Proc. nº 115/2013
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 02 de Maio de 2013
Descritores:
-Ampliação da matéria de facto
-Contrato de promessa
-Incumprimento do contrato
SUMÁRIO:
I – A ampliação da base instrutória até ao encerramento da discussão (nº2, al. f)), nos termos do art. 553º do CPC, só pode fundar-se em factos que integram a causa de pedir e nos “instrumentais”, “complementares” e “concretizadores” de outros que as partes tenham oportunamente alegado e que resultem da instrução e discussão da causa, nos termos do art. 5º do mesmo Código em obediência ao princípio dispositivo.
II – Se as partes convencionaram no contrato-promessa que a promitente vendedora se comprometia entregar o edifício já pronto (construído) à Administração para vistoria no prazo de “1000 dias de sol e de trabalho”, sem que a autora da acção tivesse invocado divergência entre a vontade e a declaração contratual, a contagem daquele prazo é feita somente em relação aos elementos objectivos contidos na expressão.
III – Assim sendo, não entrarão na contagem desse prazo os dias em que tiver chovido e todos os dias não úteis.
Proc. nº 115/2013
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I - Relatório
A, com os demais sinais dos autos, moveu no Tribunal Judicial de Base uma acção declarativa comum com processo ordinário contra “B Limitada”, devidamente identificada nos autos, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de HKD$ 5.940.000,00 correspondente ao dobro do que dizia ter pago a título de sinal e princípio de pagamento em contrato de promessa de compra e venda de duas fracções imobiliárias que a ré não teria cumprido, acrescida dos juros respectivos.
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Foi, na oportunidade, proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.
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Contra essa sentença recorre agora a autora da acção, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
«1. É aceite por unanimidade pela doutrina e jurisprudência que a incompletude do CD com as gravações da audiência de discussão e julgamento equivale à deficiência das gravações, o que constitui nulidade nos termos do artigo 147.º n.º 1 do Código de Processo Civil. Sem prescindir:
2. No entender do Tribunal a quo, não ficou ultrapassado o prazo previsto no contrato-promessa, pelo facto de o termo inicial não se contar a partir da emissão da licença de construção, mas antes a partir da revalidação da licença de construção que aditou dois pisos ao projecto; tendo ainda o Tribunal a quo decidido descontar do termo final todos os Domingos, todos os feriados (obrigatórios e não obrigatórios) e todos os dias em que terá ocorrido precipitação em Macau, concluindo que passaram apenas 999 e não 1000 dias de sol e de trabalho desde o termo inicial.
3. A Autora entende que a licença de construção n.º 43/2005, de 21 de Janeiro, é a licença relevante para efeitos da cláusula 3a do contrato promessa:
“(叁)交樓期限:甲方由土地工務運輸局最後批則獲準開工起計1000個晴天工作日完成建築工程交付政府驗收。倘屬甲方責任逾期交樓予乙方,甲方得按已收之樓款金額按年息三厘補回予乙方,非人力可抗拒之意外責任(包括申辦政府各有關之手續有所延誤)不在此限。”
4. A licença de utilização só foi obtida pela Ré em 31 de Agosto de 2010, conforme o documento que a Ré juntou na primeira sessão da Audiência de Discussão e Julgamento, em 5 de Março de 2012.
5. Com o devido respeito, o Tribunal a quo labora em erro de julgamento, devendo ter dado diferente resposta à matéria de facto, por forma a concluir que existe apenas uma licença de construção relevante, datada de 21 de Janeiro de 2005 (alínea O e quesito 3.º assentes pelo Tribunal) sendo as restantes meras revalidações ou extensões dessa licença, e que a partir de Novembro de 2007 é desprovido de lógica descontar possíveis dias de chuva, por ter sido provado que o edifício estava à data já concluído, faltando apenas obras de decoração interior.
6. Conclui-se, portanto, estar ultrapassado o prazo para a celebração do contrato prometido.
7. Ainda que assim não fosse, e ainda que se considerasse como termo inicial, como o faz o Tribunal a quo, a data da renovação da licença de construção que aditou a autorização para mais dois pisos (20 de Fevereiro de 2006) e se descontassem no termo os dias em que ocorreu precipitação em Macau, como defendeu a Ré, ainda assim teriam decorrido 1045 dias de trabalho e de sol, estando, ainda assim, ultrapassado o prazo estabelecido no contrato-promessa.
8. A decisão do Tribunal a quo padece ainda de omissão de pronúncia, ao desconsiderar o facto, alegado pela Autora e provado por documentos e prova testemunhal, da impossibilidade de entrega da fracção correspondente ao lugar de estacionamento n.º 62 AC/V4, igualmente prometida vender no contrato-promessa em discussão nos presentes Autos.
9. De acordo com as transcrições dos depoimentos das Testemunhas, os quesitos 25.º a 30.º não foram provados.
10. A Ré não provou, nomeadamente através da junção do mapa de trabalhos referido pela sua 3.ª Testemunha, que os seus trabalhadores efectivamente não trabalharam em todos os dias de chuva alegado se em todos os feriados, obrigatórios e não obrigatórios, e em todas as tolerâncias de ponto;
11. A Ré não provou que a toda a precipitação ocorrida em Macau ocorreu em horas de expediente, só assim se explicando a interrupção dos trabalhos;
12. A Ré não provou qual a intensidade de chuva que impede a continuação dos trabalhos, continuando sem se saber qual o critério que o Tribunal a quo usou para a contagem dos dias de chuva, o que não é consentâneo com a prática corrente em Macau, que é de apenas suspender os trabalhos de construção civil de edificação ou na estrutura [e não obras no interior) em caso de chuva igualou superior a 20mm no espaço de uma hora;
13. É desprovido de sentido e atentatório contra a boa fé contratual considerar dias de chuva (seja ela pouca ou muita. de noite ou de dia) ocorridos depois de completada a edificação e os trabalhos no exterior do edifício;
14. Desde 20 de Fevereiro de 2006 até 24 de Maio de 2010 (data em que foi requerida a vistoria junta da DSSOPT), decorreram 1555 dias de calendário, e não 1554 dias de calendário;
15. Existem 10 feriados obrigatórios por ano, únicos feriados gozados pelos trabalhadores da construção civil em Macau, sendo este facto do conhecimento geral.
16. Ao contrário, ficou provado em audiência de discussão e julgamento que os 1000 dias de trabalho e bom tempo previstos na Cláusula 3a do contrato-promessa de compra e venda de fls. 35 a 39 estavam de facto ultrapassados.
17. Designadamente, a Ré não entregou a fracção autónoma “14F”, do piso 14º do imóvel dentro do prazo aí constante, nem até à data pôde, nem pode, sequer entregar a fracção autónoma correspondente ao lugar de estacionamento n.º 62 da Cave 4, onde nem sequer se encontram individualizadas quaisquer fracções autónomas.
18. A Ré ainda hoje se encontra em mora, que já foi convertida em incumprimento definitivo ou inadimplemento definitivo, por perda do interesse da Autora na prestação, e, ainda, em segunda linha, por impossibilidade de cumprimento da prestação a que Ré se obrigou.
19. Quanto aos quesitos 32.º A e 32.º B, também devem ser dados como não provados:
20. A Autora, esperava obter as fracções no final de 2008, e quando interpelou a Ré para cumprir, fê-lo em 30 de Novembro de 2009, pelo que não tem sentido alegar-se que a Autora sabia perfeitamente que as obras não estariam concluídas em Janeiro de 2008.
21. Aliás, a Ré não produziu qualquer prova sobre o estado de ciência da Ré quanto à conclusão do edifício;
22. Foi provado, por todas as testemunhas, que em Novembro de 2007 não só tinha sido concluída a estrutura de betão do edifício, mas também que o edifício estava pronto no exterior e que no interior estava também praticamente pronto, bastando colocar alguns dos soalhos e terminar os acabamentos.
23. As respostas dadas aos referidos Quesitos, como consta da decisão proferida sobre a matéria de facto, violaram o princípio da livre apreciação da prova, contido no art. 558º do Código de Processo Civil, já que não tomaram em conta o concreto sentido das declarações proferidas em juízo pelas testemunhas.
24. Nesse sentido, reavaliada a prova, devem as respectivas respostas serem reformuladas, nos termos do Artigo 629º do CPC, no sentido dos Quesitos 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 32.oA, e 32.ºB serem dados como “Não Provados” e os Quesitos 12.º,13.º,14.º e 15.º serem dados como “Provados”.
