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Processo n.º 849/2012
(Recurso cível)

Relator: João Gil de Oliveira
Data : 14/Março/2013


ASSUNTOS:

- Interesse em agir
- Acção declarativa versus execução
- Artigo 73º, n.º 3, al. a) do Código de Processo Civil
- Juros na acção cambiária
- Relação subjacente e relação cartular


SUMÁRIO :
     
     1. Será de indeferir liminarmente a petição numa acção declarativa, por falta de interesse em agir, se o autor, munido de um título executivo, pode pedir o mesmo na acção executiva, nomeadamente os juros legais e o acréscimo de 2% da sobretaxa devida em caso de transacções comerciais.
    2. Isto, sem embargo da salvaguarda do recurso à via declarativa quando a situação não seja clara e sobrevenham dúvidas sobre a exequibilidade do título, o que não parece ser o caso, sabendo-se de experiência feita que os advogados, por questões de cautela e prevenindo surpresas, por uma ou outra razão, por vezes, até para se obter sentença que condene os membros do casal em função de um proveito comum obtido com a contracção de um determinado negócio, instauram, como que cautelarmente, uma acção declarativa prévia à execução.
     3. Não basta que haja um título executivo. Importa averiguar se esse título permite alcançar na execução o mesmo resultado, nomeadamente, se a livrança comprovar uma obrigação de pagamento em quantia certa e dela constar que essa obrigação resulta de uma transacção comercial, podendo o portador da livrança executá-la, não como um título cambiário, mas sim como um mero quirógrafo particular (artigo 677º, c) do CPC), não estando aí sujeito à limitações dos títulos cambiários, nomeadamente em termos de juros (6%) e de prescrição.
     4. No âmbito das relações imediatas entre exequente e executado, pode ser discutida a relação extra-cartular que os liga.
     
              O Relator,

João Gil de Oliveira




Processo n.º 849/2012
(Recurso Civil e Laboral)
Data: 14/Março/2013

Recorrente: B

Objecto do Recurso: Despacho que indeferiu liminarmente a petição inicial

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    
    I - RELATÓRIO
    
    B, com demais sinais nos autos não se conformando com o despacho constante da fls. 17 dos autos, que lhe indeferiu liminarmente a petição em acção de condenação intentada contra C, também ele mais bem identificado nos autos, por alegada falta de pagamento devido na sequência de uma transacção comercial, dele vem recorrer, alegando em síntese conclusiva:

1. No despacho recorrido, entende-se que o recorrente pretendeu, na sua petição inicial, que o pagamento da ré neste caso tem a ver com a transacção comercial.
2. Nas quatro ordens de pagamento assinadas por C, escreve-se expressamente as palavras “pagamento de transacção comercial”.
3. Mais, nos factos provados constantes da sentença do arresto no Processo n.º CV3-11-0007-CPV, também foi provado que as respectivas ordens de pagamento foram assinadas e emitidas pelo requerido C ao recorrente.
4. Podemos ver que o pagamento das respectivas ordens de pagamento é relacionado com práticas comerciais.
5. Portanto, nos termos do art.º 569.º do Código, deve-se aplicar os juros comerciais ao caso em apreço, isto é, aos respectivos juros deve acrescentar uma sobretaxa de 2% sobre a taxa fixada.
6. Além disso, no despacho recorrido, entende-se que as ordens de pagamento deste caso têm valor de título executivo, devendo o recorrente intentar acção executiva.
7. E segundo o princípio dispositivo das partes, deve-se admitir a forma do processo escolhido pelo recorrente.
8. Demais, no despacho recorrido, quando se entende que as respectivas ordens de pagamento deste caso têm valor de título executivo, e não se concordou com o pedido do recorrente, e consequentemente se absolveu o recorrente da instância, deve também considerar que um dos pedidos do recorrente declara-se somente que existe um crédito entre as partes, e as respectivas ordens de pagamento destinavam-se apenas a provar a existência deste crédito, pelo que este pedido não se encontra contrário às ordens de pagamento supracitadas.
9. Portanto, este pedido não se encontra contrário às ordens de pagamento supracitadas.

Pelo que pede se julgue procedente o recurso anulado o despacho proferido.
Foram colhidos os vistos legais.
    
