打印全文
Proc. nº 805/2012
(Recurso jurisdicional)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 07 de Fevereiro de 2013
Descritores:
-Nulidade processual
-Indeferimento liminar
-Art. 59º do CPAC: correcção da petição inicial
-Princípio do contraditório
-Propriedade Industrial
-Recurso judicial
-Legitimidade activa


SUMÁRIO:

I - A circunstância de o tribunal ter mandado citar a entidade recorrida não forma caso julgado formal sobre excepções que podiam, mas não foram, causa de indeferimento liminar, nos termos do art. 399º, nº2, do CPC.

II - Tanto ao abrigo do art. 59º do CPAC, como do art. 397º do CPC, a regularização da petição só se justifica ante irregularidades ou deficiências formais que não sejam motivo para indeferimento, o que não sucede com a ilegitimidade activa singular, que é insanável.

III - Mesmo que o recorrente não tenha sido expressamente notificado para se pronunciar sobre matéria exceptiva, nem por isso se pode dizer estar cometida a nulidade do art. 147º do CPC ou violado o princípio do contraditório se ele foi notificado oficiosamente da contestação da entidade administrativa e do recorrido particular, tendo podido pronunciar-se sobre os respectivos articulados.

IV - O recurso das decisões da DSE a que se refere o art. 275º do RJPI tem a natureza de um recurso contencioso.

V - Não é qualquer pessoa que pode interpor esse recurso, mas sim somente aquela que invoque e prove ser directa e efectivamente prejudicada com a decisão da DSE.
VI - Não revela legitimidade activa para o recurso de decisão que concede a outrem o registo da patente de uma nova mesa de jogo de “baccarat” quem se limita a comercializar e distribuir baralhadores de cartas, mesas de jogo e produtos correlacionados.

VII - Não é pelo facto de certa decisão administrativa poder padecer de nulidade e, portanto, se declarada, ter efeito “erga omnes”, que confere desde logo legitimidade ao recorrente, que, assim, não está dispensado de revelar e provar os factos do interesse em recorrer e do prejuízo para a sua esfera que da decisão administrativa advenha.













Proc. nº 805/2012

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
“A”, com os demais sinais dos autos, redenominada no decurso do processo como “B, Limitada”, cfr. fls. 482 (doravante apenas “B”), recorreu do despacho da autoria do Chefe de Departamento da Propriedade Industrial da Direcção dos Serviços de Economia em 26 de Julho de 2011 que concedeu o registo de patente de invenção nº I/461 requerido por C, também devidamente identificado.
*
Tendo a entidade recorrida1 suscitado a ilegitimidade activa da recorrente, veio a ser na oportunidade proferido despacho saneador que julgou procedente a excepção.
*
É desta decisão que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional apresentado pela recorrente “B”, em cujas alegações foram inscritas as seguintes conclusões:
«A) Quanto à Relevância dos Fundamentos do Recurso para a Juízo da, Legitimidade ad causam da ora Recorrente:
1. A articulação, no requerimento inicial de recurso, de factos que a lei sanciona com a nulidade da patente e com a da nulidade do acto da Administração pela qual a mesma foi concedida e o facto de que a lei admita essa alegação em sede do recurso previsto e disciplinado pelos Artigos 275º e seguintes do Regime Jurídico da Propriedade Industrial determina a mobilização do critério de legitimidade ad causam previsto no, 2 do Artigo 123º do Código de Processo Administrativo Contencioso e, bem assim, no Artigo 49º do Regime Jurídico da Propriedade Industrial.
2. Ainda que assim pudesse não se entender, a consideração devida a essa mesma circunstância - seja a invocação de factos a cuja verificação a lei associa como consequência a nulidade da patente - estabelece inelutavelmente a conclusão de que a Recorrente tem legitimidade para o recurso.
3. Concretamente, quanto à conclusão imediatamente anterior, deve considerar-se que a constituição de um direito de exploração em regime monopolístico (seja, de exclusividade) da patente, como bem da propriedade industrial, na circunstância em que qualquer dos pressupostos legais de patenteabilidade não estejam verificados, dá causa a uma restrição ilícita da liberdade de iniciativa económica, do direito ao estabelecimento e, em especial, ao direito de actuação em mercado concorrencial;
4. Tal consequência - sancionada por lei como ilícita e sancionada maximamente com a sanção de nulidade do objecto da protecção constitui uma lesão directa dos agentes económicos cuja actividade se inscreva no domínio em que o produto ou processo patenteado tenham relevância e utilidade económicas.
5. Acresce que, tendo designadamente sido invocada violação de estado da arte relativamente a produtos e processos não considerados no âmbito da revisão técnica efectuada a mando da entidade recorrida - e sendo tais produtos e processos res communis - o registo indevido da patente tem como consequência necessária e imediata que a ora Recorrente tenha deixado de poder fazer utilização, que de outro modo lícita, desses bens já legalmente insusceptíveis de apropriação exclusiva.
B) Incidentalmente: (i) A Impertinente consideração pela Sentença Recorrida de Acórdão do Tribunal de Segunda Instância sobre o problema da legitimidade ad recursum da parte absolvida do pedido pela instância e (ii) a desconsideração de decisões desse mesmo Venerando Tribunal sobre a legitimidade em processos que, materialmente, se qualifiquem como de contencioso administrativo:
1. A posição tomada pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância quanto ao problema da justificação da legitimidade ad recursum de decisão judicial da instância pela parte processual que, tendo sido por esta absolvida da instância, ainda assim haja sido prejudicada, não parece pertinente;
2. Pertinente é o reconhecimento da natureza substancialmente contenciosa administrativa do recurso previsto e disciplinado nos Artigos 275º e seguintes do Regime Jurídico da Propriedade Industrial e a posição que quanto ao problema da legitimidade, em face do regime jurídico instituído pelo Artigo 33º do Código de Processo Administrativo Contencioso, tem vindo a ser adoptada por esse Venerando Tribunal.
C) Subsidiariam ente: Sobre o incumprimento do dever legal de suprimento da excepções dilatórias e, em qualquer caso, sobre o incumprimento do dever de audição para exercício do contraditório:
1. A não emissão de despacho convidando ao suprimento da excepção de ilegitimidade, quer no despacho liminar (Artigos 45º e 46º do Código de Processo Administrativo Contencioso ou da alínea a) do no. 1 do Artigo 427º e do no. 2 do Artigo 6º, ambos do Código de Processo Civil), constitui incumprimento de tramitação processual que tem como consequência a preterição da faculdade de reforma da petição de recurso com manutenção do benefício do prazo;
2. Mesmo que a douta sentença recorrida houvesse de concluir pela insusceptibilidade de suprimento da excepção de ilegitimidade, tendo a mesma sido suscitada, quer pela parte contrária, quer pela entidade recorrida, foi violado o direito que, nos termos do disposto no Artigo 61º do Código de Processo Administrativo Contencioso, à Recorrente assiste de sobre tal matéria se pronunciar.
3. Acha-se, de resto, também, incumprida a tramitação legal aplicável na parte em que a mesma prevê a vista ao Ministério Público, nos termos do Artigo 58º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Nestes termos, e nos mais em Direito consentidos que com o douto suprimento de V. Exas. se mostrem relevantes, requer que o presente recurso seja julgado procedente, por provado e por legalmente justificado e que, como consequência:
a) Seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que, concluindo pela legitimidade da ora Recorrente, ordene o prosseguimento dos Autos segundo os demais termos de Lei para conhecimento do mérito do peticionado;
Ou, no caso em que assim se não entenda
b) Seja a sentença recorrida declarada nula e substituída por outra que convide a Recorrente ao suprimento da excepção invocada
Para que, pela vossa douta palavra, se cumpra a consueta JUSTIÇA!».