25. Além da reformulação das respostas a estes quesitos deverá ainda o Tribunal ad quem, com base nos depoimentos das testemunhas acima transcritos e dos documentos carreados aos Autos pela Autora e pela Ré, aditar os seguintes factos relevantes à matéria assente:
Provado - Desde 20 de Fevereiro de 2006 até 24 de Maio de 2010 (data em que foi requerida a vistoria junta da DSSOPT), decorreram 1555 dias de calendário. [Correcção de erro de cálculo].
Provado - De 20 de Fevereiro de 2006 até 24 de Maio de 2010 ocorreram 222 Domingos e 32 feriados obrigatórios.
Provado - Aquando da celebração do contrato-promessa em 28 de Novembro de 2007, a Autora foi informada pelos promotores de vendas que o edifício estaria pronto a habitar no terceiro trimestre de 2008, Provado - Data provável de entrega essa que lhes tinha sido indicada pela Ré.
Provado - Aquando da celebração do contrato-promessa em 28 de Novembro de 2007, faltava apenas a conclusão dos acabamentos e obras de decoração no interior do edifício, tinham sido retiradas as gruas e andaimes, e materiais de construção encontravam-se dentro do edifício.
Provado - A licença de utilização do edifício não individualiza nem contempla a Cave 4 ou “AC/V4”, nem o parque de estacionamento n.º 62.
Provado - Os parques de estacionamento da Cave 4, “AC/V4”, ficaram afectos ao uso do público, estando a Ré impedida de transmitir a propriedade sobre os mesmos.
26. Como referiram as testemunhas arroladas pela Autora e pela Ré, nem todo o estacionamento ficou destinado a fins privados dos moradores das fracções autónomas do prédio urbano, ou seja, nem todos os adquirentes das fracções autónomas tiveram o correspondente parque de estacionamento privativo, como é o caso da Autora.
27. Veja-se, em pormenor, o registo do impedimento de transmissão das fracções da Cave 4 em 21 de Julho de 2010 por força do contrato de renovação da concessão em que passou a estar afecta ao público (vd. fls. 158, 159 e 160 a 166) e os testemunhos da 2.ª, 3.ª e 4.ª testemunhas da Autora e, principalmente, o testemunho da 1.ª testemunha da Ré.
28. Provado que está que a Ré ofereceu a Cave 4 ao estacionamento público em contrapartida pelo facto de ter ultrapassado o prazo de aproveitamento do terreno e de ter aditado mais dois pisos ao projecto (um de habitação e outro para comércio), e ainda que não se encontrasse desde há muito ultrapassado o prazo estabelecido na cláusula 3.a do contrato-promessa, o que apenas por mera exercício de raciocínio se concede, há, desde Julho de 2010 uma impossibilidade definitiva de cumprimento do contrato-promessa por culpa exclusiva da Ré, nos termos do Artigo 790.º do Código Civil de Macau.
29. Não se tendo pronunciado sobre a questão da inexistência da fracção correspondente ao parque de estacionamento n.º 62 da Cave 4 do edifício prometida vender, nem retirando daí a necessária consequência jurídica de incumprimento definitivo do contratopromessa por parte da Ré, é bom de ver que o acórdão recorrido incorre em omissão de pronúncia.
30. Mesmo que se aceite que o piso prometido adquirir pela Autora (fracção autónoma “14F”) não existia à data da licença de obras ou de construção n.º 43/2005 de 21 de Janeiro de 2005, o certo é que o mesmo não acontece com a Cave 4.
31. Foi provado, nomeadamente pela 1.a testemunha da Ré, que o edifício estava em 2005 construído já com o 14.º andar, em violação do projecto aprovado para construção, pelo que a violação dos requisitos governamentais por parte da Ré por sua exclusiva vontade e que levaram a demoras no aproveitamento dos terrenos e na renovação da licença de construção, deve ser imputada apenas à Ré.
32. A introdução de 100 parques de estacionamento pela Ré e as consequências governamentais dessa introdução só podem ser do conhecimento da Ré e nunca da Autora, que as desconhecia, sem obrigação de conhecer e em nada altera as legítimas expectativas e garantias da Autora, que sabia que no prazo de 1000 dias de sol e de trabalho após a licença de construção a n.º 43/2005, de 21 de Janeiro de 2005 iria ser o prédio apresentado à licença de utilização e celebrado o contrato definitivo. Também não afecta, portanto, a legítima expectativa de a Autora celebrar o contrato definitivo em finais de 2008, como informado pelos promotores da venda, baseados nas informações fornecidas pela R, e nunca em finais 2010.
33. Foi dito à Autora que em finais de 2008 o edifício estaria terminado e pronto a habitar, pelo que não cabe à Autora saber, se tinham sido acrescentados dois pisos ao projecto ou não, e se isso implicou novas aprovações da DSSOPT.
34. Nestes termos, em nome da segurança jurídica e da protecção das legítimas expectativas das partes, a licença a ser tida em conta é a de 21 de Janeiro de 2005 e não 2006, nos termos da alínea O e quesito 3.º assentes pelo Tribunal, para começo do termo da contagem do prazo ínsito na Cláusula 3.ª do contrato-promessa.
35. A Autora considera que, considerar a licença de construção mencionada no contrato como se referindo à renovação de 2006 é, portanto, altamente atentatório dos ditames da boa fé, nos termos do artigo 219º do Código Civil.
36. Verificando-se que a Ré incumpriu o contrato-promessa, não só porque já decorreram mais de 1000 dias de sol e de trabalho desde a emissão da licença de construção n.º 43/2005 de 21 de Janeiro de 2005 (alínea O e da matéria de facto assente e quesito 3.º assente pelo Tribunal), incumprindo com a cláusula 3.a do contrato-promessa, cabe à Autora o direito de resolver o contrato e reaver o dobro do sinal prestado, nos termos da segunda parte do número 2 do artigo 436º do Código Civil, desde que em finais de 2009 perdeu - objectivamente considerado - o interesse no cumprimento do contrato-promessa;
37. Verificado que, ainda que assim não fosse, a Ré nunca poderia entregar o lugar de estacionamento n.º 62 da Cave 4, pois a mesma fracção autónoma não está individualizada, não tem licença de utilização, e não se encontra registada para uso privativo dos moradores, mas antes do Governo da Região Administrativa Especial de Macau, por força da revisão da concessão, verifica-se impossibilidade de cumprimento equivalente a incumprimento definitivo culposo por parte da Ré, cabendo à Autora o direito de resolver o contrato e reaver o dobro do sinal prestado, nos termos da segunda parte do número 2 do artigo 436º do Código Civil.
38. Deve, pois, ser devolvido o sinal prestado em dobro pela Autora, por parte da Ré, ou seja, deve esta última ser condenada a pagar o montante de HKD$ 5.940.000,00 (cinco milhões, novecentos e quarenta mil Dólares de Hong Kong) ou o equivalente em Patacas de MOP 6.118.200,00 (seis milhões, cento e dezoito mil e duzentas patacas), acrescidos de juros de mora vencidos desde a constituição da Ré em mora (número 1 do artigo 795º do Código Civil) até integral e efectivo pagamento, bem como no pagamento dos juros vincendos à taxa legal, custas do processo e procuradoria condigna, conforme peticionado,
39. Fazendo V. Exas., a costumada Justiça!
Para cumprimento do disposto no número 2 do Artigo 598.º do Código de Processo Civil, indicam-se os Artigos 219.º, 752.º, 790º, 793º, 794º e 797º e 436º do Código Civil e os Artigos 556º e 558. º do Código de Processo Civil como as normas legais em cuja violação o acórdão recorrido incorre.