    II – É do teor seguinte o despacho recorrido:
    “B, casado, maior, residente em Macau, Estrada ......, ...... Garden, ...... Court, …º andar …, vem deduzir a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra C, casado, maior, com residência em Macau, na Travessa do ...... n.º …, Edifício ……, …º andar ….
    Para tanto alega que A. e R. celebraram uma transacção comercial no seguimento da qual o R. tinha de entregar ao A. a quantia de MOP$162,500.00 par a cujo pagamento emitiu 4 livranças no valor global de MOP$162,500.00.
    Até ao presente apesar de instado para o efeito o R. ainda não procedeu ao pagamento daquelas quantias.
    Conclui pedindo a condenação do R. a pagar ao A. a quantia de MOP$162,500.00 acrescida dos juros à taxa legal.
    Cumpre assim apreciar e decidir.
    Alega o A. ter quatro livranças emitidas pelo R. à sua ordem no valor global de MOP$162,500.00, quantia em cujo pagamento pede que o A. seja condenado.
    Nos termos do art. 1176º “ex vi” art. 1210º n.º 1 al. d) ambos do Cód. Com. E art. 677º al. b) e c) do CPC o A. é já titular de titulo executivo bastante para obter o pagamento do seu crédito.
    Assim sendo, nos termos do CPC art. 73º n.º 3 al. a) “in fine” e “a contrario” dispondo o A. de titulo com força executiva não tem interesse processual.
    O interesse processual é um dos pressupostos processuais cuja inexistência implica o indeferimento liminar da petição inicial nos termos do art. 394º n.º 1 al. c) do CPC.
    Admite-se o recurso de fls. 21 por ter sido tempestivamente interposto por quem tem legitimidade para o efeito, o qual sobe imediatamente nos próprios autos com efeito suspensivo – art. 583º n.º 1, 585º n.º 1, 591º n.º 1, 601º n.º 1 al. a), 603º e 607º n.º 1 do CPC.”
    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa por saber se o A., ora recorrente, podia intentar a acção declarativa, munido como está de 4 livranças.
    
    2. O Mmo Juiz entendeu que o mesmo era destituído de interesse em agir, com base no disposto no artigos 1176º, “ex vi” 1210, n.º 1, d) do C. Com, 677º, b) e c) e 73º, n.º 3, a) do CPC.
    
    3. Pensamos, no entanto, que embora assista razão ao Mmo Juiz, o despacho recorrido não explicita suficientemente as razões que lhe assistem, importando explicar porque é que a acção executiva acautela os interesses do A., tal como configurados e peticionados na acção.
    
    A questão que se coloca - e só assim faz sentido que não lhe assista o interesse em agir, na medida em que a lei processual lhe faculta um outro meio mais expedito para prosseguir o mesmo resultado - é a de saber se o recorrente pode, na execução, formular o mesmo pedido, incluindo os juros à taxa legal de 9,75% e ainda o acréscimo de 2%.?
    
    Será que o Mmo Juiz satisfaria essa pretensão sem que tal constasse do título?
    Se se concluir que não ou que os títulos exibidos não têm manifesta força executiva então parece que o recorrente não deixa de ter todo o interesse em recorrer previamente à acção declarativa; ao invés, se se concluir que sim, seremos a concluir como o Mmo Juiz a quo.
    Trata-se de um exercício que não pode deixar de ser ensaiado para justificar qualquer uma das tomadas de posição. Não basta dizer que o A. dispõe de títulos executivos e portanto desnecessário se mostra o recurso à via declarativa. Há que saber se esses títulos têm manifesta força executiva e se não fica a pairar no ar qualquer dúvida que justifique ainda a opção pela acção declarativa, prevenindo eventuais surpresas que uma execução acarrete, vista até a formalidade, abstracção e literalidade que rodeia uma relação meramente cartular.
    
    
    4. Compreende-se o disposto no artigo 73, n.º 3, a) do CPC, invocado no despacho recorrido, para se concluir, como se concluiu, no sentido da falta de interesse de agir, para mais, quando o artigo 1181º do C. Com., na sua redacção primitiva, previa que o portador da livrança “ex vi” artigo 1210º do mesmo código podia reclamar juros à taxa legal acrescida de 2%, tal como vem pedido.
    
    Só que, com a alteração da Lei n.º 6/2000, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 1181º, aquela possibilidade de reclamar juros foi limitada ao montante de 6% sem acréscimo.
    Isto é, quem intenta uma execução de letra ou livrança só pode, aliás, como decorre igualmente da Lei Uniforme, reclamar este juro.
    