*
A entidade recorrida respondeu ao recurso formulando as seguintes conclusões alegatórias:
«1. Em primeiro lugar, a nossa Direcção não concorda com a frequente citação dos dispostos no Código de Processo Administrativo Contencioso pela recorrente, porque deve-se aplicar a lei processual civil ao presente processo recorrido.
2. Em segundo lugar, nem todas as faltas de pressupostos processuais têm que ser supridas, e o juiz só providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais ou de excepções dilatórias quando essa falta seja susceptível de suprimento. In casu, por o juiz do tribunal a quo entender que não era necessário tomar qualquer medida de suprimento da ilegitimidade da recorrente, não é necessário proferir despacho destinado a providenciar pelo suprimento da respectiva falta. Ao mesmo tempo, por a ilegitimidade da recorrente não pode ser suprida através de qualquer medida, só se pode suprir os respectivos vícios quando se verifiquem deficiências ou irregularidades formais da petição, pelo que o tribunal a quo não violou os dispostos no art.º 427.º, n.º 1, al. a) e no art.º 6.º do Código de Processo Civil, nem padece do vício de ilegalidade.
3. Além disso, o conhecimento dos pressupostos processuais, tais como a legitimidade processual, pode ser realizado depois da fase do despacho liminar, e não aparece necessariamente a situação de indeferimento liminar, pelo que o tribunal a quo pode conhecer da questão de legitimidade ao fazer a sentença. Por a recorrente não ter legitimidade para interpor recurso contencioso, o tribunal a quo não podia continuar a conhecer do mérito do respectivo recurso contencioso, e teve de proceder à absolvição da instância.
4. O Ministério Público não precisa intervir no respectivo processo para a defesa da legalidade e dos interesses que a lei determine, pelo que os autos não precisam ser submetidos ao Ministério Público, e o tribunal a quo não violou ou afectou de forma grave as competências do Ministério Público previstos no art.º 56.º da Lei de Bases da Organização Judiciária.
5. A patente n.º I/461 da recorrente já passou o exame da Direcção Nacional da Propriedade Intelectual e reúne os requisitos de “novidade”, “criatividade” e “aplicação industrial”, pelo que a nossa Direcção aprovou o pedido de registo da supracitada patente segundo o resultado do exame. Assim não se verifica a chamada aprovação do registo sem reunir os requisitos da concessão de patente, e não se verifica a situação de que existe no mercado patente que não reúna requisitos de aprovação e que limita e prejudique os direitos e interesses dos outros operadores.
6. A recorrente não é requerente da patente de invenção n.º I/461, pelo que não é titular do direito, e não deduziu qualquer reclamação da referida patente de invenção, e não é sucessor das supracitadas pessoas, razão pela qual a recorrente só pode interpor o presente recurso contencioso em nome de pessoa directa e efectivamente prejudicada pelas decisões da DSE, porém, a recorrente não fez na sua petição qualquer explicação deste assunto ou mostrou qualquer documento para provar que tinha sido directa e efectivamente prejudicada pelas decisões da nossa Direcção, razão pela qual a recorrente não satisfaz a condição referida no art.º 276.º e não tem legitimidade para recorrer.
7. Em relação à supracitada conclusão, refere-se na sentença do tribunal a quo que segundo a concepção de “legitimidade” prevista pelo art.º 33.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, além das pessoas singulares ou colectivas que tivessem sido lesadas pelo acto recorrido, as pessoas singulares ou colectivas que aleguem interesse directo, pessoal e legítimo no provimento do recurso também têm legitimidade para interpor recurso contencioso, explicando-se o que é interesse directo, pessoal e legítimo. Reconheceu-se finalmente que a recorrente não possuía o supracitado interesse directo, pessoal e legítimo, e não tinha legitimidade para interpor recurso contencioso do registo da patente n.º I/461.
8. Em fim, a recorrida obteve legalmente o registo da patente do respectivo produto, pelo que é protegida por lei. Antes de pedido de anulação do despacho da DSE que aprovou a patente n.º I/461 apresentado por qualquer interessado ou declaração de nulidade desta patente e confirmação por órgão judicial, a respectiva patente ainda é válida, gozando dos direitos de uso exclusivo e de exclusão, bem como protecção jurídica. Por isso, são improcedentes os fundamentos da recorrente.
Com base nisso e segundo a conclusão acima referida, pede-se ao Exm.º Sr. Dr. Juiz do TSI para julgar improcedentes todos os fundamentos de facto e de direito do presente recurso, e manter a decisão judicial feita pelo tribunal a quo».
*
C também contra-alegou concluindo as suas alegações do seguinte modo:
«1. A lei processual civil é a lei que se aplica subsidiariamente ao regime jurídico de propriedade industrial.
2. O recurso judicial de uma decisão da DSE que concedeu o registo de um direito de propriedade industrial é regido pelas normas de direito processual civil.
3. A ilegitimidade é um pressuposto processual em regra insanável.
4. Só é possível suprir a falta de legitimidade no caso de litisconsórcio necessário, caso em que o juiz pode convidar as partes a suprirem a ilegitimidade através do incidente da intervenção principal provocada.
5. Em sede de recurso judicial, não está nos poderes do juiz convidar as partes a sanar ou a suprir os pressupostos processuais;
6. A legitimidade para recorrer de uma decisão da DSE e das decisões do tribunal de primeira instância afere-se com base no artigo 276º do RJPI e com base no artigo 585º nº 2 do CPC;
7. A Recorrente não demonstrou ser uma pessoa “directa e efectivamente prejudicada pela decisão”, razão pela qual não está revestida de legitimidade para interpor o presente recurso judicial;
8. O conceito de legitimidade não pode ser interpretado com base em conceitos indefinidos e vagos como o “motivo social, liberdade de comércio e o interesse público”;
9. As alegações da Recorrente em como a patente se encontra ferida de nulidade por não respeitar os requisitos de patenteabilidade caiem fora do objecto da sentença recorrida, pelo que deverão ser tidas como não escritas as alegações explanadas no Capítulo II e III da petição de recurso;
10. O Tribunal não pode conhecer da validade da patente concedida na medida em que tal questão não foi abordada na sentença recorrida.
Nestes termos e nos mais de Direito, deverá o presente recurso ser julgado improcedente por não provado, mantendo-se a sentença judicial proferida pelo Tribunal de Primeira Instância».
*
Cumpre decidir.
***
II - Os Factos
1- C apresentou em 20/07/2007 à entidade recorrida o pedido de concessão de patente de invenção nº I/461 com o título de “mesa de jogo de bacarat paraíso”.
2- No mesmo pedido o requerente pediu que lhe fosse reconhecido o direito de prioridade, sendo o pedido nº 11/725,719.
3- O pedido de concessão da patente foi publicado no Boletim Oficial nº 10, II série, de 5/03/2008.
4- Em 5 de Agosto de 2010 o requerente pediu o exame quanto à matéria e a entidade recorrida entregou este pedido à Direcção Nacional da Propriedade Intelectual para elaboração do relatório de pesquisa internacional e relatório.
5- Em 2/12/2010 aquela Direcção Nacional da Propriedade Intelectual enviou para a entidade recorrida o relatório de exame, que concluiu que a invenção do requerente e as reivindicações 1 a 41 não correspondiam à exigência de criatividade.
6- Em 14/12/2010 a requerente foi notificada do relatório, após o que ela entregou na entidade recorrida uma exposição sobre o relatório e apresentando as modificações.
7- Tal exposição e modificações apresentadas pela requerente foram enviadas pela entidade recorrida para a Direcção Nacional da Propriedade Intelectual em 29/03/2011 para a elaboração do segundo relatório.
8- Em 8/07/2011 aquela Direcção Nacional entregou o segundo relatório, após o que a entidade recorrida em 26/07/2011 deferiu o pedido de concessão da patente nº I/461, que foi publicado no Boletim Oficial nº 33, II série, de 17/08/2011.