NESTES TERMOS. E NOS MAIS EM DIREITO CONSENTIDOS QUE VÓS. VENERANDOS JUÍZES. MUITO DOUTAMENTE SUPRIREIS. SE REQUER:
a) A REAPRECIAÇÃO DOS FACTOS DADOS POR PROVADOS E REVOGAÇÃO DA DOUTA DECISÃO FINAL PROFERIDA PELO O TRIBUNAL COLECTIVO A QUO QUANTO AOS QUESITOS 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 32.oA, CUJA RESPOSTA DEVERA SER REFORMULADA PARA “NÃO PROVADO”, BEM COMO QUANTO AOS QUESITOS 12.º, 13.º, 14.º E 15.º OS QUAIS DEVERÃO PASSAR A CONSIDERAR-SE “PROVADOS” DANDO-SE, EM CONSEQU~NCIA COMO ASSENTE A MATÉRIA DE FACTO NELES CONSTANTE;
b) SEJA O ACÓRDÃO RECORRIDO DECLARADO NULO POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA E ADITADA A SEGUINTE FACTUALIDADE ASSENTE:
“Desde 20 de Fevereiro de 2006 até 24 de Maio de 2010 (data em que foi requerida a vistoria junta da DSSOPT), decorreram 1555 dias de calendário;
De 20 de Fevereiro de 2006 até 24 de Maio de 2010 ocorreram 222 Domingos e 32 feriados obrigatórios; Aquando da celebração do contrato-promessa em 28 de Novembro de 2007, a Autora foi informada pelos promotores de vendas que o edifício estaria pronto a habitar no terceiro trimestre de 2008, data provável de entrega essa que lhes tinha sido indicada pela Ré; Aquando da celebração do contrato-promessa em 28 de Novembro de 2007, faltava apenas a conclusão dos acabamentos e obras de decoração no interior do edifício, tinham sido retiradas as gruas e andaimes, e materiais de construção encontravam-se dentro do edifício;
A licença de utilização do edifício não individualiza nem contempla a Cave 4 ou “AC/V4”, nem o parque de estacionamento n.º 62;
Os parques de estacionamento da Cave 4, “AC/V4”, ficaram afectos ao uso do público, estando a Ré impedida de transmitir a propriedade sobre os mesmos.”; E
c) SEJA o DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO REVOGADO E SUBSTITUIDO POR OUTRO ARESTO QUE, EM FACE DOS FACTOS PROVADOS. E DA APLICAÇÃO DO DIREITO. JULGUE O 'PRESENTE RECURSO TOTALMENTE PROCEDENTE POR PROVADO. COM A CONSEQUENTE CONDENAÇÃO DA RÉ NO PEDIDO.
Para que, pela douta palavra de V.Exas., se cumpra a habitual Justiça!».
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A ré da acção respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
«1. Não existe incompletude na gravação da prova produzida, estando todas as três sessões de julgamento devidamente vertidas no registo que à Ré foi facultado.
2. A existir incompletude - que a Ré desconhece - terá sido na entrega das gravações à Autora, para preparação das alegações de recurso.
3. A ser assim, terá ocorrido um justo impedimento, que à Autora cumpria invocar, ao abrigo do disposto no artigo 96.º do CPC, para ser admitida a praticar o acto fora de prazo, logo que o impedimento cessasse.
4. Não o tendo feito, não pode agora a Autora aproveitar tal facto para invocar uma nulidade processual, quando, ademais, a gravação alegadamente em falta seria apenas a do debate sobre a matéria de facto.
5. Competia à Autora alegar e provar o incumprimento contratual, conforme dispõem as regras sobre a distribuição do ónus de prova (artigo 335. º do CC), não tendo feito nem uma coisa, nem outra.
6. Com a reapreciação da prova não conseguirá a Autora ver provados os factos necessários a que se concluísse pelo incumprimento contratual por parte da Ré.
7. Basta tal facto para tornar a reapreciação inútil, pois que as alterações propostas pela Autora não conduzem a uma diferente decisão de direito.
8. Os concretos elementos probatórios a que a Autora se reporta nas suas alegações não impõem respostas diferentes daquelas que o Colectivo deu aos artigos da base instrutória.
9. Só existe omissão de pronúncia quando o Tribunal não aprecie questão que deveria apreciar, conforme impõe o artigo 571.º, n.º 1, al. d) do CPC.
10. A Autora não levou ao conhecimento do Tribunal a questão relacionada com o parque de estacionamento, nem esta foi sujeita a contraditório, pelo que não podia a Autora esperar do tribunal pronunciamento sobre a mesma.
11. Não foi feita prova de que, 30 de Novembro de 2009, aquando da interpelação feita pela Autora, ou em 12 de Janeiro de 2010, aquando da declaração de resolução contratual por incumprimento definitivo, a Ré estivesse em mora na sua obrigação de requerer a vistoria do prédio à DSSOPT.
12. Pelo contrário, fez-se prova de que, nessas datas, bem como aquando da propositura da acção, o prazo de 1000 dias de sol e de trabalho não tinha ainda decorrido, sobretudo tendo em atenção os atrasos imputáveis aos departamentos governamentais competentes, que somaram 456 dias.
Termos em que deve o recurso interposto pela Autora ser indeferido, com todas as consequências legais, assim se fazendo JUSTIÇA».
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Cumpre decidir.
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II - Os Factos
«A R. é uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada que exerce a sua actividade na área de construção e compra e venda de imóveis, tendo iniciado a sua actividade comercial no dia 5 de Setembro de 1990. (A)
No âmbito da sua actividade comercial, a R. recebeu em regime de concessão por aforamento, por Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 2/2005, publicado no Boletim Oficial, n.º 2, II Série, de 12 de Janeiro, várias parcelas de terreno que se destinavam a ser anexadas e aproveitadas conjuntamente, constituindo um único lote com a área de 2.136m2. (B)
Sendo que a anexação dos terrenos em causa se destinava à construção de um edifício em regime de propriedade horizontal, compreendendo dezassete pisos, incluindo quatro pisos em cave, afectos às seguintes finalidades: Habitação, Comércio e Estacionamento. (C)
No despacho de concessão por aforamento supra identificado estipulou-se que o prazo de aproveitamento do terreno seria de 36 meses, a contar de 12 de Janeiro de 2005, data da publicação da concessão no boletim oficial. (D)
Recebida a concessão supra, a R. solicitou o competente registo junto da Conservatória do Registo Predial, a que coube a inscrição número 30719F. (E)
No dia 28 de Novembro de 2007, a R. celebrou com o A. um contrato-promessa de compra e venda, relativamente ã fracção autónoma designada por “F14”, do 14º andar F, para habitação e, bem assim, a compra de um espaço para estacionamento designado por “AC/V4”, correspondente ao parque n.º 62. (F)
No contrato-promessa as partes estipularam expressamente que o preço global para a compra e venda das duas fracções seria de HKD$9.700.000,00 (nove milhões e setecentos mil dólares de Hong Kong). (G)
Sendo que ficou expressamente consignado que o preço acordado seria pago da seguinte forma:
- HKD$1.150.000,00, no acto de assinatura do contrato;
- HKD$455.000,00, no dia 28 de Janeiro de 2008;
- HKD$455.000,00, no dia 28 de Março de 2008;
- HKD$910.000,00, no dia 28 de Maio de 2008; e
- o remanescente no montante de HKD$6.730.000,00 seria pago nos 14 dias subsequentes à emissão da licença de utilização. (H)
Para o cumprimento aos termos e às cláusulas do contrato-promessa acima melhor identificado, a A. pagou no acto de assinatura, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de HKD$1.150.000,00 (um milhão cento e cinquenta mil dólares de Hong Kong), tendo a R. recebido a referida quantia e dado a respectiva quitação. (I)
De igual modo e dentro dos prazos fixados para o efeito, a A. pagou as demais três prestações conforme acordado e constante da alínea H), no valor global de HKD$1.820.000,00, valores do qual a R. passou igualmente a respectiva quitação. (J)
Tendo a A. pago a título de sinal e princípio de pagamento a quantia global de HKD$2.970.000,00, da qual recebeu a respectiva quitação. (K)
No dia de 30 de Novembro de 2009, a A. interpelou a R. para a marcação da data da escritura e consequente entrega das fracções autónomas, a qual deverá ter lugar até 30 dias após a recepção da carta, sob pena de vir a perder interesse na celebração do contrato de compra e venda. (L)
Em resposta à carta de interpelação, a R. informou a A. que o prazo estabelecido no contrato-promessa de compra e venda ainda não tinha expirado, bem como, para efeito de contagem do prazo estabelecido no contrato-promessa deveria ter-se em consideração a licença de 27 de Fevereiro de 2007 (emitida no dia 26 de Fevereiro de 2007) e não a de 21 de Janeiro de 2005, porquanto à data da assinatura do contrato-promessa, a licença válida era a de 27 de Fevereiro de 2007. (M)
Inconformada com teor da carta da R., a A. informou à R., por carta de 12 de Janeiro de 2010, em virtude dos atrasos na finalização da obra e consequente falta de entrega das fracções, este perdeu o interesse na compra das fracções em causa e pediu a devolução do sinal em dobro. (N)
Com o conhecimento da A., a licença de obras para construção do referido imóvel já foi emitida no dia 21 de Janeiro de 2005, válida por um período de 10 meses. (O) Provado apenas o teor da cláusula 3a do contrato de fls. 35 a 39 dos autos que se dá aqui por integralmente reproduzido. (1º e 2º)
Corridos mais de 1000 dias sobre a emissão da licença de obras datada de 21 de Janeiro de 2005, a R. não procedeu à entrega das fracções. (3º)
Ultrapassada a data do aproveitamento do terreno fixado nos termos do contrato de concessão, a R. ainda não obteve a licença de utilização. (4º)
A A. diligenciou no sentido de saber se as obras já estavam concluídas e quando é que a licença de utilização seria emitida pela DSSOPT. (6º)
Bem como, saber quando é que a R. se propõe entregar as fracções e quando é que marcar a data para a celebração do contrato definitivo. (7º)
Porém, a A. não conseguiu obter essas informações exigidas. (8º)
A licença que foi emitida em 26 de Janeiro de 2007, com prazo de validade entre 27 de Fevereiro de 2007 e 26 de Fevereiro de 2008, é tão somente tratada como a segunda revalidação da licença de obra emitida no dia 21 de Janeiro de 2005. (10º)
A licença referida na alínea O) dos factos assentes tinha sido sujeita a várias e sucessivas revalidações, designadamente, nos dias 20 de Fevereiro de 2006, 26 de Janeiro de 2007, 6 de Março de 2008, 2 de Fevereiro de 2009 e no dia 30 de Março de 2010, respectivamente, tendo sido, igualmente prorrogada no dia 27 de Fevereiro de 2010 com prazo até 26 de Abril de 2010. (11º)
Provado apenas a resposta dada aos quesitos 1º e 2º. (12º e 13º)
Provado apenas a resposta dada ao quesito 3º. (15º)
Foi efectuado o registo provisório da propriedade horizontal j unto da Conservatória do Registo Predial em 18 de Maio de 2010. (16º)
Quesito 17º - Provado apenas a resposta dada aos quesitos 1º e 2º.
