Processo n.º 41/2012 Data do acórdão: 2013-3-14
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– punição da contravenção continuada
– art.o 73.o do Código Penal
– diminuição ilegal da remuneração do trabalhador
– art.o 50.o, n.o 1, alínea d), do Decreto-Lei n.o 24/89/M
– art.o 85.o, n.o 1, da Lei n.o 7/2008
S U M Á R I O
1. Ocorre o erro notório na apreciação da prova como vício previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando depois de analisados todos os elementos probatórios referidos no texto da decisão recorrida, se mostra que o concreto resultado do julgamento de factos a que chegou o tribunal a quo seja evidentemente desrazoável aos olhos de qualquer homem médio conhecedor das regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, ou flagrantemente violadora quer de quaisquer normas relativas à prova tarifada quer de quaisquer legis artis vigentes em matéria de julgamento de factos.
2. Em obediência à regra da punição do art.o 73.o do Código Penal, a conduta contravencional continuada também deve ser punida com “a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação”.
3. Sendo a mesma conduta contravencional de diminuição ilegal de remuneração de base do trabalhador vista pelo legislador da actual Lei das Relações de Trabalho (n.o 7/2008, de 18 de Agosto) como de grau mais grave do que no âmbito da vigência do anterior Decreto-Lei n.o 24/89/M, de 3 de Abril (para constatar isto, basta comparar a moldura da sanção prevista no art.o 50.o, n.o 1, alínea d), desse Decreto-Lei com a da sanção cominada no art.o 85.o, n.o 1 (proémio), daquela Lei), andou bem o tribunal a quo ao ter imposto a pena contravencional à arguida ora recorrente, dentro da correspondente muldura de multa prevista nesta última norma.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 41/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 449 a 451v dos autos de Processo de Contravenção Laboral n.° CR1-11-0049-LCT do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), a arguida Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A., ficou materialmente condenada, pela autoria material, na forma continuada, de uma contravenção (por diminuição ilegal da remuneração de base do trabalhador), p. e p. conjugadamente pelos art.os 10.o, alínea 5), 59.o, n.o 5, e 85.o, n.o 1, alínea 2), da Lei n.o 7/2008, de 18 de Agosto (nova “Lei das Relações de Trabalho”, doravante abreviada como LRT) e pelo art.o 73.o do Código Penal vigente (CP), em MOP30.000,00 (trinta mil patacas) de multa, com obrigação de pagar ao trabalhador ofendido A a quantia indemnizatória civil, arbitrada oficiosamente, de MOP272.306,00 (duzentas e setenta e duas mil, trezentas e seis patacas), com juros legais.
Inconformada, veio a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir principalmente a sua absolvição contravencional e civil, ou, pelo menos, o reenvio do processo para novo julgamento no TJB, tendo alegado, na sua essência, o seguinte, como objecto do recurso (cfr. sobretudo as conclusões da motivação de fls. 459 a 469 dos presentes autos correspondentes):
– o Tribunal a quo, ao não ter considerado provado o facto 3 então alegado na contestação segundo o qual o trabalhador dos autos, segundo o contrato de trabalho de 2002, recebia tão-só o 13.o mês de salário, nem provada a circunstância, alegada no art.o 18.o da contestação, de já caducidade, em 1996, do contrato de trabalho inicialmente celebrado com esse trabalhador como não-residente, devido à obtenção, por este, nesse mesmo ano, do bilhete de identidade de residente de Macau, incorreu efectivamente no vício de erro notório na apreciação da prova, o que levou a que foram também violados, pela decisão condenatória ora recorrida, os art.os 10.o, alínea 5), 59.o, n.o 5, 93.o, n.o 3, da LRT;
– e mesmo que assim não se entendesse, sempre se deveria aplicar, por força do art.o 2.o, n.o 4, do CP, a norma sancionatória mais favorável e constante do art.o 50.o, n.o 1, alínea d), do Decreto-Lei n.o 24/89/M, de 3 de Abril, actualmente já revogado pela LRT.
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 473 a 477v), no sentido de improcedência da argumentação da recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 511 a 512v), pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência feita nesta Segunda Instância, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Segundo a fundamentação fáctica da sentença ora recorrida, foi considerado provado que:
– o trabalhador dos autos, chamado A, começou a ser contratado pela arguida no Primeiro de Julho de 1990, para o posto de desenhador, sendo 31 de Dezembro de 2009 o último dia do seu trabalho, e o salário mensal de MOP27.191,00 (vinte e sete mil, cento e noventa e uma patacas) na altura da sua desvinculação;
– no contrato então celebrado em 1990 entre a arguida e esse trabalhador, foi estipulado que este, por cada ano, tinha direito a receber 14 meses de salário; posteriormente, em 2002, a arguida celebrou novo contrato com o trabalhador, consignando que este só podia receber, por cada ano, 13 meses de salário;
– durante o período de vigência da relação de trabalho em causa, a arguida nunca chegou a pedir autorização à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, para a questão de diminuição remuneratória;
– o mesmo trabalhador, desde o seu ingresso como tal até 1999, conseguiu, por cada ano, e nos meses de Dezembro e de Janeiro subsequente, receber, respectivamente, o 13.o mês e o 14.o mês de salário;
– em Julho de 1990, o trabalhador foi autorizado a ser contratado pela arguida como trabalhador não-residente, e passou a obter, em 1996, a qualidade de residente de Macau;
– no período de 2000 a 2009, a arguida só lhe atribuiu, por cada ano, 13 meses de salário;
– a quantia que a arguida ainda não lhe pagou como remuneração de base totaliza MOP272.306,00 (duzentas e setenta e duas mil, trezentas e seis patacas).