9- A recorrente é uma sociedade comercial que tem como actividade a venda e distribuição de baralhadores automáticos de cartas, mesas de jogo e respectivos produtos.
***
III - O Direito
1 – Da natureza do acto que concede a patente
Cremos que, antes de tudo, importa começar por indagar da natureza do acto que concede a patente, mesmo para ver até que ponto algo da natureza substantiva dele pode repercutir-se na relação jurídico-processual em presença. É que pode não ser de todo despiciendo saber se ao caso se podem aplicar as normas do CPC ou as do CPAC, ou ambas porventura, para a resolução das questões que a recorrente erigiu no presente recurso.
A este respeito, o recorrido C apelou à concepção de Mário Esteves de Oliveira (in Direito Administrativo, I, 1980, pag. 393), para se fazer eco de uma ideia ali transmitida segundo a qual actos deste género não são actos administrativos porque o órgão estadual não define os direitos ou deveres do Estado no confronto de outros sujeitos de direitos, pois que se limita a criar ou reconhecer direitos e deveres de um particular perante um e outros; a Administração não é parte na relação jurídica e, portanto, a sua intervenção não se consubstancia na prática de actos administrativos.
Ora, a verdade é que esta posição inicial viria a não ser mantida por este mesmo autor, como veremos. Aliás, a questão nasce em torno da dificuldade que resulta de o legislador remeter para os tribunais comuns o conhecimento dos recursos das decisões tomadas neste âmbito. E foi até por isso mesmo que os tribunais portugueses oscilaram entre uma e outra das posições. O acórdão do STA/Pleno de 21/03/1963, no Proc. nº 1262, afirmou a competência dos tribunais administrativos por partir da premissa de que a actividade da administração pública do direito privado tinha uma feição administrativa exercida através de actos do poder público com a natureza de actos administrativos. Esta posição foi anotada favoravelmente por Afonso Queiró, in RLJ, ano 98º, nº 3286, pag. 10 e sgs. E neste sentido, passou a dominar a posição segundo a qual, em matéria registral, os órgãos da Administração agiam através de actos administrativos contra os quais se deveriam seguir as regras de impugnação de actos administrativos, salvo naqueles casos concretamente previstos que conferissem a competência para o seu conhecimento aos tribunais comuns, como era o caso do art. 203º do CPI em matéria de concessão ou recusa de patentes, depósitos ou registos.
Este entendimento viria a ser posto em causa através do Ac. do STA de 2/12/1993, Proc. nº 31831 e, mais tarde, pelo acórdão do STJ de 22/1/97, BMJ, nº463, pag. 491, ao manifestarem a preferência pelo foro comum, com o argumento de que a intervenção da Administração não criava uma relação jurídico-administrativa. A doutrina destes arestos assentava na ideia de que a gestão pública do direito privado só estará sujeita ao direito administrativo se fosse prosseguida fundamentalmente no interesse público, a ele sujeitando os direitos e interesses particulares atingidos; mas estaria já sujeita ao direito privado se a Administração apenas interviesse para garantir a genuinidade, a certeza e a eficácia dos direitos civis, como sucede no domínio da propriedade industrial, em que a intervenção administrativa visa essencialmente proteger esse direito e a concorrência, que são do interesse directo dos particulares.
O STA viria a reiterar a competência dos tribunais administrativos, nomeadamente através do Ac. de 30/1/95, Rec. 39.305, ao admitir a existência nesse tipo de casos de uma relação jurídico-administrativa, submetida a normas materiais e a princípios de direito público administrativo (O mesmo STA viria ainda a conhecer de recursos respeitantes a actos de declaração de caducidade de direitos de propriedade industrial, sem questionar a competência, como sucedeu, por exemplo, com os acórdãos de 16/2/2000, Proc. 34.071, de.16/6/99, Proc.44.298 e de 15/5/97, Proc. 34.577).
Este tema, porém, viria a ser objecto de nova reflexão por Mário Esteves de Oliveira (“A publicidade, o notariado e o registo públicos de direitos privados” [itálico no original], in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, pag. 471 e sgs.). Este autor, sustenta a administratividade da relação registral ao asseverar que a actividade administrativa neste plano se exprime através de actos de autoridade a que não faltam os elementos do acto administrativo nos planos subjectivo, objectivo e estrutural, tal como o art. 120º do CPA o proclama (em Macau, o artigo equivalente será o art. 110º do CPA. São suas as palavras que seguem: “Desde logo, não há direito administrativo e relação jurídica administrativa só aí onde o interesse público conflitua com (e predomina sobre) interesses particulares, mas também, quando ele consiste em servir de garante de realização, de modo colectivamente ordenado e organizado, dos direitos e interesses individuais mais importantes da pessoa e da propriedade dos particulares.
Esses interesses do ordeiro e eficiente funcionamento da vida em sociedade e do mercado e da economia (dos quais a publicidade, o notariado e o registo públicos constituem instrumentos indispensáveis) são interesses públicos e não apenas do interesse de cada um dos sujeitos que aí vivem ou dos operadores que nele concorrem. Nem de outro modo se justificaria a intervenção activa nesta matéria dos Poderes Públicos. (...)
O registo público de actos e direitos de interesse individual destina-se, portanto, a satisfazer o superior interesse da colectividade de que certos direitos, estados e situações dos indivíduos sejam dotados de fé e garantia (reserva) públicas. Destina-se, digamos assim, a fornecer o título de legitimidade (ou legitimação) jurídica de certa situação das pessoas e dos seus bens, face a outros.
(...)”2.
Esta matéria foi também já abordada pelo TSI desde 7/03/2002, com o acórdão proferido no Proc. nº 230/2001, e nele foi decidido que “O recurso de recusa de registo de marca tem a natureza de acção com similitude ao recurso contencioso de anulação. Apenas se vêem três, únicos, importantes desvios: o primeiro em sede de competência, que é do foro comum; o segundo por se tratar de um contencioso de jurisdição, que não de mera anulação; finalmente, são aplicáveis as normas adjectivas comuns, não o Código de Processo Administrativo Contencioso”.
O mesmo tribunal em várias outras ocasiões acabaria por reiterar esta posição, insistindo na tónica de que o recurso judicial a interpor deste tipo de “decisões administrativas”, tal como permitido pelo art. 275º do RJPI, não deixa de ter a natureza congénita de um recurso contencioso.3 Trata-se de uma posição que tem sustento até mesmo na própria literalidade normativa. Com efeito, se bem que o art. 276º do RJPI se fique pela expressão “recurso judicial”, sem adição de qualquer qualificativo, o art. 281º do mesmo diploma já o trata como “recurso contencioso”. É certo que, diferentemente do que sucede normalmente com os recursos contenciosos, cuja missão é meramente declarativa (são recursos de legalidade: art. 20º do CPAC), aqui o tribunal substitui a decisão recorrida em caso de procedência do recurso (o recurso é, por isso, de pena jurisdição: cfr. art. 279º do RJPI). Porém, não pode ser essa circunstância a subtrair a natureza ao recurso em apreço, se tivermos como certo que o recurso contencioso também tem em certos casos arremedos de plena jurisdição, tal como sucede quando nele se cumula o pedido de determinação à prática de acto legalmente devido (cfr. art. 24º, nº1, al. a), do CPAC) ou o de condenação por indemnização por perdas e danos (cfr. art. 24º, nº1, al. b), do CPAC).
E por outro lado também não se descobre qualquer obstáculo à conclusão alcançada pelo facto de este “recurso contencioso” estar previsto em lei avulsa. Na verdade, para além do critério material que envolve a natureza do recurso, sempre dependente de um acto administrativo sindicável judicialmente, desde que reunidas certas características de lesividade e definitividade, não deixa de haver casos em que é o próprio legislador ordinário que, pontualmente, estabelece a possibilidade de recurso contencioso directo a partir de certas decisões da Administração, em matérias específicas, circunstância em que ao julgador e aplicador da lei deixa de interessar a temática que envolve a recorribilidade contenciosa a partir daquelas referidas características.