Quando a licença de obras nº 43/2005 de 21 de Janeiro de 2005 foi emitida, o projecto de construção do edifício não contemplava o 14º piso. (18º)
A licença de construção acima referida não abrange a fracção autónoma (14F) que a A. pretende adquirir. (19º)
Só em 18 de Julho de 2005, foi entregue na DSSOPT um pedido de alteração do projecto de arquitectura, por via do qual foram acrescentados 2 pisos ao projecto (cfr. doc. de fls. 237 e 238). (20º)
Este pedido de alteração foi, por ofício de 28 de Setembro de 2005, considerado “passível de aprovação”. (21º)
A construção do edifício com o aditamento dos 2 pisos só veio a ser aprovada por ofício em 6 de Fevereiro de 2006. (22º)
Provado apenas a resposta dada ao quesito 18 º. (23º)
Provado apenas a resposta dada aos quesitos 1º e 2º. (24º)
Desde 27 de Fevereiro de 2007 até 24 de Maio de 2010 (data em que foi requerida a vistoria junto da DSSOPT), decorreram 1182 dias de calendário. (25º)
Neste mesmo período, ocorreram 169 Domingos, 58 feriados, e 147 dias em que choveu. (26º e 27º)
Desde 20 de Fevereiro de 2006 até 24 de Maio de 2010 (data em que foi requerida a vistoria junto da DSSOPT), decorreram 1554 dias de calendário. (28º)
Durante este período, ocorreram 222 Domingos, 77 feriados, e 256 dias em que choveu. (29º e 30º)
O processo de aprovação dos projectos por parte da DSSOPT sofreu atrasos, que tiveram como consequência uma demora na conclusão do projecto. (31º)
Em 12 de Setembro de 2007, a R. apresentou na DSSOPT um pedido com o Talão T-5927 (cfr. doc. n.º 2 junto com a contestação cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). (31º-A)
Este pedido apenas veio a obter resposta em 10 de Julho de 2008, conforme ofício 7224/DURDEP/2008 (cfr. doc. n.o 3 junto com a contestação cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). (31º-B)
Em 25 de Novembro de 2008, a R. entregou novo pedido com o Talão T-8801 (cfr. doc. n. º 4 junto com a contestação cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). (31º-C)
Este pedido apenas veio a obter resposta em 21 de Agosto de 2009, conforme ofício 9100/DURDEP/2009, (cfr. ofício de doc. n.º 5 junto com a contestação cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). (31 º-D)
Em 25 de Novembro de 2009, a R. entregou novo pedido com o Talão T-7948 (cfr. doc. n. º 6 junto com a contestação cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). (31º-E)
Este pedido apenas veio a obter resposta em 12 de Março de 2010, conforme ofício 3193/0UROEP/2010 (cfr. ofício de doc. n.º 7 junto com a contestação cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). (31º-F)
A A. sabia, quando celebrou o contrato-promessa, que o edifício não estaria terminado em 12 de Janeiro de 2008. (32º-A)
Em 28 de Novembro de 2007 tinha sido concluída a estrutura de betão do edifício. (32º-B)».
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III - O Direito
1 – O caso
Tudo remonta a um contrato celebrado em 28/11/2007 entre A. e R. da acção, em que a segunda prometia vender e a primeira prometia comprar a fracção autónoma F-14 do 14º andar destinado a habitação e a fracção destinada a espaço para estacionamento designado AC/V4, correspondente ao parque 62 do mesmo edifício em construção.
Todavia, para a A. as fracções não teriam sido entregues à promitente compradora no prazo de “1000 dias de sol e trabalho” a contar da data da obtenção da licença de obras para a construção do projecto da obra, conforme estipulado na cláusula 3ª do contrato (fls. 35).
Teria a autora diligenciado por diversas vezes junto da ré, promitente vendedora, obter uma indicação acerca da data da conclusão das obras, mas a informação não era prestada. Facto que a levaria a uma interpelação da demandada com esse propósito no dia 30/11/2009, na sequência do que a resposta da ré da acção viria a ser no sentido de que o prazo de 1000 dias ainda se não teria esgotado.
Ante a divergência de pontos de vista, o caso saltou para o tribunal. Pretende a autora da acção, resolvido por perda de interesse o contrato de promessa de compra e venda com base no atraso culposo que imputa à ré, que a demandada seja condenada a pagar-lhe em dobro a quantia que a título de sinal e princípio de pagamento lhe havia adiantado.
Mas a sentença que nos autos foi proferida considerou não haver incumprimento do contrato-promessa em virtude de o dito prazo de “1000 dias de sol e trabalho” não estar ainda esgotado. Basicamente, este foi o fundamento para a decisão de improcedência da acção.
*
2 – O Recurso
Inconformada, a autora vem recorrer para este tribunal. Fê-lo numa peleja que dirigiu em várias frentes, a saber:
- Arguindo uma nulidade processual (por incompletude da gravação da prova);
- Suscitando a nulidade de sentença, por omissão de pronúncia;
- Pugnando pelo erro de julgamento da matéria de facto;
- Invocando erro de julgamento de direito.
Apreciemos os fundamentos citados pela ordem indicada, uma vez que nas alegações e respectivas conclusões se nota um desvio a esta ordem e que, por isso, não parece respeitar os cânones processuais estabelecidos no Código de Processo Civil.
*
2.1 – Da nulidade processual
Trata-se da matéria da conclusão 1. (pontos I- 1 a 5 das alegações), segundo a qual a recorrente se diz impossibilitada de cumprir em plenitude o seu mandato no que concerne ao recurso da matéria de facto, uma vez que não teve acesso à gravação de todas as três sessões de julgamento.
Ora bem. Segundo as suas próprias palavras, ter-lhe-ia sido facultado um CD que apenas conteria a gravação da 1ª sessão de julgamento no dia 7 de Novembro de 2012. Por esse facto, pediu a gravação integral das sessões, na sequência do que lhe foi fornecido um segundo CD. Mas, após a audição deste segundo CD chegou à conclusão que também a 3ª sessão não estava incluída nesse suporte informático. Faltaria, portanto, a gravação da 3ª sessão.