    Parecia, à primeira vista, que o despacho proferido não cobriria o interesse do A., ora recorrente, que optou pela acção declarativa, baseando-se na relação substancial e não já na relação cartular, evidenciando-se um pedido de juros que não podia formular na acção executiva, quais sejam os decorrentes da taxa legal e uma sobretaxa de 2% ao abrigo do artigo 569º do C. Com., o que pressupõe a discussão sobre a natureza comercial do crédito reclamado inerente à alegada relação subjacente.
    
    Mas será realmente assim?
    
    5. É certo que existe aparentemente título executivo, mas a interpretação a contrario extraída do artigo 73º, a) do CPC só será legítima se o A. puder prosseguir na execução o que se propôs ao intentar a acção declarativa.
    
    A redacção daquela norma - que vem na sequência do artigo 449, n.º 2 do CPC pré-vigente, quando aí se previa que as custas seriam pagas pelo autor e o réu não desse causa à acção, entendendo-se para este efeito que tal acontecia nas situações em que o autor, “munido de um título com manifesta força executiva, use sem necessidade do processo de declaração”, ainda que agora em sede do interesse de agir, pressuposto que passou a ser consagrado no nosso Processo Civil - inculca exactamente no sentido de uma evidência da exequibilidade do título, ao falar em manifesta força executiva.
    
    O ensaio a fazer, repete-se, é, pois, o de saber se o recorrente pode recorrer à acção executiva directamente.
    
    A resposta não deixa de se configurar como positiva. Se não vejamos.
    
    6. Em termos de execução cartular parece que não, na medida em que o exequente estaria limitado ao juro de 6%, como acima visto.
    Mas nada impede que não possa invocar as referidas livranças, já não como meros títulos cambiários, mas sim como quirógrafos de um crédito1, meros escritos particulares, como reconhecimento de uma obrigação pecuniária, com assinatura reconhecida pelo devedor, o réu, C, que se compromete a pagar ao autor, B, uma dada importância, num certo dia, mais referindo que esse pagamento resulta de uma transacção comercial.
    Está aberta a via à execução fundada num título, tal como autorizado pelo disposto no artigo 677º, c) do CPC: “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto.”
    Por essa via, afastada a execução cartular, fica aberta a porta à possibilidade de o exequente ali peticionar os juros à taxa legal, face ao disposto no artigo 795º, n.º 1 e 2 e 52º do CC com o acréscimo de 2% prevista no art. 569º, n.º 2 do C. Com., vista a natureza comercial da dívida, o que decorre expressamente do teor das livranças que mencionam a sua origem em transacção comercial, não deixando o recorrente de poder invocar na petição executiva tal natureza comercial, sendo certo que nada obsta que em sede dos meios de oposição à execução tal natureza não possa ser discutida.
    
    7. Ainda que não invocada, não se deixa de fazer uma referência a eventual obstáculo à posição que se vem delineando e que teria a ver com a necessidade de contornar a prescrição da acção cambiária (artigos 1210, n.º 1, h) e 1203º do C. Com).
    Ao optar-se por uma execução baseada em escrito particular assumptivo de uma obrigação pecuniária de montante certo, como está bem de ver, tal execução não estaria balizada pelas regras estritas da regulação das letras e livranças e não estaria portanto sujeita aos prazos de prescrição previstos, seja na LULL, seja no C. Com.
    
    8. Não se deixa de referir, ainda que a latere, que se o autor pretendia discutir a relação subjacente na acção declarativa concretamente instaurada, não se vê, em bom rigor, que aí lograsse tal desiderato, face a uma vaga, conclusiva e inconcretizada alusão a uma transacção comercial, ficando-se sem saber, pela matéria que alegada foi na p.i., do que se tratou, não indo mais além do que a referência que já consta das apontadas livranças.
    Trata-se, contudo, de matéria não decisiva e que poderia ser eventualmente merecedora de um despacho de aperfeiçoamento de forma a que a parte pudesse concretizar em que se traduziu ao fim e ao cabo aquela transacção comercial.
    Em relação ao pedido concretamente formulado, não estará, no entanto, o recorrente inibido de o formular em acção executiva, como acima se frisou.
    
    9. Mas não se deixa ainda de invocar apoio doutrinário para o que se vem dizendo, ancorando-nos na previsibilidade dessa opção pelos autores2.
    