E, assim sendo, menos se deve esquecer a circunstância de o próprio CPAC permitir que lei dispersa confira aos recursos contenciosos a natureza de plena jurisdição (cfr. art. 20º: “excepto disposição em contrário…”).
Questão diferente é a que decorre de uma eventual interpretação das normas que conflua numa dissensão entre o postulado jurídico-processual do contencioso puro e um conjunto de regras, diríamos especiais, que façam divergir o caminho adjectivo para se atingir o conhecimento da bondade legal de certas decisões administrativas em procedimentos especiais, como parece ser o caso presente. Com efeito, se aceitarmos que este recurso contencioso deva observar as regras especiais previstas no RJPI (arts. 276º a 283º), então teríamos que reconhecer que ele se rege por mecanismo próprio no que se refere à sua tramitação e que se afasta do ritualismo estabelecido no CPAC.
Será útil lembrar que o RJPI decorre do D.L. nº 97/99/M, de 13 de Dezembro e que o CPAC deriva do D.L. nº 110/99/M, também de 13 de Dezembro. O RJPI nasce na mesma data de calendário, mas na ordem cronológica de consagração legal é anterior ao CPAC. Ora, este diploma estabelece no seu art. 1º que “O processo contencioso rege-se pelo disposto no presente código, nas leis sobre organização judiciária e, subsidiariamente e com as necessárias adaptações, na lei de processo civil”. Ou seja, embora este preceito não afaste a possibilidade de existência de recursos contenciosos em diplomas especiais, já parece cometer-lhes a indicação das regras por que devam nortear-se. E essas regras só podem ser as do próprio CPAC, as dos diplomas sobre organização judiciária (v.g., Lei nº 9/99, de 20/12) e, subsidiariamente, as do Código de Processo Civil. Parece isto querer dizer que, no que respeita à tramitação processual, o recurso contencioso talvez não possa mais seguir regras especiais previstas em diplomas avulsos. Neste sentido, por exemplo, sem prejuízo de posterior e mais profunda análise da situação, mas que ora não está em discussão, não é temerário admitir que as ditas regras adjectivas do RJPI se possam talvez considerar tacitamente revogadas pelo art. 1º do CPAC cedendo perante as que este último diploma consagra.
Mas, avancemos no recurso.
*
2 - Da nulidade da decisão recorrida
Embora a recorrente tenha feito a invocação da nulidade do despacho saneador e a título “subsidário” na secção C) das conclusões das alegações, cremos que por aí devemos começar a análise do recurso, uma vez que se trata de matéria que pode prejudicar a matéria do fundo do recurso.
Vejamos, pois.
Entendeu o despacho saneador recorrido que a recorrente não demonstrou ser “pessoa directa e efectivamente prejudicada” com a decisão de concessão do registo de patente em apreço, tal como obrigaria o art. 276º do RJPI. E numa aproximação à exigência do art. 33º, al. a), do CPAC, que impõe a revelação de um interesse “directo”, “pessoal” e “legítimo”, também concluiu que não estava evidenciada nenhuma vantagem concreta com repercussão na sua esfera através da eliminação dos efeitos do “acto que pretende ver anulado”.
Nas suas alegações, a recorrente insurge-se contra este entendimento - em termos que mais à frente se reproduzirão - não sem que antes deixasse de suscitar algumas questões de violação da ordem processual estabelecida, que em sua opinião conduzem à nulidade da sentença nos termos do art. 147º do CPC, “ex vi” art. 1º do CPAC.
Com efeito, mesmo que o caso fosse de ilegitimidade, o tribunal deveria ter agido do seguinte modo:
a) Rejeitaria liminarmente a petição (o que abriria a possibilidade de a recorrente apresentar nova petição de recurso nos termos do art. 396º do CPC);
b) Ao não o ter feito - por se presumir que a ilegitimidade não seria manifesta - deveria ter optado pela reparabilidade do vício, ordenando o saneamento dos autos através do suprimento da excepção nos termos do art. 59º do CPAC;
c) E acaso entendesse que não estariam verificados os pressupostos para a “regularização da instância pelo dito suprimento”, teria de ordenar a notificação da recorrente para se cumprir o contraditório, nos termos do art. 61º do CPAC.
Relativamente à primeira das questões (ver ainda art. 5º. Al. a), das alegações), não cremos que a circunstância de não ter sido a petição rejeitada liminarmente pudesse obstar à apreciação da excepção em momento posterior do processo. A própria decisão consignou o pensamento subjacente: “…a circunstância de se ter admitido liminarmente o presente recurso, considerando de forma tabelar ou genérica que estavam reunidos os pressupostos processuais para a citação da parte contrária e da DSE, não formou caso julgado formal relativamente à questão da legitimidade da ora recorrente uma vez que o tribunal não apreciou concretamente esta questão, tal como esclarece o art. 429º, nº2 do Código de Processo Civil”.
Pois está certa a argumentação, excepção feita à citação do art. 429º, nº2 do CPC, disposição que apenas tem por função determinar o efeito de caso julgado formal relativamente ao conhecimento concreto e efectivo das questões e excepções aludidas no nº1, al. a), no despacho saneador. Ou seja, essa norma resolve as dúvidas a respeito do caso julgado formal recaído sobre a decisão vazada no despacho saneador, e transitada em julgado, sobre matéria exceptiva, consignando que de caso julgado se não poderá falar se tal despacho não apreciar concretamente nenhuma dessas questões, mas não responde às inquietações sobre o efeito preclusivo que possam resultar de um despacho de citação que não tenha apreciado matéria exceptiva que pudesse desde logo conduzir a um indeferimento liminar.
Ora, é para resolver esta dúvida que o art. 399º, nº2, do CPC tem préstimo directo: “O despacho que ordene a citação não resolve definitivamente as questões que podiam ser causa de indeferimento liminar da citação”. É esta a disposição específica que acode à situação, e dela se depreende que, conquanto não tendo o juiz decidido liminarmente indeferir a petição com base em ilegitimidade activa, nada impede de o fazer mais tarde, no despacho saneador, tanto porque o réu a tenha concretamente invocado, como porque o tribunal a tenha oficiosamente suscitado.
Assim sendo, improcede o primeiro dos argumentos.
*
A segunda questão prende-se com a eventual necessidade de mandar suprir a excepção ao abrigo do art. 59º do CPAC. Entende a recorrente que o tribunal deveria ter feito uso daquela disposição legal, de forma a permitir que ela mesma pudesse reparar o vício cometido assim suprindo a ilegitimidade.
Foi, portanto, feito apelo ao art. 59º do CPAC. No entanto, abordaremos a questão tanto na perspectiva processual civil, como na do contencioso administrativo.
Ora, a verdade é que o art. 59º citado não tem aplicação ao caso vertente, mesmo que se defenda que o contencioso das decisões da D.S.F. nesta matéria deva observar as regras do CPAC.
As deficiências e irregularidades de que trata esse artigo são os vícios formais da petição, tal como já decorre, de resto do art. 51º, ficando excluídos os vícios estruturais em que assente a própria matéria invocada, como seja a que fundamenta, por exemplo, a legitimidade. É sabido que a ilegitimidade é uma excepção dilatória cuja reparabilidade só é possível nos casos de legitimidade plural (é possível permitir que algum interessado seja chamado ao processo em caso de litisconsórcio necessário), mas já não nos casos de ilegitimidade singular. Neste caso, ou a parte está devidamente legitimada através da representação dos respectivos factos ou não. Se for de concluir que os factos não revelam a legitimidade da parte, não é possível suprir ou sanar a excepção e a decisão a tomar só pode ser o indeferimento liminar ou a absolvição da instância (há quem sustente a rejeição), conforme a fase da decisão.
