Processo n.º 102/2012 Data do acórdão: 2013-3-14
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– alteração da qualificação jurídica para minus
– prévia advertência da possibilidade dessa alteração
– art.o 339.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
– irregularidade processual
– art.o 105.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal
– prazo de arguição de irregularidade processual
– art.º 110.º, n.º 1, do Código de Processo Penal
– conversão dos dias de falta por doença não usados em férias
– acordo sobre condição de trabalho mais favorável
– art.o 4.o, n.o 2, da Lei das Relações de Trabalho
S U M Á R I O
1. Como o tribunal a quo convolou o tipo legal das duas contravenções laborais então imputadas à arguida recorrente para um tipo legal contravencional punível em termos mais leves do que aquele, há assim mera alteração da qualificação jurídica sem alteração dos factos.
2. Assim, por aplicação analógica da norma processual do art.º 339.º, n.º 1, do vigente Código de Processo Penal (CPP), deveria ter sido feita primeiro a advertência da arguida da possibilidade dessa convolação jurídica, sendo certo que a falta dessa advertência só pode constituir irregularidade processual (cfr. o art.o 105.º, n.os 1 e 2, do CPP), a ser arguida no prazo de cinco dias contado nos termos ditados no art.º 110.º, n.º 1, do CPP (conjugado com o art.º 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 55/99/M, aprovador do vigente Código de Processo Civil).
3. Tendo a arguida só levantado a questão de ilegalidade da convolação do tipo legal das contravenções apenas no décimo dia contado do conhecimento dessa convolação, a referida irregularidade processual já se encontra sanada.
4. Estando provado na decisão recorrida que foi acordado entre as partes patronal e trabalhadora que os dias de falta por doença não usados pelo trabalhador são usados no ano seguinte como dias de férias anuais, o assim acordado deve ser cumprido tal e qual, embora esse acordado represente uma condição de trabalho ajustada entre ambas as partes ainda antes da entrada em vigor da actual Lei das Relações de Trabalho, em moldes mais favoráveis do que o elenco mínimo de regalias do trabalhador garantido obrigatoriamente nesta Lei (cfr. o seu art.o 4.o, n.o 2).
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 102/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente/arguida: Venetian Macau, S.A.
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 359 a 362v dos autos de Processo de Contravenção Laboral n.° CR3-11-0048-LCT do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a arguida Venetian Macau, S.A., inicialmente acusada pela prática de duas contravenções (por diminuição ilegal da remuneração de base do trabalhador), p. e p. pelos art.os 10.o, alínea 5), e 85.o, n.o 1, alínea 2), da Lei n.o 7/2008, de 18 de Agosto (i.e., da vigente Lei das Relações de Trabalho, doravante abreviada por LRT), acabou por ser condenada como autora de duas contravenções (por negação do direito do trabalhador ao descanso anual), p. e p. pelos art.os 49.o e 85.o, n.o 2, alínea 2), da LRT, em MOP12.500 (doze mil e quinhentas patacas) de multa por cada, ou seja, no total de MOP25.000,00 (vinte e cinco mil patacas) de multa, com obrigação de pagar ao trabalhador A (XXX) e à trabalhadora B (XXX) MOP1.516,80 (mil, quinhentas e dezasseis patacas e oitenta avos) e MOP2.478,60 (duas mil, quatrocentas e setenta e oito patacas e sessenta avos) de indemnizações pecuniárias respectivas, arbitradas oficiosamente.
Inconformada, veio a arguida Venetian Macau, S.A., recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir (na sua motivação apresentada a fls. 368 a 385 dos presentes autos correspondentes) que fosse absolvida das contravenções e das indemnizações por que vinha condenada, para isso assacando à decisão recorrida:
-(1) a ilegalidade da alteração (devido ao desconhecimento atempado pela própria arguida dessa alteração, com ofensa ao seu direito à defesa) da qualificação jurídica do tipo legal das contravenções então acusadas;
-(2) a falta de inquérito e de descrição de factos no libelo acusatório em relação às contravenções finalmente tidas por verificadas na sentença recorrida e previstas no art.o 85.o, n.o 2, alínea 2), da LRT, com consequente nulidade cominada não só no art.o 106.o do Código de Processo Penal (CPP) vigente, por remissão do art.o 89.o do actual Código de Processo do Trabalho, como também no art.o 360.o, alínea b), do CPP;
-e (3) subsidiariamente falando, e quanto ao mérito da decisão recorrida, como a possibilidade de conversão de seis dias remunerados de faltas anuais por doença em dias remunerados de férias a gozar no ano civil seguinte ficava prevista na secção de benefícios no “Sands Team Member Handbook”, manual esse que resultou da determinação unilateral da própria arguida, e, por isso, em suporte distinto do contrato de trabalho, a mesma possibilidade de conversão constitui assim um bónus ou prémio a atribuir aos trabalhadores pela sua assiduidade, daí que nada impede que a arguida possa rever este tipo de benefícios, sendo de notar que a partir do dia 1 de Janeiro de 2009, os seis dias remunerados de faltas anuais por doença foram convertidos em dias remunerados a ser gozados pelo trabalhador em caso de hospitalização, com permissão da acumulação desses dias até um máximo de 60, daí que é erróneo concluir o Tribunal a quo na sentença que o benefício foi pura e simplesmente retirado aos trabalhadores, já que isso não corresponde à verdade. Assim sendo, como o período de descanso anual dos trabalhadores ficou expressamente definido nos respectivos contratos de trabalho, e foi sempre escrupulosamente respeitado pela arguida, é de excluir a aplicação, in casu, do disposto nos art.os 85.o, n.o 2, alínea 2), e 49.o da LRT.