Por outro lado, o Tribunal a quo afirmou na sua sentença que não se provou todo o alegado na acusação e na contestação que estivesse desconforme com a factualidade acima referida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
A questão principal posta na motivação do recurso sub judice prende-se com a alegada existência de erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido.
Sempre tem este TSI afirmado, em inúmeros recursos anteriormente julgados, que ocorre o erro notório na apreciação da prova como vício previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal vigente (CPP), quando depois de analisados todos os elementos probatórios referidos no texto da decisão recorrida, se mostra que o concreto resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal a quo seja evidentemente desrazoável aos olhos de qualquer homem médio conhecedor das regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, ou flagrantemente violadora quer de quaisquer normas relativas à prova tarifada quer de quaisquer legis artis vigentes em matéria de julgamento de factos.
No caso dos autos, não se vislumbram, aos olhos de qualquer homem médio conhecedor das regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, qualquer desrazoabilidade do resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal recorrido, nem violação de alguma norma legal sobre o valor da prova, nem tão-pouco qualquer violação de legis artis.
Não pode haver, pois, in casu, o vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, não podendo, assim, vir a arguida sindicar, gratuitamente, a livre convicção a que chegou o Tribunal a quo sob aval do art.o 114.o do CPP, sendo de notar que: o facto 3 então alegado na contestação (segundo o qual, de acordo com o contrato de 2002, o trabalhador recebia 13 meses de salário por ano) não deixou de ter sido considerado como já materialmente provado na sentença recorrida (só que o Tribunal a quo, a nível de direito decidindo, entendeu, e bem (sobretudo à luz do art.o 9.o, n.o 1, alínea d), do Decreto-Lei n.o 24/89/M, então ainda vigente inclusivamente no pleno ano de 2002), que esse clausulado, por implicar redução da remuneração de base do trabalhador, deveria carecer primeiro da autorização prévia da entidade administrativa pública fiscalizadora, e como a arguida não pediu autorização nesse sentido, o mesmo clausulado era ilegal), e a questão de caducidade do contrato inicial faz parte da matéria de direito, e não propriamente da matéria de facto.
E agora quanto à preconizada já caducidade, em 1996, do contrato de trabalho inicialmente celebrado em 1990: A razão também não está no lado da arguida, dado que foi a própria conduta dela que afastou qualquer hipótese da falada caducidade do contrato inicial. De facto, foi já provado que o trabalhador, desde o seu ingresso como tal até 1999, conseguiu, por cada ano, receber o 13.o mês e o 14.o mês de salário. Se assim ocorreu, foi porque as condições remuneratórias de trabalho acordadas pela primeira vez em 1990 foram mantidas tal e qual até 1999, mesmo após a obtenção, em 1996, da qualidade de residente de Macau por parte do ofendido. Assim sendo, como seria juridicamente plausível a concebida tese de já caducidade do clausulado inicial? Tudo não passa de uma falsa questão, ora invocada pela arguida à moda de venire contra factum proprium.
Por fim, a arguida pretende, subsidiariamente, a aplicação, a seu favor, da norma sancionatória do art.o 50.o, n.o 1, alínea d), do anterior Decreto-Lei n.o 24/89/M, mas também sem razão.
É que a sua conduta, continuada (nos termos já decididos pelo Tribunal a quo), de falta de pagamento do 14.o mês de salário ao ofendido começou em 2000 e prolongou-se até 2009 (cfr. a factualidade já descrita como provada na sentença recorrida). Por isso, em obediência à regra da punição do art.o 73.o do CP, essa conduta ilícita contravencional continuada sua deve ser punida com “a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação”. E sendo a mesma conduta contravencional vista pelo Legislador da LRT como de grau mais grave do que no âmbito da vigência do anterior Decreto-Lei n.o 24/89/M (para constatar isto, basta comparar a moldura da sanção prevista no art.o 50.o, n.o 1, alínea d), desse Decreto-Lei com a da sanção cominada no art.o 85.o, n.o 1 (proémio), da LRT), andou bem o Tribunal a quo ao ter imposto a pena contravencional de trinta mil patacas de multa, dentro da correspondente muldura de vinte a cinquenta mil patacas de multa prevista nesta última norma, multa concreta essa que, aliás, já é benévola para a arguida, ante todas as circunstâncias já apuradas no texto da sentença impugnada.
Do exposto, resulta que ao contrário do preconizado pela recorrente, não foram comprometidos, pela decisão condenatória ora recorrida, os art.os 10.o, alínea 5), 59.o, n.o 5, 93.o, n.o 3, da LRT.
É, assim, de manter toda a decisão condenatória contravencional e civil da Primeira Instância, sem mais indagação por ociosa.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas do recurso pela arguida, com quinze UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão ao trabalhador ofendido.
Macau, 14 de Março de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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