E mesmo ao abrigo do art. 397º do CPC a petição só deve ser mandada corrigir quando seja irregular ou deficiente e não ocorra nenhum fundamento para indeferimento (e no caso havia). De qualquer maneira, não poderia haver lugar à correcção se ela estava inquinada de um vício que não permitia a sanação.
Improcede, pois, também este argumento.
*
Também entende que lhe deveria ter sido dada hipótese de se pronunciar sobre a matéria exceptiva invocada pela entidade recorrida, cumprindo-se, assim, o disposto no art. 61º do CPAC.
Ora, aqui, tanto faz que, mesmo em tese, se admita uma vez mais a aplicação das regras do CPAC, nomeadamente a do seu art. 61º, como se aceite a aplicação estrita ou subsidiária das regras do CPC: a solução haveria de ser a mesma. E não é aquela que a recorrente defende. Na verdade, eventual incumprimento do art. 61º só representaria nulidade se a lei o declarasse ou se a omissão verificada pudesse influir no exame e decisão da causa (art. 147º, nº1, do CPC). Imaginemos, porém, que o caso se integra na previsão da 2ª parte (Influência no exame ou na decisão da causa). Nesse caso, cremos que essa influência só a deveria ter se a recorrente verdadeiramente não tivesse tido a possibilidade de se pronunciar sobre a matéria. Só então estaria preenchida a hipótese legal.
Ora, acontece que a recorrente foi notificada das respostas da entidade recorrida e da interessado C, nos termos da carta de fls. 370 dos autos. Ou seja, deu-se-lhe a oportunidade de se pronunciar sobre a matéria de excepção, cumprindo-se o contraditório a que se refere o art. 3º do CPC. Não se pronunciou porque não quis, mesmo que a notificação não tivesse sido mandada efectuar pelo juiz e para os fins do referido art. 61º. A decisão tomada não pode, portanto, ser encarada como decisão-surpresa a respeito da qual a recorrente se ache surpreendido.
Improcede, pois, também este argumento.
*
Um último argumento vem traçado pela recorrente neste segmento do recurso: o de que, ao abrigo do art. 58º do CPAC, não fora dada vista ao MP para vista inicial.
Ora, esta arguição continua a partir do princípio de que ao caso se aplicam as regras do CPAC para o recurso contencioso. No entanto, e mesmo que se seguisse a orientação delineada pela recorrente, nem assim estaríamos perante um caso de nulidade da decisão. Na verdade, nem a lei processual declara a nulidade em caso de omissão da sua intervenção ao abrigo do preceito em apreço, nem nos parece que a sua falta possa fatalmente influir no exame ou na decisão da causa (art. 147º do CPC), já que a pronúncia nem é obrigatória, nem, quando existente, é vinculativa para o tribunal, funcionando apenas como um subsídio opinativo (importante, convém reconhecê-lo) que ao tribunal o MP fornece no sentido da boa ordem tramitacional do processo, do reconhecimento da existência de alguma causa que impeça o prosseguimento do processo ou da opinião sobre algumas questões que tenham sido suscitadas nas contestações. Trata-se, pois, de uma norma talhada para a defesa da função do MP, reconhecendo-lhe o núcleo dos seus poderes processuais na defesa da legalidade objectiva e com independência em relação às partes, e não uma norma criada para a defesa da posição subjectiva das partes. Esta vista, portanto, não representa na sua essência a densificação do princípio do contraditório, nem as partes podem eficazmente arguir pelo Ministério Público a irregularidade decorrente da não observância da referida norma. E não se diga a este respeito que a intervenção do MP teria acolhimento até mesmo pelo facto de dispor de legitimidade própria. Ora, se é certo que acção de nulidade ou anulabilidade pode ser intentada pelo MP (art. 49º do RJPI), certo é também que o seu papel, quando autor, não se confunde com o da defesa da legalidade, quando apenas se limita a uma intervenção acessória (ver art. 60º, nº2 da LBOJ).
*
3- Do mérito do recurso
A) Quanto à Relevância dos Fundamentos do Recurso para o juízo da Legitimidade ad causam da ora Recorrente
No que a este respeito concerne, a recorrente começa por atribuir relevância à invocação de causa de nulidade da patente por não verificação dos requisitos substantivos de patenteabilidade, citando para tanto os arts. 47º, 60º, 61º e 118º do RJPI. E mais ainda: invoca os arts. 122º e 124º do CPA para de todos concluir que o acto é nulo porque praticado em violação da norma para cuja violação a lei prevê a nulidade.
E com base nisso, avança para a invocação do disposto no art. 123º, nº2 do CPA e 49º, nº2, do RJPI, como sendo normas que conferem legitimidade universal impugnativa, e para o preceituado no art. 276º do mesmo RJPI, que em seu entender deve ser interpretado de forma a não se esquecer a ponderação de interesses que no plano substantivo explicam que a lei sancione com a nulidade a patente concedida.
Concordamos com o postulado de que parte a recorrente, mas não com a solução que a partir dele descobre. Efectivamente, não é pelo facto de a sanção para o caso poder ser a nulidade que a legitimidade passa a ser ampla e irrestrita. Em nossa opinião, os critérios que subjazem à declaração de nulidade não podem servir de mote à legitimidade para a sua arguição. Isto é, a circunstância de a nulidade poder ser accionada a todo o tempo e produzir efeitos “ex tunc” e, especialmente, “erga omnes” não vale mais do que isso e não pode ser extrapolado para o universo das pessoas que a podem invocar. Repare-se que a lei não diz que a nulidade pode ser invocada por “qualquer pessoa” (art. 123º do CPA), mas sim por “qualquer interessado”, o que significa que a análise da legitimidade não se afasta do critério do interesse material revelado. Portanto, ainda que a invalidade possa ser a mais severa e a todos tocando de uma maneira ou outra, a sua invocação em tribunal sempre carece de um substrato material demonstrativo do interesse em agir ou de uma legitimidade activa para o efeito. Não é, pois, pelo facto de a nulidade ser ditada pelo “interesse público” relevante que qualquer parcela do universo, qualquer elemento do público, pode ir ao tribunal, a se, pedir a nulidade. A exclusão da necessidade de demonstração do interesse privado só deve ser admitida nas situações de acção popular, em que basta a lesão de bens fundamentais do colectivo (art. 33º, al. b) e 36º do CPAC). Mas esse não é o caso, seguramente.
Por muito que a recorrente se esforce por caracterizar como nula a actividade concreta em causa, por mais que diga que o motivo social e juridicamente atendível que conduza à nulidade de modo nenhum deve coarctar a liberdade de comércio pela imposição de um dever geral de abstenção, por mais que argua em defesa da nulidade e dos interesses que ela protege, enfim, nada disso é suficiente para suprimir a marca e o conceito de legitimidade processual “ad causam”.
Por outro lado, se, como o pretende a recorrente, à situação fosse aplicável o CPAC, então não poderíamos perder de vista o art. 33º do diploma, que para a aferição da legitimidade activa, nenhuma distinção estabelece entre actos anuláveis e actos nulos. Ou seja, até mesmo para os actos nulos a legitimidade carece da demonstração de um interesse que seja directo, pessoal e legítimo. Foi o que o despacho saneador também arguiu como fundamentação da resolução que tomou.
Neste sentido, a aplicação ao caso do disposto no art. 123º, nº2 do CPA (a recorrente disse por engano Código de Processo Administrativo Contencioso, mas quereria dizer Código de Processo Administrativo) – se aplicável se considerar – nenhum subsídio fornece concretamente em favor da tese da recorrente, nem o art. 49º do RJPI serve melhores propósitos, já que também esta disposição obriga a que a acção deva ser intentada pelo Ministério Público ou por “qualquer interessado”, não se afastando aqui da prescrição que o segmento do nº2, do art. 123º do CPA estabelece para o mesmo objectivo.