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 391 a 392v), no sentido de improcedência da argumentação da recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 403 a 404v), pugnando materialmente pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência feita nesta Segunda Instância, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes elementos pertinentes à decisão do recurso:
1) À arguida ora recorrente foi imputada inicialmente como autora da prática de duas contravenções (por diminuição ilegal da remuneração de base do trabalhador), p. e p. pelos art.os 10.o, alínea 5), e 85.o, n.o 1, alínea 2), da LRT (cfr. mormente o auto de notícia de fls. 3 a 4, referido no despacho do Ministério Público de fl. 333), e acabou por ser condenada em primeira instância como autora de duas contravenções (por negação do direito do trabalhador ao descanso anual), p. e p. pelos art.os 49.o e 85.o, n.o 2, alínea 2), da LRT, em MOP12.500 (doze mil e quinhentas patacas) de multa por cada, ou seja, no total de MOP25.000,00 (vinte e cinco mil patacas) de multa, com obrigação de pagar ao trabalhador A (XXX) e à trabalhadora B (XXX) MOP1.516,80 (mil, quinhentas e dezasseis patacas e oitenta avos) e MOP2.478,60 (duas mil, quatrocentas e setenta e oito patacas e sessenta avos) de indemnizações pecuniárias respectivas, arbitradas oficiosamente (cfr. a sentença recorrida de fls. 359 a 362v), sem que o Tribunal a quo tenha feito a prévia advertência dessa convolação do tipo legal das contravenções laborais em causa, para a arguida exercer o direito de contraditório (cfr. o processado anterior à leitura da sentença, a fls. 334 a 358, a contrario sensu).
2) O Tribunal a quo deu materialmente por provado, na sua essência, o seguinte no texto da sua sentença condenatória (concretamente a fls. 359 a 359v):
– a trabalhadora B começou a ser contratada pela arguida em 24 de Outubro de 2005, com salário mensal actual de MOP15.192,01, para além de uma quantia mensal em montante incerto chamada “premium duty pay”;
– o trabalhador A começou a ser contratado pela arguida no dia 1 de Agosto de 2007, com salário mensal actual de MOP14.801,01;
– segundo as condições aquando no ingresso de trabalho (conforme o art.o 6.o do Capítulo III do Manual dos Trabalhadores do Casino “Sands”, constante de fl. 87 dos autos), os dias remunerados de falta por doença do trabalhador são de seis dias por ano, sendo esses dias de falta por doença não usados no próprio ano convertíveis em dias de férias anuais ao fim do ano;
– a trabalhadora B não usou em 2009 e em 2010 três dias e um dia remunerados de falta por doença, respectivamente, enquanto o trabalhador A não usou, nesses dois anos, qualquer dia remuerado de falta por doença; não obstante, a arguida, em desconformidade com o contrato, não deixou que esses dois trabalhadores gozassem os dias de falta por doença não usados como sendo dias de férias anuais, nem procedeu ao pagamento de qualquer quantia indemnizatória disso;
– a arguida, ao praticar os factos acima referidos, agiu livre, voluntária e conscientemente;
– de acordo com os usos e o acordado entre as partes patronal e trabalhadora, os dias de falta por doença não usados no próprio ano são usados no ano seguinte como dias de férias anuais.
3) Factualidade provada essa que está materialmente abrangida pela matéria de facto descrita no auto de notícia então levantado pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (e constante de fls. 3 a 4 dos autos), consubstanciador da matéria acusatória contravencional.
4) A arguida suscitou, pela primeira vez, a questão de ilegalidade da alteração da qualificação jurídica do tipo legal das contravenções então acusadas, apenas em sede da motivação do recurso, apresentada no décimo dia contado da leitura da sentença recorrida (cfr. a acta dessa leitura lavrada a fl. 363, e o carimbo de entrada de documento aposto na primeira página da motivação de recurso, a fl. 368).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo concretamente:
1) Da suscitada ilegalidade da alteração da qualificação jurídica das contravenções então acusadas:
Ante os elementos pertinentes coligidos dos autos e já elencados na parte II do presente acórdão, vê-se que o Tribunal a quo convolou o tipo legal das duas contravenções laborais então imputadas à arguida para um tipo legal contravencional punível em termos mais leves do que aquele (para constatar isto, basta comparar as duas molduras da multa respectivamente previstas no n.º 1 e no n.º 2 do mesmo art.º 85.º da LRT).