É isto o que leva a autora a reclamar a existência da referida nulidade processual nos termos do art. 147º, nº1 do CPC. Ora, mesmo sem expressamente o ter referido, cremos que a recorrente pretende inserir a nulidade na “omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva”, cuja verificação possa ter influído no exame ou decisão da causa. Pois bem. Estamos no âmbito de um registo magnético da prova (arts. 448º e 449º do CPC) e do direito de a ele aceder por parte do recorrente que pretenda efectuar, em recurso jurisdicional, a impugnação da matéria de facto (art. 599º, do CPC). Neste caso, a violação estaria, pretensamente, no facto de a aqui recorrente não ter tido acesso à gravação da 3ª sessão, visto que o segundo CD que lhe foi fornecido não estava completo.
Nós, todavia, não sufragamos a tese da recorrente por duas principais razões: Em primeiro lugar, porque ela se acomodou à omissão. Isto é, ao ter verificado a falta do registo da 3ª sessão deveria ter logo dado conta do facto ao tribunal para que ela pudesse ser suprida imediatamente. Não o fez, porém, numa atitude não reactiva que parece ser de conformismo. Em segundo lugar, a omissão não terá tido importância negativa suficiente para ser considerada nulidade. Com efeito, se o que leva à nulidade é uma omissão que possa ter reflexo no exame e decisão da causa, e se nesse enquadramento podermos nós incluir o barramento ao acesso à gravação para efeito de recurso jurisdicional, então perante essa possibilidade não estamos no caso em apreço por dois motivos. Realmente, por um lado, a 3ª sessão teve por finalidade o debate sobre a matéria de facto; nela não se realizou qualquer produção de prova, porque simplesmente se destinou a alegações orais (ver fls. 2 do apenso “traduções” e 366 dos autos). Quer dizer, não se está perante um caso de sonegação de elementos essenciais ao exercício do direito de recorrer e ao direito de ver modificada a decisão recorrida. Por outro lado, como é bom de ver, o não acesso aos elementos da gravação da 3ª sessão não inibiu a recorrente de desencadear uma peleja jurisdicional imaculada, tal como se pressente nas suas alegações. Ou seja, independentemente dos princípios que a recorrente tenha por basilares e ao abrigo dos quais tenha recorrido (cfr. ponto 3 das alegações), a verdade é que não se nota que algo tivesse ficado por dizer no recurso em consequência da não entrega da gravação das ocorrências na 3ª sessão. Por conseguinte, não podemos dizer que, com arrimo ao art. 147º do CPC, se esteja perante a invocada nulidade, que deste modo se julga improcedente.
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2.2 – Nulidade da sentença
Acometeu a recorrente de nula a sentença por omissão de pronúncia nas conclusões 8ª e 27ª a 33ª (pontos II- 3 e V- 9 a 13 das alegações).
O que está agora em causa? Uma alegada omissão de pronúncia a respeito da fracção destinada a aparcamento automóvel. Para a autora da acção estava em questão o incumprimento da ré no que respeita a ambas as fracções (habitacional e lugar de garagem). E assim sendo, haveria que emitir pronúncia expressa a respeito da inexistência da fracção destinada a estacionamento automóvel correspondente ao nº 62 da Cave 4 do edifício prometido vender. Isto, porque, conforme decorre da matéria do julgamento, a cave 4 (AC/V4 onde estava a fracção destinada a aparcamento) teria vindo a ser destinada a uso governamental, sem possibilidade de as respectivas parcelas poderem ser cedidas a uso provado dos titulares das fracções habitacionais, ao contrário do que estava inicialmente projectado. Ora, diz a recorrente, tendo esta matéria resultado da audiência de discussão e julgamento sem que a sentença lhe tivesse feito qualquer alusão, o silêncio verificado é fulminado com a nulidade por omissão de pronúncia do art. 571º, nº1, al. d), do CPC. Em especial, argumenta ainda, devido ao facto de a sentença não se ter pronunciado sobre a impossibilidade de a ré da acção, aqui recorrida, poder cumprir o contrato-promessa na parte referente ao lugar de garagem.
Sobre o assunto, a parte contrária nas suas alegações de resposta ao recurso, assevera que esta matéria não fez parte da fundamentação da sentença por não ter sido invocado, nem na petição inicial, nem em qualquer articulado superveniente.
Tem razão, quanto a isso, a recorrida. A verdade é que essa matéria não fez parte, efectivamente, da causa de pedir inserta na petição inicial, nem foi trazida aos autos em nenhum outro articulado posterior. A causa de pedir, como se viu, alicerça-se num atraso culposo por parte da ré da acção, enquanto o que a recorrente pretende agora era que a 1ª instância se pronunciasse sobre uma causa de resolução assente numa impossibilidade de cumprimento por parte da demandada em relação ao lugar de garagem. Isto é o mesmo que dizer que a recorrente traz neste momento à liça um fundamento concebido em audiência por algumas testemunhas, contudo a respeito matéria que não fazia parte da base instrutória. Ora, as testemunhas limitaram-se a trazer esse elemento ao tribunal, mas sem que sobre ele houvesse matéria controvertida que devesse ser depurada em artigos de questionário.
Ainda que sejam dados com algum relevo, não traduziam uma questão que as partes tivessem submetido à apreciação do tribunal (cfr. art. 563º, nº2, do CPC), não sendo, por seu lado, caso de conhecimento oficioso (art. 563º, nº3, do CPC), razão pela qual o tribunal “ a quo” não lhes fez referência, como se disse, na respectiva sentença. Sendo matéria nova, apenas poderia ser motivo para uso da faculdade do art. 216º do CPC na hipótese de acordo das partes. Todavia, na falta desse acordo, se o problema fosse encarado pela modificação da causa de pedir, então ela só poderia ocorrer até à réplica, se o processo a admitisse (art. 217º, nº1, CPC); e se a questão fosse de alteração do pedido, ela poderia ser feita até ao encerramento da discussão (art. 217º, nº2, do CPC), o que não aconteceu.
De resto, nem o problema pode ter a resolução que o art. 553º do CPC consente noutras ocasiões, que é a ampliação da base instrutória até ao encerramento da discussão (nº2, al. f)), já que mesmo nessa hipótese a actuação ali consentida ao juiz presidente só pode fundar-se em factos que integram a causa de pedir e nos “instrumentais”, “complementares” e “concretizadores” de outros que as partes tenham oportunamente alegado e que resultem da instrução e discussão da causa, nos termos do art. 5º do mesmo Código em obediência ao princípio dispositivo. Ora, este facto (impossibilidade de concretização da compra e venda da fracção de garagem) não é instrumental, nem complementar, nem concretizador; é, antes, um facto completamente novo e distinto da causa de pedir e até mesmo da causa de resolução (mora do devedor) comunicada pela autora à ré da acção (N).
Portanto, na falta dos indicados pressupostos, o tribunal “a quo” não tinha que abordar “ex novo”e oficiosamente tal questão (o que não obstará, cremos nós, a que em nova acção assente nessa causa de pedir a A. prossiga os mesmos objectivos que a trouxeram aos presentes autos). E por ser assim, não achamos que a sentença padeça da nulidade que a recorrente lhe imputou.
Julga-se, pois, improcedente a arguição de nulidade.
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2.3 – Do erro de julgamento da matéria de facto
Quanto a este aspecto do objecto do recurso, a matéria em causa está alinhada nas conclusões 5ª, 9ª, 11ª, 12ª, 16ª, 19ª, 21ª, 22ª, 23ª, 25ª, 26ª (pontos II-3; II-4; IV-1-A a G; V-1 a 8).
O que está em causa aí?
2.3.1 - No ponto II-3, embora a recorrente diga que existe apenas uma licença de construção relevante, que é a de 21 de Janeiro de 2005, “sendo as restantes meras revalidações ou extensões dessa…”, o que é certo é que se o tribunal “a quo” seguiu um entendimento diferente, estamos seguros que ele decorre de uma simples interpretação e não de matéria de facto que possa ter tido mau julgamento. Isto é, o tribunal assentou que existiram essas licenças (inicial e renovações); simplesmente, para o cálculo dos tais mil dias, partiu de um dies a quo com o qual a recorrente não concorda. Isso, porém, não significa que o tribunal errou o julgamento da matéria de facto, mas que, quando muito - coisa que veremos mais adiante -, possa ter errado no respectivo enquadramento jurídico.
E se isto dizemos do ponto II-3, o mesmo somos a dizer do ponto II.4 das alegações, na medida em que a recorrente ali se limita a uma afirmação meramente conclusiva (talvez isso resulte de um avanço preparatório com vista ao desenvolvimento que vem a fazer em fase posterior das alegações).