De resto, e para terminar este aspecto específico, a disposição do art. 49º invocada tem em vista a declaração de nulidade ou anulabilidade dos títulos de propriedade industrial em acção adequada a esse fim, enquanto o que aqui se tem por objecto é a apreciação da legalidade de uma decisão da Administração que concede um direito de propriedade industrial, para o que o meio próprio é o recurso contencioso (arts. 275º, 276º e 281º do RJPI).
Portanto, nem mesmo considerando devidamente a invocação dos factos que possam conduzir à nulidade e àquilo que lhe está subjacente, como a circunstância de a patente em apreço poder constituir um regime de monopólio e de exclusividade que coloca em causa a liberdade de iniciativa económica no mercado concorrencial, estamos perante fundamentos válidos que devam afastar a aplicação das regras adjectivas em matéria de legitimidade processual. Quer dizer, o reconhecimento de uma situação que revele a possibilidade de uma lesão abstracta de potenciais agentes económicos não desobriga a que qualquer deles, querendo fazer valer os seus direitos, nomeadamente o da anulação do acto que concede uma patente, tenha que demonstrar o interesse no desfecho da impugnação judicial. É por isso que nem a eventual violação do “estado da arte” é bastante para demonstrar esse interesse. Não é pelo facto de a recorrente poder fazer uma utilização (comercialização) irrestrita de bens actualmente no mercado insusceptíveis de apropriação exclusiva e deixar de o fazer a partir da produção do bem agora patenteado que o seu interesse se revela. Na verdade, o que está por ora em causa não é o bem em si mesmo, o qual até pode não vir a ser produzido. O que está em causa é a decisão que em relação ao bem ainda lhe está a montante ou a ele é prévio; O que importa é saber se esta decisão administrativa é lesiva para a recorrente naquilo que ela intrinsecamente representa, no desvalor que ela lhe provoca, enquanto a outrem concede o registo de um direito de propriedade industrial; O que é determinante é saber se o reconhecimento do valor deste processo criativo com a consequente atribuição do direito industrial atenta contra interesses directos e muito seus (da recorrente), que apenas são de comercialização de produtos. Se fosse de entender que em abstracto quem hoje vende, amanhã pode produzir, para daí extrair a legitimidade para a impugnação, isso seria o mesmo que reconhecer legitimidade activa indiscriminada e ilimitada, sem atender a critérios substantivos que já hoje possam demonstrar o interesse na anulação ou na nulidade peticionada.
Permitimo-nos, pois, com a devida vénia acompanhar a doutrina exposta nos arestos de que a seguir faremos parcial transcrição.
Em 1º lugar, o Ac. da Relação de Lisboa, no Proc. nº 1998_04\04_1998_MNA0000273432.pdf:
“Contudo, o Código da Propriedade Industrial não de fine o conceito de «prejuízo directo». Já no artigo 680º do Código de Processo Civil de 1939 se consignava que as pessoas directamente prejudicadas por uma decisão podiam recorrer dela, embora não sendo partes na causa. Mas a lei continuava omitindo a definição de prejuízo directo. O Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. v, p. 272) ensinava então que o conceito de prejuízo directo excluía o prejuízo indirecto ou reflexo e o prejuízo eventual, incerto e longínquo: É preciso que o prejuízo resulte imediatamente da decisão proferida; não basta que seja eventual ou de penda de circunstância futura que possa vir a surgir como consequência do julgado. No artigo 680º do Código de Processo Civil vigente acrescenta-se o advérbio «efectivamente». E fórmula semelhante se contém no futuro, após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro. Embora não tendo a posição de parte na causa, uma pessoa pode recorrer da decisão que a prejudique «directa e efectivamente». Daqui não pode concluir-se que a legitimidade para recorrer, quando o recorrente não é parte na causa, depende da concretização de um prejuízo. Para que se verifique tal legitimidade basta a probabilidade de um prejuízo futuro directo. A não se entender assim, a muito poucas ficariam reduzidas as hipóteses de admissibilidade do recurso previsto do artigo 204º dó Código da Propriedade Industrial ante rior, no actual e no Código de Processo Civil. 5 - A este propósito importa notar que, referindo-se a qualquer pessoa que seja directamente prejudicada, a norma assenta num critério material, visto que reserva o critério formal para os requerentes e reclamantes. Ora, à luz do critério material, conclui-se que as decisões do Instituto Nacional da Propriedade Industrial são actos administrativos porque praticados no âmbito da actividade administrativa.
Por isso, a impugnação de tais decisões tem natureza administrativa, os recursos só formal e organicamente seguem os termos dos recursos cíveis, da competência dos tribunais cíveis. Assim, na busca da solução da questão da legitimidade dos recorrentes impõe-se uma incursão pelas leis administrativas pertinentes ao caso. Ora, nos termos do artigo 160º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44 1 91, de 15 de Novembro, «têm legitimidade para reclamar ou recorrer os titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos que se considerem lesados pelo acto administrativo». E o Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei nº 41 234, de 20 de Agosto de 1951) estabelece no nº 1 do seu artigo 46º que os recursos podem ser interpostos pelos que tiverem interesse directo, pessoal e legítimo, na anulação do acto administrativo susceptível de recurso. Portanto, em direito administrativo, a legitimidade do recorrente afere-se pelo interesse directo, pessoal e legítimo. E Diogo Freitas do Amaral (Lições ao Curso de 1984/ 85, vol. IV, pp. 157 e seguintes) explica: Uma pessoa é interessada quando espera obter um benefício e se encontra em posição de o receber; O interesse diz-se directo quando o benefício resultante da anulação do acto recorrido tiver repercussão imediata no interessado; O interesse diz-se pessoal quando a repercussão da anulação do acto recorrido se projectar na própria esfera jurídica do interessado; O interesse diz-se legítimo quando é protegido pela ordem jurídica como interesse do recorrente. O interesse e o prejuízo são duas faces da mesma moeda: a pessoa directamente prejudicada pela decisão recorrida tem interesse directo na revogação da mesma decisão”.
Também no ac. da Relação de Lisboa, 1998_09\09_1998_MNA0000289622.pdf:
“O artigo 68º do Código de Processo Civil dispõe como segue: g1 - Os recursos, exceptuada a oposição de terceiros, só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido. 2 - Mas as pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias. A exegese do texto legal transcrito permite concluir pela legitimidade para interpor recurso: a) Das partes principais que tenham ficado vencidas; b) De terceiros, no recurso extraordinário de oposição de terceiro; c) Das partes acessórias directa e efectivamente prejudicadas pela decisão; e d) Dos terceiros directa e efectivamente prejudicados pela decisão. Sendo óbvio que não está aqui em causa recurso extraordinário de oposição de terceiro, vejamos se as recorrentes se podem haver como partes, principais ou acessórias. Embora tenha fundas raízes substantivas, está em causa uma figura essencialmente processual. Partes são as pessoas pela qual e contra a qual é requerida, através da acção, a providência judiciária (Professor Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, C.ª Ed., 1984, p. 101); as pessoas que requerem e as pessoas contra quem - cada uma delas agindo ou figurando em seu próprio nome (directamente ou através de um representante) - se requer a providência judiciária a que tende a acção (Professor M. de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, C.ª Ed., 1976, p. 75). O conceito de partes é de carácter puramente formal, pois que não depende nem da real existência do direito material por elas invocado, nem de serem elas os sujeitos da relação material litigada. As partes são, em regra, identificadas no começo da lide, na petição inicial. Mas outras pessoas ou entidades podem assumir essa qualidade, no decurso da acção, ao lado das primitivas (partes acessórias) ou no lugar delas (v. g., no caso de transmissão da coisa ou direito litigioso). Entendido assim o conceito de «partes», fácil é concluir que às recorrentes não cabe tal qualificação no presente processo - nem a de parte acessória.