Trata-se, pois, de mera alteração da qualificação jurídica do tipo legal das contravenções em causa, sem alteração dos factos (sobre a questão de alteração dos factos, veja-se a análise infra a respeito da 2.ª questão posta no recurso).
Assim sendo, por aplicação analógica da norma processual do art.º 339.º, n.º 1, do CPP, deveria ter sido feita primeiro a advertência da arguida da possibilidade dessa convolação jurídica, o que, porém, não foi feito, falta de advertência essa que entretanto só pode constituir uma irregularidade processual (cfr. o disposto no art.o 105.º, n.os 1 e 2, do CPP), a ser arguida forçosamente no prazo de cinco dias contado nos termos ditados no art.º 110.º, n.º 1, do CPP (conjugado com o art.º 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 55/99/M, aprovador do vigente Código de Processo Civil), ou seja, in casu, contado do conhecimento da arguida da sentença no dia da leitura desta. Como a arguida só levantou a questão de ilegalidade da convolação do tipo legal das contravenções apenas no décimo dia contado do conhecimento dessa convolação, a acima irregularidade processual já se encontra sanada a partir do 6.º dia da leitura da sentença.
Improcede, assim, o recurso nesta primeira parte (sendo de notar que no douto Acórdão de 18 de Julho de 2001, no Processo n.º 8/2001, do Venerando Tribunal de Última Instância, concretamente no 3.º parágrafo da sua página 28, foi até afirmado o entendimento de que não é necessário o cumprimento do contraditório no caso de alteração da qualificação jurídica para uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação).
2) Da arguida falta de inquérito e de descrição de factos no libelo acusatório em relação às duas contravenções tidas por verificadas na sentença recorrida e previstas no art.o 85.o, n.o 2, alínea 2), da LRT, com consequente nulidade cominada não só no art.o 106.o do CPP, como também no art.o 360.o, alínea b), do CPP:
Nesta parte do recurso, não deixa de naufragar o recurso, porquanto perante os elementos dos autos referidos na parte II do presente acórdão, é nítido que a arguida não ficou condenada por factos diversos dos então materialmente também descritos no auto de notícia levantado pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, consubstanciador da matéria acusatória, não podendo existir, assim, a nulidade cominada no art.º 360.º, alínea b), do CPP, sendo certo que não se vislumbra que haja ocorrido qualquer falta de inquérito sobre a factualidade então imputada, falta de inquérito essa que na realidade foi somente suscitada algo em tom abstracto na motivação do recurso (no ponto 14 desta peça) para se reconduzir à ideia da alegada falta de descrição de factos no dito auto de notícia a respeito das duas contravenções por que vinha condenada a arguida.
3) E agora do subsidiariamente impugnado mérito da decisão recorrida:
Da matéria de facto dada por provada pelo Tribunal a quo, decorre que foi acordado entre as partes patronal e trabalhadora que os dias de falta por doença não usados no próprio ano são usados no ano seguinte como dias de férias anuais.
Assim, todo o acordado para efeitos da relação de trabalho estabelecida entre as duas partes deve ser cumprido tal e qual. Contudo, foi a própria arguida que não cumpriu esse acordado, ao não ter deixado que os dois trabalhadores ofendidos dos autos gozassem os dias de falta por doença não usados como sendo dias de férias anuais, pelo que incorreu a arguida efectivamente em autoria material do tipo legal das contravenções por que vinha condenada em primeira instância, embora tal acordado represente indubitavelmente uma condição de trabalho ajustada entre as partes empregadora e trabalhadora ainda antes da entrada em vigor da LRT, em moldes mais favoráveis do que o elenco mínimo de regalias do trabalhador garantido obrigatoriamente na mesma LRT (cfr. o art.º 4.º, n.º 2, da LRT).
Frisa-se, por fim, que ante a mesma factualidade já provada (que fala do acordado…), fica irremediavelmente prejudicada no seu sentido útil a tese sustentada pela arguida, segundo a qual a questão de conversão dos dias remunerados de falta por doença em dias de férias anuais prevista no “Sands Team Member Handbook” é revogável unilateralmente pela própria arguida por ser suporte distinto do contrato de trabalho.
Improcede, assim, o recurso in totum, com manutenção da decisão judicial recorrida, sem mais indagação de todo o remanescente alegado na motivação do recurso, por estar materialmente prejudicada pela análise acima feita.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o pedido formulado pela arguida na motivação do recurso, mantendo, pois, a sentença recorrida.
Custas do recurso pela arguida, com quinze UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão aos dois trabalhadores ofendidos.
Macau, 14 de Março de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 102/2012 Pág. 12/12