Portanto, nessa parte, não se acolhe a posição da recorrente.
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2.3.2 - No ponto IV-1 a recorrente faz a transcrição do depoimento de testemunhas várias, na tentativa de fazer ver o tribunal de recurso do erro em que alegadamente teria incorrido o tribunal recorrido acerca da matéria de facto que deu por provada.
Ora bem. Ainda que a recorrente tenha antecedido as transcrições do sentido e fundamento por que as fez (v.g., “sobre a data prevista para entrega das fracções”), a verdade é que, contra o que seria o seu dever de explicitar os artigos do questionário a que se referia, nenhuma alusão concreta fez sobre a matéria da base instrutória correspondente, o que torna mais difícil a nossa tarefa.
De qualquer maneira, sempre diremos:
- Quanto à data de entrega das fracções incluída nos “quesitos” 13º, 14º e 17º (ainda continuamos a preferir esta designação à mais extensa e pomposa de “artigos da base instrutória”), a resposta do tribunal foi a de remeter para a resposta aos quesitos 1º e 2º, que se limitam a acolher a matéria da cláusula 3º do contrato de promessa de fls. 35 a 39. Ou seja, para o tribunal nada foi apurado em sentido contrário ou diferente do clausulado, nomeadamente que a entrega se haveria de fazer em finais do ano de 2008. E a verdade é que tais depoimentos apenas dão conta que a ré teria dito às agentes imobiliárias que a data prevista para a entrega seria o 3º trimestre de 2008, e que as vendas se iniciaram em fase de adiantado estado da construção, em que praticamente só faltavam os acabamentos interiores. Ora, isso não significa que as respostas devessem ser diferentes. Na realidade, se olharmos para os quesitos, o que neles se perguntava era se a Ré devia entregar as fracções no 1º semestre de 2008 por estarem as obras prontas em Janeiro desse ano (13º), se a ré tinha declarado à A. que a entrega se faria em Novembro de 2008 (14º) e se o prazo para a entrega se reportava à entrega, não à A., mas sim ao Governo para vistoria (17º). Ora, as transcrições feitas não dão resposta a tais questões, porque fogem ao que de essencial nelas se pergunta. Não interessa saber o que as agentes sabiam ou o que a ré lhes teria dito ou até mesmo o que elas sabiam sobre o estado adiantado da obra; o que importava era dar resposta aos factos específicos incluídos naqueles artigos do questionário. E isso não está contido de uma maneira directa e frontal nos depoimentos transcritos. Portanto, a resposta remissiva para o que consta da cláusula 3º do contrato parece-nos a mais prudente e sensata e aquela que, sem qualquer dúvida, corresponde à realidade objectiva apurada.
- A respeito do prazo razoável para a construção do imóvel (ver quesito 4º), o tribunal não deu resposta por achar a matéria conclusiva. Bom, é um ponto de vista que não está posto em causa no recurso especificamente. E, realmente, a densificação deste “prazo razoável” tem um carácter nitidamente subjectivo, que o tribunal achou não estar em condições de efectuar. Nada, portanto, que se possa criticar sob esse ponto de vista, face ao que dispõe o art. 430º do CPC.
- Quanto ao estado do edifício sobre o qual as testemunhas foram perguntadas, embora elas fossem mais ou menos unânimes numa resposta afirmativa quanto à fase adiantada da obra ou da fracção prometida comprar pela A. da acção, o certo é que nada do que disseram tem importância para a matéria quesitada. Com efeito, não importava saber se a construção estava adiantada quando o prédio foi posto à venda pelas agências imobiliárias, ou quando a A. prometeu comprar as suas fracções, na medida em que isso não era perguntado na base instrutória, nem é determinante para saber se a R. falhou o prazo de entrega. Assim como pouco interessava saber se alguma agente imobiliária disse à A. qual seria a data previsível para a entrega das fracções (isso apenas responsabiliza, eventualmente, as relações entre ambas), se o que releva é o efectivo cumprimento do contrato celebrado entre a A. e a R. da acção.
Portanto, nada sobre o prazo de entrega e sobre a fase do edifício em construção é mais valioso do que o teor da cláusula 3º do contrato de promessa. Quer dizer, pois, que aquela matéria não tinha o condão de explicar ou fazer interpretar o teor da referida cláusula. Os factos sobre que depuseram nos trechos testemunhais transcritos nem tão pouco de modo longínquo mostram relevo para o cerne da principal questão, que é o cumprimento do prazo estipulado contratualmente. Mesmo que, por absurda hipótese, o edifício estivesse pronto antes, a Ré da acção sempre estaria dentro do prazo para a entrega se a fizesse no último dia dos 1000 dias contratualizados. Por isso, parece-nos até irrelevante a matéria referente ao estado do prédio.
- A respeito da fracção referente ao lugar de garagem, três principais testemunhas depuseram sobre o assunto. Uma (2ª da autora) referiu-se à impossibilidade de entrega do lugar 62 à A. possivelmente devido a problemas de registo; outra (3ª da autora) disse que o “parque de estacionamento foi para o Governo”; a terceira (1ª da R.) afirmou que a fracção correspondente a esse lugar de aparcamento não seria entregue à A. por ter feito parte de um acordo com o Governo quanto ao espaço da cave 4 e que a A. teria que ir para a cave 3, cujo lugar de garagem seria mais caro.
Ora, isso não fez parte da matéria quesitada, nem, como se disse já, é elemento da causa de pedir. Portanto, não podia o tribunal fazer uso dos depoimentos em apreço sobre esta factualidade.
- Quanto ao prazo de mil dias e sua contagem, o que os depoimentos transcritos transmitem é algo que não permite uma conclusão segura sobre o critério de contagem: ou não se aventuram a emitir opinião (1ª e 3ª testemunhas da A.) ou opinam sobre o assunto de um modo puramente subjectivo (1ª, 2ª e 3ª testemunhas da R.).
Ora, sendo assim, nós não vemos em que medida tais depoimentos devessem levar o colectivo da 1ª instância a dar diferente resposta a esta matéria.
E, sendo assim, tem que improceder a alegação em causa.
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2.3.3- A seguir, a recorrente no capítulo V das suas alegações (ponto 24 das conclusões) defende respostas diferentes das que foram dadas aos quesitos 25º a 30º.
Vejamos um a um.
No quesito 25º perguntava-se se “Desde 27 de Fevereiro de 2007, data do início de validade da licença em vigor à data da assinatura do contrato-promessa, até à data em que foi requerida a vistoria por parte da DSSOPT, 24 de Maio de 2010, decorreram 1182 dias de calendário”.
A resposta foi no sentido de que “Desde 27 de Fevereiro de 2007 até 24 de Maio de 2010 (data em que foi requerida a vistoria junto da DSSOPT) decorreram 1182 dias de calendário”.
No quesito 26º perguntava-se se “Neste mesmo período ocorreram 169 Domingos, 58 feriados e 147 dias de chuva, num total de 374 dias que não são “de sol e de trabalho”.
No quesito 27º perguntava-se se “Entre 27 de Fevereiro de 2007 e 24 de Maio de 2010 decorreram 808 dias de “sol e de trabalho”.
A resposta comum a ambos foi a de que “ Provado apenas que neste mesmo período ocorreram 169 Domingos, 58 feriados e 147 dias em que choveu”.
No quesito 28º perguntava-se “Ou, caso se considere como referência para o início da contagem do prazo a data de 20 de Fevereiro de 2006, data em que a licença com aprovação final do projecto existente foi entregue à Ré, terão decorrido, até à data em que foi requerida a vistoria por parte da DSSOPT, 24 de Maio de 2010, 1554 dias de calendário”.
A resposta foi “Provado apenas que desde 20 de Fevereiro de 2006 até 24 de Maio de 2010 (data em que foi requerida a vistoria junto da DSSOPT) decorreram 1554 dias de calendário”.
No quesito 29º perguntava-se se “Durante este período ocorreram 222 Domingos, 77 feriados e 256 dias de chuva, num total de 555 dias que não são “de sol e de trabalho”.
No quesito 30º perguntava-se “Isto é, entre 20 de Fevereiro de 2006 e 24 de Maio de 2010 decorreram 999 dias “de sol e de trabalho”.
A resposta comum a ambos foi “Provado apenas que durante esse período ocorreram 22 Domingos, 77 feriados e 256 dias em que choveu”.