Nem vale argumentar em contrário com o disposto no artigo 204º do Código da Propriedade Industrial (as referências ao Código da Propriedade Industrial devem entender-se feitas ao Código de 1940, que é o aplicável ao caso sub judicio). Segundo este normativo, são partes legítimas para recorrer (dos despachos do Instituto Nacional da Propriedade Industrial por que se concederem ou recusarem registos de marcas) o requerente e os reclamantes e ainda qualquer pessoa que, não tendo reclamado perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, seja directamente prejudicada pela concessão. Do teor literal do preceito em causa parece, pois, decorrer - tendo em conta a sua alusão às partes legítimas para recorrer e à inclusão aí de qualquer pessoa que, embora não tenha reclamado perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, seja directamente prejudicada pela concessão do registo - que essas pessoas (que não são nem o requerente nem os reclamantes) são também partes no processo. Não é, todavia, assim. O artigo 204º apenas contém a indicação das pessoas ou entidades com legitimidade para recorrer. A sua finalidade esgota-se aí, não visando, pois, definido quem é parte no processo de concessão do registo. Assim, o inciso legal «são partes legítimas para recorrer» equivale a estoutro: «Tem legitimidade para recorrer [...]» Do mesmo modo, a referência do artigo 207º, do mesmo Código à «parte contrária» só pode entender-se como visando as pessoas ou entidades que, no processo administrativo que correu termos perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, aí deduziram reclamação contra a pretensão do requerente do registo, só assim ganhando algum sentido útil a expressão subsequente «se a houver». Não tendo, assim, as recorrentes, nos presentes autos, o estatuto ou a condição de partes, principais ou acessórias, a sua legitimidade para recorrerem para esta Relação da decisão do M.mo Juiz da 1.ª instância só pode ser afirmada se houver de concluir-se que se trata de entidades (terceiros) directa e efectivamente prejudicadas pela decisão proferida. Será esse o caso? No projecto do Código de 1939 o correspondente preceito tinha a seguinte redacção: Os recursos, exceptuada a oposição de terceiro, só podem ser interpostos pelas pessoas que forem partes principais na causa e tiverem ficado vencidas. Mas as pessoas directamente prejudicadas por uma decisão que tenham provocado podem recorrer dela, embora não sejam partes na causa ou sejam partes acessórias. [Nosso o sublinhado.] Por sugestão de Heitor Martins, as palavras «que tenham provocado», atrás sublinhadas, foram eliminadas, com a concordância do Professor A. dos Reis, autor do projecto, e o texto que passou para o Código foi o seguinte (artigo 680º): Os recursos, exceptuada a oposição de terceiro, só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tiver ficado vencido. Mas as pessoas directamente prejudicadas por uma decisão podem recorrer dela, embora não sejam partes na causa ou sejam partes acessórias.
Ficou, assim, claro que não é necessário que a decisão de que se pretende recorrer tenha indeferido ou desatendido requerimento ou pretensão formulado pelo recorrente - basta que este haja sido prejudicado directamente pela decisão que pretende impugnar (Professor A. Reis, Anot., v, pp. 256 e 272). Tendo em conta a redacção do preceito no Código vigente deve entender-se que mantém plena validade o pensamento do eminente Mestre, que vem de ser referido. Mas, qual o sentido da expressão? O que deverá entender-se por prejuízo directo e efectivo (pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão)? Ainda aqui temos por válida e actual a resposta do Professor A. Reis a esta questão: Em primeiro lugar é fora de dúvida que a expressão legal exclui o prejuízo indirecto ou reflexo; em segundo lugar deve ter-se como certo que o prejuízo há-de ser actual e positivo: não é suficiente o prejuízo eventual, incerto e longínquo (loc. cit., p. 272). Ou seja: é preciso que o prejuízo resulte imediatamente da decisão proferida; não basta que seja eventual ou dependa de circunstância futura que possa vir a surgir como consequência do julgado. Na verdade, ao adoptar, no Código vigente, a expressão constante do nº 2 do artigo 680º «as pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão» - o legislador justificou-a deste modo: Consagra-se expressamente na lei a doutrina de que não basta um prejuízo directo para legitimar a interposição de recurso por quem não pode considerar-se parte principal vencida. Há casos em que o prejuízo proveniente da decisão, embora seja directo (no sentido de que não é simplesmente mediato ou reflexo), é, todavia, eventual, longínquo, incerto, apenas provável ou possível. A nova redacção dada ao nº 2 significa que um prejuízo dessa natureza não basta para legitimar a posição do recorrente. [Boletim do Ministério da Justiça, nº 123, p. 132.]”
Ora bem. A recorrente não explicou a razão desse interesse, através da respectiva factualidade relevante, e o tribunal também não a pode adivinhar. Todavia, tanto quanto nos podemos aperceber, não cremos que esteja excluída a hipótese de a própria recorrente poder vir a vender um dia, sabe-se lá, a mesa de “baccarat” que o registo desta patente permitirá produzir; e nesse caso hipotético, em vez de lesão, até se poderá antever favorável à sua própria esfera a decisão contra a qual presentemente peleja. Ou seja, nada nos permite inferir hoje que a decisão objecto do “recurso judicial” signifique um prejuízo certo, directo e imediato, uma vez que para o efeito não releva o prejuízo eventual, incerto e longínquo. Na verdade, os interesses materiais da recorrente e do recorrido C não são necessariamente conflituantes, uma vez que se situam em pólos diferentes: um, está no pólo criativo; outro, no pólo do sector terciário (aqui, comércio) de um produto que ainda não se sabe, sequer, se virá a estar no sector secundário da economia. Reconhecer legitimidade à recorrente equivaleria a reconhecê-la a qualquer agente económico colocado no sector terciário dedicado à compra e venda ao público de produtos congéneres e isso representaria um desvirtuamento das regras de legitimidade assentes em critérios de interesse concreto.
Assim é que, quer se aplique à situação a norma do CPAC (art. 33º), quer nos devamos ater somente à do art. 276º do RJPI, sempre estaremos confrontados com a necessidade de demonstração de um interesse, que tem que ser fundado e sério e decorrer da posição jurídico-substantiva em que se encontra o recorrente perante o beneficiário da patente. Quer dizer, se o âmbito da protecção conferida pela patente de invenção é determinado pelo conteúdo das reivindicações (art. 101º, nº1, RJPI) e se os direitos que dela resultam são os que estão plasmados no art. 104º nº1 do mesmo diploma, parece evidente que o beneficiário da patente não se poderá opor a que a recorrente continue a comercializar produtos semelhantes (mesas de jogo, baralhadores, etc), desde que não sejam os produtos objecto da patente (art. 104º, nº1, al. b), do RJPI, a contrario). Mas, também é certo que, em alguns casos, os previstos nos arts. 109º a 113º do RJPI, podem ser concedidas licenças obrigatórias de carácter não exclusivo sobre uma determinada patente, não estando afastada a priori a possibilidade de a recorrente poder vir a incluir-se entre os potenciais licenciados. Tudo isto revela que a patente concedida não significa necessariamente um prejuízo directo e efectivo para a esfera da recorrente, nem atenta contra o seu interesse directo, pessoal e legítimo, nos moldes em que o interesse vem tratado no Ac. deste TSI nº 21/2010, de 7/12/2011 em trecho que, por comodidade, aqui respigamos e fazemos nosso respeitosamente: “Directo, na medida em que do provimento do recurso lhe advenha um proveito imediato e objectivo. Directo, na medida também em que o provimento implique a anulação do acto que esteja a constituir um obstáculo à satisfação de uma pretensão ou seja causa imediata de um prejuízo (M. Caetano, Estudos de Direito Administrativo, edições Ática, nº 46, pag. 240 e Manual de Direito Administrativo, 10ª ed., II, pag. 1356; Fermiano Rato in Revista de Direito Administrativo; F. Amaral, Direito Administrativo, IV, 1988, pag. 168/170; Ac. STA de 28/4/94, in AD nº 394/1111). E esse interesse directo haverá de traduzir-se numa verosímil posição de utilidade ou vantagem, independentemente de ficar ou não eliminada a causa da lesão que motive o recurso (Ac. do STA de 22/02/93, Rec. Nº 25 160). Nesta perspectiva, a legitimidade não é a legitimidade condição, ligada ao fundo da causa, mas como se disse mero pressuposto processual (Ac. do STA de 17/11/96, Rec. Nº 38005 e 1/10/98, Rec. Nº 43 423, entre outros).
