu ver, deveria ser substituída pela de aposentação compulsiva.
Não lhe assiste, contudo, em nosso critério, qualquer razão.
Sustenta o recorrente não lhe ter sido dada a possibilidade de se pronunciar sobre a medida da pena que o instrutor do processo propôs no relatório final, pretendendo que com tal se terá afrontado o disposto no artº 93º e segs do CPA.
Ora, como bem sustenta a entidade recorrida, tem vindo a ser uniformemente entendido, designadamente nos tribunais superiores desta Região que, no caso de processo disciplinar, a audiência do arguido está especialmente garantida e regulamentada, não envolvendo qualquer diminuição das garantias de defesa, já que aquele tem de ser obrigatoriamente ouvido no processo, contra o mesmo sendo deduzida acusação à qual pode responder, indicando testemunhas ou qualquer outro meio de prova, não se tornando, pois, necessário ouvi-lo novamente antes da decisão definitiva, ao abrigo dos normativos que invoca.
No caso, pode facilmente constatar-se que o recorrente foi ouvido no procedimento, foi acusado e notificado da acusação e para apresentar a sua defesa, o que acabou por fazer, designadamente por escrito (fls 215 a 217, 723 a 735 e 738 a 746 do instrutor apenso), resultando, assim, clara a inverificação do vício de forma assacado.
Por outra banda, na aplicação da pena disciplinar em questão, fundou-se a entidade sancionadora nos factos considerados como provados decorrentes do respectivo procedimento disciplinar, os quais haviam já sido dados como provados no âmbito do processo crime que correu termos por tribunais desta Região, no qual o recorrente foi condenado, com trânsito em julgado, na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão, como autor, na forma consumada, de 3 crimes de burla e um de peculato.
Ora, pese embora a autonomia do processo disciplinar relativamente ao processo penal, a verdade é que a sentença criminal transitada em julgado é definitiva quanto à existência dos factos e seus autores, não podendo, pois, estes ser postos em causa, nada impedindo, porém, que a Administração possa proceder a qualificação diversa desses factos à luz do direito disciplinar.
Seja como for, como se frisou, a condenação, com trânsito, do arguido em processo penal por determinados factos não pode deixar de implicar a prova desses mesmos factos em processo disciplinar.
Razão por que não poderá deixar de concluir-se que os factos que originaram a punição disciplinar em crise se encontram suficientemente comprovados nos autos, designadamente quanto à foram de participação do recorrente nos mesmos, sendo certo que também se não vislumbra que não nenhum sido levadas a cabo as diligências pertinentes de investigação, designadamente as requeridas pelo recorrente em sede da sua defesa, tendo, nomeadamente, sido ouvida a testemunha pelo mesmo apresentada (fls 220/221 do instrutor) e solicitadas e obtidas as gravações dos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência em processo criminal, não se detectando qualquer omissão que como frisa a recorrida, “obstasse a uma decisão mais favorável ao ora recorrente ou que afectasse o correcto exame e a justa decisão no processo disciplinar”.
Nesta sede, pretende ainda o recorrente que se impõe, pelo menos, um juízo menos severo que adira com justiça à culpa concreta apurada, afigurando-se-lhe ter sido violada a norma do n.º 3 do artº 315º ETAPM, por se não ter aplicado a pena de aposentação compulsiva em detrimento da pena de demissão, a qual, no seu critério se apresente como inadequada e desproporcionada.
Se, no que respeita à apreciação da integração e subsunção dos factos na cláusula geral punitiva a actividade da Administração está sujeita à sindicabilidade do Tribunal, o mesmo não se pode dizer quando à aplicação das penas, sua graduação e escolha da medida concreta., existindo, neste âmbito, discricionariedade por parte da Administração, a qual passa pela opção entre emitir ou não o acto sancionatório e ainda pela escolha entre vários tipos e medidas possíveis.
Neste último campo, não há controlo jurisdicional sobre a justeza da pena aplicada dentro do escalão respectivo, em cuja fixação o juiz não pode sobrepor o seu poder de apreciação ao da autoridade investida do poder disciplinar.
A intervenção do Juiz fica apenas reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas contingências em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entra a sanção infligida e a falta cometida, dado não poderem ser legitimados, em nenhuma circunstância, comportamentos da Administração que se afastem dos princípios da justiça e da proporcionalidade que necessariamente devem presidir à sua actuação, sendo que, contudo, com fundamento no princípio da separação de poderes, o controlo jurisdicional só se efectivará se a injustiça for notória ou a desproporção manifesta.
No caso vertente, não se verifica a referida desproporção ou manifesta injustiça quanto à pena de “demissão” concretamente inflingida ao recorrente, pelo que não tem o tribunal de intervir nessa actividade da Administração, verificada que está a correcta integração dos factos na cláusula geral punitiva e a proporção e justiça da medida aplicada.
A pena de demissão é de aplicar quanto a gravidade da conduta do arguido inviabiliza a manutenção da relação funcional.
Para a apreciação desse conceito de inviabilização de manutenção da relação funcional, a Administração goza de grande liberdade de apreciação, não se devendo aquela relação manter sempre que os actos praticados pelo arguido, avaliados e considerados no seu contexto, impliquem para o desempenho da função prejuízo de tal monta que irremediavelmente comprometa o interesse público que aquele deveria prosseguir, designadamente a confiança, o prestígio e o decoro que dev merecer a actuação da Administração, de tal modo que o único meio de acudir ao mal seja a ablação do elemento que lhe deu causa.
Ora, afigura-se-nos evidente que inviabiliza a manutenção da relação funcional a conduta do recorrente que, enquanto oficial dos registos e notariado na Conservatório do Registo Predial, procura imóveis, edificados ou meros terrenos, cujos proprietários tivessem falecido e não tivessem herdeiros, a fim de, usurpando a identidade desses proprietários por meio de documentos de identificação e procurações falsas, serem vendidos a terceiros, denotando tal conduta grande falta de idoneidade moral e tornando-se denotando tal conduta grande falta de idoneidade moral e tornando-se evidente o reflexo negativo que a manutenção do vínculo ao serviço traria para o prestígio deste.
Por outro lado, o que resulta do preceituado no n.º 3 do artº 315º ETAPM é que, tratando-se de infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico/funcional e na hipótese de verificação do condicionalismo ali prescrito relativo ao tempo de serviço para aposentação, a entidade sancionatória goza do poder discricionário de escolha ente a pena de demissão e a pena de aposentação compulsiva, sendo que a vinculação legal não reside na obrigatoriedade de aplicação da pena de aposentação compulsiva se o funcionário tiver mais de 15 anos de serviço, mas na obrigatoriedade de aplicação da pena de demissão se os não tiver ainda completado.
Donde, no caso, ainda que concedendo-se preencher o recorrente aquele condicionalismo do tempo de serviço para a aposentação, não se encontrar a Administração vinculada à aplicação da pena pelo mesmo almejada.
Razões por que, sem necessidade de maiores considerações, somos a concluir que, por não ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou de qualquer outro de que cumpra conhecer, deverá ser negado provimento ao presente recurso.“
Nesta conformidade, por não terem ocorrido os vícios assacados no acto ora recorrido, os fundamentos do recurso contencioso interposto não podem ser procedentes.
Pelo exposto, acordam neste Tribunal de Segunda Instância em julgar improcedente o recurso pelo recorrente A.
Custas pelo recorrente.
RAEM, aos 29 de Novembro de 2012
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Choi Mou Pan Vitor Manuel CarvalhoCoelho
(Relator) (Presente)
(Magistrado do M.oP.o)
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto)
TSI.176-2008 Página 1