Ora bem. A recorrente acha que a data de 27 de Fevereiro de 2007 é “irrelevante para os presentes autos”. Bem, a ser assim, isto é, se considera que o período que decorre de 27/02/2007 a 24/05/2010 não importa à decisão, mal se compreende a razão pela qual ataca a matéria de facto correspondente aos quesitos 25º a 27º. Aliás, em bom rigor, até se dirá que esta matéria não está impugnada. E até se compreende que o não tenha feito, uma vez que a sentença apenas consagrou como “termo inicial” do período de “1000 dias de sol e de trabalho” a data de 26/02/2006.
Assim, neste pressuposto não há que estudar se a matéria dos quesitos 25º a 27º foi bem ou mal julgada.
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Quanto aos quesitos 28º a 30º, entende a recorrente não estar provado:
a) Que os trabalhadores da ré não trabalharam em todos os dias de chuva e em todos os feriados (obrigatórios e não obrigatórios) e em todas as tolerâncias de ponto;
b) Que a precipitação ocorreu em horas de expediente, só assim se explicando a interrupção dos trabalhos;
c) Qual a intensidade da chuva que impedia a continuidade dos trabalhos.
Tem razão a recorrente ao dizer que o teor destas alíneas não está provado. Acontece que também em lado nenhum das respostas aos quesitos é dito que tal tenha acontecido. Efectivamente, o tribunal não fez nenhuma dessas afirmações. Nós compreendemos muito bem o que a recorrente quer dizer (e já nos referiremos a isso mais adiante), mas o que é certo é que do ponto de vista material e objectivo não se pode concluir que o tribunal recorrido fez errado julgamento da matéria de facto sobre o assunto em apreço.
Quando muito, apenas importaria relevar a alegação da recorrente quanto a um aspecto, que é o de saber se, contrariamente ao que é dito na resposta ao quesito 28º, não decorreram 1554 dias entre 20/02/2006 e 24 /05/2010, mas sim 1555 dias de calendário. Mas o acerto está do lado da resposta. São, efectivamente, 1554 dias entre 20/02/2006 (incluindo-se o dia 20) e 24/05/2010 (não se contando o dia 24, por ser já aquele em que foi pedida a vistoria a que se refere o quesito).
Da mesma maneira, não acolhemos a ideia defendida pela recorrente de que nesse período apenas ocorreram 32 feriados obrigatórios. A recorrente faz uma interpretação restrita do quesito, que ele não consente, uma vez que a pergunta se limitava a indagar se naquele lapso de tempo ocorreram 77 feriados, sem qualquer discriminação entre feriados obrigatórios e não obrigatórios. Consequentemente, não podia o tribunal “a quo” fazer tal limitação, nem o pode fazer o tribunal de recurso.
Quer isto dizer, por conseguinte, que:
- Não se pode dar como provado aquilo que a recorrente defende quanto aos dias de calendário efectivamente decorridos entre 20/02/2006 e 24/05/2010;
- Não se pode restringir ou limitar a resposta ao quesito 29º, uma vez que a amplitude dele era no sentido de englobar todos os feriados, fossem obrigatórios ou facultativos.
Improcede, pois, o recurso também nesta parte.
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2.3.4 - Vejamos, agora, o que pretende a recorrente a respeito da matéria dos quesitos 32º-A e 32º-B.
No quesito 32º-A perguntava-se: “A autora sabia perfeitamente, quando celebrou o contrato-promessa, que o edifício não estaria concluído em 12 de Janeiro de 2008?”
A resposta foi a seguinte: “Provado apenas que a A. sabia, quando celebrou o contrato-promessa, que o edifício não estaria terminado em 12 de Janeiro de 2008”.
E no quesito 32º-B perguntava-se: “Em 28 de Novembro de 2008 tinha sido concluída a estrutura de betão e era óbvio que faltava ainda muito para que se pudesse dar a obra por finda?”
A resposta foi: “Provado apenas que em 28 de Novembro de 2007 tinha sido concluída a estrutura de betão do edifício”.
A recorrente entende que a Ré não fez prova da matéria dada por provada e que, pelo contrário, as testemunhas, cujos depoimentos transcreveu, demonstraram o contrário.
A análise, porém, de tais depoimentos não corrobora o sentido das alegações da recorrente. Com efeito, atendendo a que o contrato de promessa data de 28 de Novembro de 2007 e considerando as declarações das referidas testemunhas, depressa se chega à conclusão que a A. sabia que o edifício não podia estar concluído menos de três meses depois da sua celebração. Assim, o quesito 32º-A obteve uma resposta que não merece qualquer censura.
No que se refere ao quesito 32º-B, a forma como foi dada a resposta, a avaliar pelas declarações daqueles mesmas testemunhas, está em conformidade com a realidade. Isto é, se as testemunhas disseram que nessa data (Novembro de 2007) a estrutura de betão estava pronta e que faltaria basicamente os acabamentos no interior, então a resposta dada corresponde exactamente ao que se perguntava na 1ª parte. Repare-se: na segunda parte pretendia-se saber se “era óbvio que faltava ainda muito para que se pudesse dar a obra por finda”, mas o tribunal não julgou provada esta factualidade concreta, indo de certo modo ao encontro da recorrente.
Talvez a recorrente quisesse algo mais, quiçá o seu grau de satisfação fosse maior com uma resposta mais alargada de modo a ficar consignado que nessa data o edifício estaria praticamente pronto, faltando apenas os acabamentos. Só que no âmbito de uma prova holística, não é possível destacar alguns aspectos particulares da prova se os restantes elementos recolhidos não derem cobertura a uma tese mais restritiva.
Em suma, não acompanhamos a recorrente quanto à sua discordância da forma como a 1ª instância efectuou o julgamento da matéria de facto. Razão que também é válida para não concordarmos com os aditamentos dos factos que a recorrente considera provados a fls. 487 (ponto V-8).
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A tudo o que acaba de dizer-se, resta apenas acrescentar que o colectivo julgador, além de não nos parecer ter falhado no julgamento de facto, de acordo com os testemunhos transcritos pela recorrente, terá sido correcto na apreciação factual que fez, face aos elementos mais vastos que recolheu oralmente a partir dos outros depoimentos testemunhais e de que dispôs a partir dos documentos juntos aos autos e no quadro da sua mais nobre soberania no que concerne à liberdade com que faz a avaliação das provas, tal como decorre do art. 558º do CPC. Muito sinceramente, não vemos erro nessa apreciação.
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2.4 – Erro de direito
Neste passo do recurso, a questão central prende-se com a fórmula de contagem do prazo de “1000 dias de sol e trabalho” incluída na cláusula 3ª do contrato de promessa celebrado entre as partes.
O que a recorrente invoca tem pertinência, temos que reconhecê-lo. Realmente, para que serve semelhante fórmula, que permite descontar todos os dias que não sejam de sol, se o prédio em construção estiver pronto pela parte exterior e já se desenrolar no seu interior (portas, janelas, madeiramentos, tectos, soalhos, cozinhas, casas de banho, etc.)?
E será que na contagem apenas se incluem os dias de “sol brilhante”? E nos dias de céu encoberto, então não se trabalha? Estes dias “cinzentos” não entram na contagem?
Ou só não contam os dias de chuva? E se assim for, qual a utilidade da fórmula se não estiver devidamente discriminado que o desconto da contagem apenas tem lugar se a chuva ocorrer no período do horário normal diurno de trabalho?
E qual a eficácia precisa se, no que respeita aos “dias de trabalho”, úteis portanto, se provar que nalguns deles (por exemplo, nos feriados não obrigatórios) se trabalhou no edifício?
Realmente, também consideramos que se os trabalhos apenas decorrem no interior, pouca ou nenhuma diferença deveria fazer que o dia esteja soalheiro ou que chova muito ou pouco.
Como facilmente se adivinha, esta fórmula pode ser embaraçosa e, neste sentido, entendemos que ela é de evitar nos instrumentos contratuais, os quais sempre devem ser o escaparate da maior boa fé das partes contratantes e o reflexo declarado da mais fiel vontade dos negociantes.
Porém, se as partes contratantes não quiseram senão ater-se à significação objectiva da expressão, então não vemos como possa ir-se contra o sentido claro que ela transmite: dias de sol são dias de sol; e dias de trabalho são dias úteis, são dias em que se trabalha. E se substituirmos a expressão “dias de sol” por “dias de bom tempo”, tal como veio a ser traduzido a fls. 4 do apenso “Traduções”, nem por isso as preocupações explanadas mudam de figura, nem o resultado será diferente. Com efeito, um dia em que não faça sol é um dia de bom tempo porque só é mau tempo, nesta configuração, um dia de chuva. Assim, porque para o efeito concreto da contagem, só entraram nos “descontos”, isto é, só foram abatidos os dias de chuva, estamos em condições de equivaler dias de sol a dias de bom tempo.