Pessoal, no sentido da existência de um relação de titularidade entre a pessoa do recorrente e a pretensão por cuja vitória pugna ou o prejuízo causado pelo acto cuja anulação pretende obter (M. Caetano, in «Estudos...», pag. 242 e «Manual...», II, 1357).
Legítimo, supondo-se estar em sintonia com a ordem jurídica estabelecida e por esta não reprovada (M. Caetano, «Manual...» cit, II, pag. 1357; F. Amaral, ob. cit. pag. 171; Guilherme da Fonseca, in «Condições de procedibilidade» na obra Contencioso Administrativo, Livraria Cruz, Braga, pag. 201).
Portanto, não está em causa a titularidade da relação jurídica como fundamento para a legitimidade, mas a lesão que possa advir do acto para a esfera do recorrente. E nessa apreciação, não temos que chamar à colação argumentos que se prendem com o fundo ou o mérito da causa (legitimidade-condição), mas sim toda uma série de razões que explicam a atitude processual do recorrente e exibam bem o motivo pelo qual se insurge contra determinado acto. Saber se do ponto de vista da substância ele é procedente, isso já escapa à noção adjectiva e processual que se deve ter presente na análise da legitimidade–pressuposto”.
Ora, para avaliar da legitimidade-pressuposto importa olhar para a forma como se encontra desenhada a causa de pedir, isto é, como a relação material controvertida é configurada, independentemente da titularidade da posição jurídica substantiva, a fim de se ajuizar da vantagem ou utilidade que da procedência do recurso possa advir4. E, como vimos, a configuração da causa de pedir neste caso não é suficiente para invocar e provar a legitimidade activa da recorrente.
Por tudo isto, improcedem as conclusões A) 1 a 5.
*
B) Incidentalmente: (i) A Impertinente consideração pela Sentença Recorrida de Acórdão do Tribunal de Segunda Instância sobre o problema da legitimidade ad recursum da parte absolvida do pedido pela instância e (ii) a desconsideração de decisões desse mesmo Venerando Tribunal sobre a legitimidade em processos que, materialmente, se qualifiquem como de contencioso administrativo.
A este respeito a recorrente diz na conclusão B) 1.: “A posição tomada pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância quanto ao problema da justificação da legitimidade ad recursum de decisão judicial da instância pela parte processual que, tendo sido por esta absolvida da instância, ainda assim haja sido prejudicada, não parece pertinente”.
Conquanto nos pareça haver aqui alguma deficiência e até mesmo contradição nos termos utilizados - na medida em a epígrafe trata a decisão a que o recurso se refere como sendo de “absolvição do pedido pela instância” (em verdade esta expressão é ambígua), enquanto o texto da conclusão já se fica pela “absolvição da instância” – nem por isso deixaremos de aqui consignar que, efectivamente, o que estava em discussão no Proc. nº 627/2011 era saber se o segurado, absolvido do pedido numa acção para efectivação de responsabilidade civil, tinha ou não legitimidade para recorrer jurisdicionalmente da sentença.
Estudemos, porém, a arguição na convicção de termos bem apreendido o sentido da conclusão, para o que submergiremos nas alegações respectivas onde estará a raiz do pensamento da recorrente.
Considera a recorrente impertinente que o tribunal “a quo” se tenha socorrido expressamente de um aresto do TSI lavrado no Proc. nº 627/2011 para daí extrair a conclusão que retirou. Efectivamente, disse aquele aresto que o interesse do recorrente jurisdicional deve ser directo e efectivo, assim como os considerou deverem ser “reais e jurídicos, entendidos numa relação entre a decisão e os seus efeitos em relação à parte”.
Estamos de acordo que nos encontramos perante reactividade diferente: de um lado, importaria saber quem pode recorrer jurisdicionalmente de uma “decisão judicial” proferida em 1º grau de jurisdição; aqui, o que interessa é apurar quem tem legitimidade para recorrer judicialmente de uma “decisão administrativa”. Neste sentido, compreendemos a recorrente quando tenta separar os alcances de ambas as formas impugnativas. Mas, do que não há dúvida é que, mesmo estando ante situações reactivas diferentes, o legislador utilizou conceitos iguais. Se no primeiro caso, se torna necessário o apelo ao critério do “prejuízo directo e efectivo” que emana do art. 585º, nº 2, do CPC, no segundo, também se reconhece legitimidade para recorrer à pessoa que “seja directa e efectivamente prejudicada pelas decisões”. Como se vê há identidade de critérios num e noutro caso.
Por conseguinte, não aceitamos que o tribunal “a quo” não pudesse fazer o exercício de fundamentação servindo-se de argumentos que pudesse retirar da fundamentação utilizada a propósito da legitimidade activa para recurso jurisdicional de decisão judicial. Saber se tal exercício foi correcto, adequado, preciso ou pertinente é já questão que contende com a bondade da decisão recorrida.
E, já agora, se a recorrente, em vez disso, acha que pertinente deveria ser o apelo à posição que este tribunal tem feito a respeito do art. 33º do CPAC (matéria que constitui a epígrafe B (ii) e representa a conclusão B) 2.), nem por isso a decisão sob censura deixou lhe de fazer referência. Realmente, o saneador em apreço citou o ac. deste TSI de 7/12/2011 lavrado no Proc. nº 21/2010, tendo dele extraído a noção que evola dos conceitos de interesse directo pessoal, directo e legítimo contidos no art. 33º do CPAC. Quer dizer, foi também apoiada no art. 33º do CPAC que a decisão recorrida viria a ser lavrada.
Mas, enfim, o que conta para qualquer desiderato resolutório é a produção de uma decisão correcta apoiada na mais certeira jurisprudência ou na mais avalizada doutrina, sem esquecer as normas, regras e princípios jurídicos aplicáveis ao caso. Errada será a decisão judicial se para um mau dispositivo resolutório ela se serve de inapropriada e deslocada fundamentação. E não parece ser o caso.
Quer isto dizer que a matéria destas conclusões se mostra improcedente.
*
Posto isto, o recurso jurisdicional tem que naufragar.
***
IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
TSI, 07 / 02 / 2013
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
1 Falaremos em “entidade recorrida” como modo de simplificar a identificação das partes que verdadeiramente estão a esgrimir as suas posições, embora o RJPI diga expressamente que a DSE não é considerada “parte contrária” (cfr. art. 279º, nº4), algo que nos merece sérias reservas.
2 LUÍS M. COUTO GONÇALVES, Direito de Marcas pag. 175, a fls 51 e sgs. também reconhece que o acto final de registo tem a natureza de acto administrativo.
3 Nesse sentido, ver acs. de 21/03/2002, Proc. nº 199/2001, de 12/10/2006, Processos nºs 351/2006, 387/2006 e 398/2006; também o ac. de 7/06/2007, Proc. nº 516/2006.
4 Ac. TSI, de 22/11/2012, Proc. nº 69/2012
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------