    Isto, sem embargo da salvaguarda do recurso à via declarativa quando a situação não seja clara e sobrevenham dúvidas sobre a exequibilidade do título, o que não parece ser o caso, sabendo-se de experiência feita que os advogados, por questões de cautela e prevenindo surpresas, por uma ou outra razão, por vezes, até para se obter sentença que condene os membros do casal em função de um proveito comum obtido com a contracção de um determinado negócio, instauram, como que cautelarmente, uma acção declarativa prévia à execução.
    
    
    10. Num relance pela Jurisprudência Comparada não deixa de se sufragar o entendimento supra vertido:
    
     “(…)Uma vez prescrita a obrigação cartular constante de uma letra, nos termos do artº. 70º da LULL, não poderá tal título de crédito valer como título executivo para os efeitos da al. d) do artº. 46º do CPC 95.
III. Poderá, todavia, a letra valer como título executivo, mas enquanto escrito particular consubstanciando a respectiva obrigação subjacente, causal ou fundamental, desde que:
- mencione a causa da relação jurídica subjacente; ou desde que:
- tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo;
IV. Se o exequente-embargado houver estruturado o seu requerimento executivo, no que se refere às letras dadas à execução, com mero apelo aos puros princípios da abstracção e literalidade, sem que esse documento possa consubstanciar um reconhecimento de dívida por parte do embargante para com ele nos termos do artº. 458º do C. Civil, não pode o mesmo valer como título executivo.
V. Tendo-se feito na letra menção expressa e literal a "transacção comercial/reforma de outras letras", dúvidas não restam de que, quer representem o valor de transacções comerciais propriamente ditas, quer respeitem a reformas de letras anteriores com as mesmas conexionadas, respeitam a dívidas de quem se obrigou a pagá-las e a obrigações de natureza comercial entre os sujeitos subscritores previamente estabelecidas
VI. Haverá, nesta sede, que fazer funcionar (a favor do credor-exequente) o princípio da presunção de existência da relação fundamental, competindo, por isso, ao devedor-executado o encargo de demonstrar que, apesar dessa menção/alusão nos questionados documentos das respectivas fontes obrigacionais, tal relação fundamental era afinal, e na realidade, inexistente.”3
    
    “Só em dois casos merece aceitação o aproveitamento das letras prescritas:
a) quando as letras dadas à execução mencionem a causa da relação jurídica subjacente;
b) quando tal causa de pedir seja invocada no requerimento de execução e venha a demonstrar-se que é verdadeira, seja porque não é impugnada pelo executado, seja porque em audiência de julgamento se apura a realidade da sua existência.”4
    
    “No âmbito das relações imediatas entre exequente e executado, pode ser discutida a relação extra-cartular que os liga.”5
    
    “1. A causa de pedir na acção executiva, como seu fundamento substantivo, é a obrigação exequenda, sendo o título executivo o instrumento documental privilegiado da sua demonstração.
2. Independentemente de valor ou não como título cambiário, a livrança consubstancia-se em documento particular previsto como título executivo no artigo 46º, alínea c), do Código de Processo Civil.(…)”6
    
    8. Uma boa interpretação não pode descurar o sentido exacto da norma e acautelar os reais interesses da parte, cabendo a esta optar pelos caminhos processuais que entenda mais adequados, desde que justificados ou desde que sobrevenha dúvida sobre essa justificação, concluindo-se, neste caso concreto, como acima esmiuçado, pela manifesta exequibilidade dos títulos.
    
    Explicado se mostra assim a falta do seu interesse em agir.
    
    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, nos termos e fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso.
    Com custas pelo recorrente.
    Macau, 14 de Março de 2013,

(Relator) João A. G. Gil de Oliveira
(Primeiro Juiz-Adjunto) Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto) José Cândido de Pinho
1 - Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Petrony, 1966, 41
21 - Expressamente sobre o assunto, Lebre de Freitas, CPC Anot., I, Coimbra Editora, 1999, 92 e Amâncio Ferreira, Curso de Proc. Exec., 12ª ed., 41 e 67
3 - Ac. STJ, de 30/10/2003, Proc. n.º 03B3056
4 - Ac. STJ, de 21/03/2001, Proc. n.º 02B3369

5 - Ac. STJ, de 17/11/2011, Proc. n.º 168/09

6 - Ac. STJ, de 15/05/2003, Proc. n.º 02B3251
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