Nesta óptica, dias de chuva são dias que se não contam e dias de não trabalho são dias não úteis, logo, feriados (obrigatórios e não obrigatórios), dias de descanso anual e semanal (domingos).
Não concorda a recorrente? Mas, por que motivo não veio ela aos autos tentar no seu articulado inicial da acção desmontar a expressão que agora vem controverter e tratá-la como “vexata quaestio”? Por que razão não veio atempadamente discutir, de forma a ser incluída na base instrutória, matéria que pudesse esclarecer qual o sentido e alcance da referida fórmula? Por que não tentou a via da divergência entre a sua vontade real e a declaração que assumiu? Se o não fez e se o que agora prevalece é o que está assente e demonstrado por prova testemunhal, por documento ou confissão, então de pouco já vale tentar decompor em alegações de recurso a expressão em causa. Na realidade, a questão já não é de direito, mas meramente de facto. Saber o que está incluído na expressão é o mesmo que tentar apurar quais os dias que são descontáveis durante o período. Ou seja, é matéria de facto. E se é matéria de facto, só pode o tribunal de recurso ater-se à que está assente e provada se o processo outros elementos não fornecer em sentido diferente, como é o caso.
De tal modo é assim que, à falta de diferentes elementos sobre o modo de composição dos dias incluídos na expressão, apenas podemos dar relevância à sua literalidade objectiva e imparcial, sem adição de qualquer elemento de interpretação subjectiva. Como se disse, e perdoe-se a tautologia, dias de sol, são dias de sol (dias de bom tempo são dias de bom tempo) e dias de chuva são dias de chuva; dias de trabalho, são dias de trabalho; dias de não trabalho são todos aqueles que não são úteis.
A ser assim, não podemos acompanhar a recorrente no seu exercício recursivo para tentar demonstrar a falta de razão da sentença recorrida.
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2.4.1 - Mas, ainda falta um aspecto: qual o dies a quo e qual o limite superior dessa contagem.
O que diz a famosa cláusula 3ª do contrato de promessa?
Para a recorrente, diz o seguinte:
“A parte A deve proceder à entrega da fracção no prazo de 1000 dias de sol e de trabalho contados a partir da data de obtenção de licença de obras para construção do projecto final emitida pela entidade competente. Em caso de mora na entrega da fracção a parte A deverá indemnizar B no montante igual a 3% de juro anual sobre o valor da fracção”.
Para a recorrida, diz isto:
“A parte A concluirá o projecto de construção e entregá-lo-á ao Governo, para vistoria, no prazo de 1000 dias de sol e de trabalho contados a partir da aprovação final e da autorização para execução das obras pela DSSOPT. Se a entrega se atrasar por causa imputável à Parte A, esta deve indemnizar a Parte B com juros à taxa anual de 3%, calculados sobre a importância do preço recebido da Parte B, com excepção dos incidentes resultantes de causa de força maior (incluindo os atrasos na tramitação das formalidades governamentais”.
A tradução contida a fls. 4 do apenso “traduções” é a seguinte: “A outorgante A deve concluir as obras de construção e entregar o edifício ao Governo para efeitos de verificação e recepção em 1000 dias de trabalho com bom tempo contados a partir da autorização da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes quanto à realização das obras do projecto final. Se a outorgante A for culpada da extemporaneidade da entrega do edifício ao outorgante B, salvo se a responsabilidade acidental resultante de força maior (incluindo o atraso nas formalidades governamentais), a outorgante A deve indemnizar o outorgante B no valor calculado com base em 3% da taxa de juros anuais sobre o preço do edifício anteriormente recebido”.
Sendo assim, parece não haver lugar a dúvidas que o prazo de 1000 dias se conta desde a aprovação final do projecto e autorização de construção, o que corresponde à emissão da licença, uma vez que, segundo o art. 3º, nº1, do RGCU (ver tb. Regulamento administrativo nº 24/2009) “…a execução de obras ou trabalhos referidos no n.º 1 do artigo 2.º não pode ser efectuada sem aprovação do projecto e emissão de licença correspondente pela DSSOPT” (ver também art. 42º e 44º).
Ora, é certo que a licença inicial de obras foi emitida em 21 de Janeiro de 2005 para a edificação de 17 pisos, sendo 4 deles em cave e 13 superiores. Todavia, nessa data ainda não estava contemplada a construção de mais dois pisos superiores (resposta ao quesito 18º), o que só foi aprovado em Fevereiro de 2006, tendo sido emitida a respectiva licença em 26/02/2006 (cfr. resposta ao quesito 10º e 22º). Ora, sendo assim, se a construção só pode ser iniciada e concluída após “aprovação do projecto e emissão de licença”, é para nós muito claro que os prazos para a sua conclusão só se podem referir à licença que permite o início da conclusão de todo o projecto, afinal o último que foi submetido á aprovação, isto é, a alteração que eleva para 15 o número de pisos superiores a construir. Aliás, em relação à recorrente (autora da acção) nunca a licença atribuída em 2005 podia alguma vez dizer algum respeito, se nessa ocasião ainda não estava projectada e aprovada a construção do 14º piso, precisamente onde se situava a fracção habitacional que ela prometeu comprar. Não é, portanto, possível retroagir o início da contagem a 21 de Janeiro de 2005, mas sim a 26/02/2006, tal como ajuizou a sentença recorrida.
E qual o termo desse prazo? Qual a referência a ter em conta nessa contagem? Será a entrega da fracção à recorrente?
Não. A resposta está inscrita na própria cláusula e não vale a pena procurá-la em mais lado nenhum: A entrega ao Governo para verificação (vistoria). E isso está até em conformidade com o preceito legal do RGCU, cujo art. 47º, nº1 do diploma estabelece que “ Concluída a obra e independentemente do fim a que se destina, deverá o interessado requerer a realização de vistoria, destinada a verificar a concordância entre os trabalhos realizados e o projecto aprovado”. Portanto, aquilo a que as partes se vincularam foi que a promitente vendedora deveria não só concluir as obras, mas também submetê-las a apreciação da entidade competente para vistoria, a fim de que, caso a análise fosse de concordância com o projecto aprovado, viesse a ser emitida no prazo devido a respectiva licença de utilização (art. 50º, RGCU). Vistoria que foi requerida no dia 24/05/2010, como flui da resposta aos quesitos 25º e 28º.
Concluindo, o edifício deveria ser entregue ao Governo para vistoria ou “verificação” no prazo de 1000 dias. Fica pelo caminho, desta maneira, a tese de que a entrega pudesse ter por destinatária a promitente compradora! Andou bem, pois, a sentença também sob este ponto de vista.
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2.4.2 - Visto isto, apenas falta concretizar a contagem dos tais “1000 dias de sol e trabalho” ou de “trabalho com bom tempo”.
Como já acima dissemos, a esses mil dias haverá que abater os que foram de chuva e os não úteis. Contudo, essa contagem está feita. Com efeito, entre 20 de Fevereiro de 2006 e 24 de Maio de 2010 decorreram 1554 dias de calendário, tal como provado na resposta ao quesito 28º (pode confirmar-se esta contagem no “Google Calendar Calculator”, in www.timeanddate.com › Calculators). Por outro lado, é seguro que durante esse período se verificaram 222 Domingos, 77 feriados e choveu durante 256 dias, conforme resposta aos quesitos 29º e 30º. Feita a necessária subtracção, conclui-se que o intervalo entre as referidas datas é de apenas 999 dias. Ou seja, somente por um dia o mencionado prazo de mil não foi ultrapassado.
Sendo assim, não se pode dizer que a recorrida (ré da acção) incumpriu o contrato celebrado ou que tenha incorrido em mora, pelo que a acção não podia proceder, tal como a sentença impugnada asseverou e decidiu. Ou seja, nem havia motivo para a resolução (art. 790º, nº2, CC), nem fundamento para a devolução do sinal em dobro fundada no incumprimento definitivo do contrato (art. 790º, nº1 e 435º e 436º, nº2, do CC).
Vale isto por dizer que o recurso não pode obter êxito.
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IV- Decidindo
Face ao exposto acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
TSI, 02 / 05 / 2013
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan