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Processo n.º 468/2012 Data do acórdão: 2013-3-14
(Autos de recurso penal)
  Assuntos:
  – erro notório na apreciação da prova
  – acidente de viação
– percentagem de culpa pela produção do acidente
– cruzamento estradal
– condutor com prioridade
– não redução da velocidade na aproximação do cruzamento
– ultrapassagem do limite máximo da velocidade
– art.o 32.o, n.o 1, alínea 5), da Lei do Trânsito Rodoviário
– art.o 34.o, n.o 2, da Lei do Trânsito Rodoviário
– art.o 34.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário
S U M Á R I O

1. Ocorre o erro notório na apreciação da prova como vício previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando depois de analisados todos os elementos probatórios referidos no texto da decisão recorrida, se mostra que o concreto resultado do julgamento de factos a que chegou o tribunal a quo seja evidentemente desrazoável aos olhos de qualquer homem médio conhecedor das regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, ou flagrantemente violadora quer de quaisquer normas relativas à prova tarifada quer de quaisquer legis artis vigentes em matéria de julgamento de factos.
2. Embora o tribunal a quo tenha sustentado a sua decisão, tomada a contento da tese convergentemente posta pela demandada companhia seguradora na contestação do pedido cível de indemnização enxertado no presente processo penal, de atribuir, ao lesado e demandante ora recorrente, 30% de culpa pela produção do acidente dos autos, com o facto provado de não ter este reduzido em especial a velocidade do seu motociclo ao aproximar-se do cruzamento estradal em causa, e com as normas dos art.os 32.o, n.o 1, alínea 5), e 34.o, n.o 2, da Lei do Trânsito Rodoviário, tidas por violadas pelo próprio demandante, o certo é que ante a factualidade fixada no acórdão recorrido, não se sabe qual a velocidade inicial com que estava a andar esse motociclo no momento anterior à sua aproximação no cruzamento (ou seja, não se sabe se o motociclo estava a andar com ultrapassagem do limite máximo da velocidade permitida na via estradal em que seguia nessa altura) (velocidade inicial essa que releva muito para se poder ajuizar da observância, ou não, da regra estradal do n.o 2 do art.o 34.o da LTR, por parte do demandante), pelo que é injusta a decisão de se atribuir a este, comprovadamente como condutor com prioridade de passagem no dito cruzamento, tal percentagem de culpa na produção do acidente, sobretudo quando o art.o 34.o, n.o 1, da LTR manda que “O condutor sobre o qual recaia o dever de ceder a passagem deve abrandar a marcha, se necessário, parar, ou, em caso de cruzamento de veículos, recuar, por forma a permitir a passagem de outro veículo, sem alteração da velocidade ou direcção deste”.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 468/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente/demandante civil: A
Recorrida/demandada civil: Companhia de Seguros de Macau, S.A.




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 182 a 190 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-10-0023-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), emergente de acidente de viação e com pedido cível de indemnização enxertado pelo lesado A, foi decidido:
– condenar o arguido B, como autor material de um crime consumado de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.o 142.o, n.o 1, do Código Penal vigente, e pelos art.os 93.o, n.o 1, e 94.o, alínea 1), da Lei n.o 3/2007, de 7 de Maio (i.e., a actual Lei do Trânsito Rodoviário, doravante abreviada por LTR), na pena de um ano e um mês de prisão, suspensa na sua execução por um ano e seis meses, e na inibição de condução por quatro meses;
– e condenar a civilmente demandada Companhia de Seguros de Macau, S.A., a pagar àquele lesado demandante a quantia indemnizatória de MOP46.490,50 (quarenta e seis mil, quatrocentas e noventa patacas e cinquenta avos), com juros legais desde a data de leitura do próprio acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformado, veio recorrer o demandante para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para imputar ao referido acórdão materialmente as seguintes ilegalidades como objecto do recurso:
– erro notório na apreciação da prova no tocante às então reclamadas MOP1.500,00 de despesas de reparação do capacete usado pelo próprio recorrente na altura do acidente de viação dos autos;
– violação do disposto nos art.os 556.o e seguintes do Código Civil vigente (CC), com vício referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea b), do actual Código de Processo Penal (CPP), aquando da tomada de decisão de não comprovação das então reclamadas percas salariais futuras e previsíveis no valor total de MOP245.440,00;
– flagrante injustiça na fixação, apenas em MOP60.000,00, da quantia de compensação de danos morais;
– evidente desadequação da taxa de repartição da culpa.
Com isso, pediu o recorrente que se passasse a julgar o arguido como o único culpado pela produção do acidente, ou, pelo menos, a alterar a taxa da culpa concorrente deste para 90% ou mais do que 90% (em vez da de 70% decidida no acórdão recorrido), a considerar provadas as despesas de reparação do capacete no valor então reclamado de MOP1.500,00, e também as percas salariais futuras e previsíveis no valor total então peticionado de MOP245.440,00, bem como a alterar a quantia de compensação de danos morais, de MOP60.000,00 para não menos de MOP150.000,00 (cfr. a motivação de recurso, a fls. 198 a 203 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu a recorrida companhia seguradora (a fls. 209 a 216) no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subidos os autos, afirmou a Digna Procuradora-Adjunta (a fl. 231), em sede de vista, que não tinha legitimidade para emitir parecer, por estar em causa tão-só a matéria cível.
Feito subsequentemente o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência feita neste TSI, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes elementos pertinentes à decisão do objecto do recurso:
1) Para prova das despesas de reparação do seu capacete usado no acidente de viação dos autos, o recorrente apresentou, aquando da dedução do seu pedido cível de indemnização, um escrito de autoria de um estabelecimento particular de reparação de veículos, do qual constava que foram de MOP1.000,00 as despesas de nova pintura do capacete (incluindo a pintura em si e o trabalho manual na feitura da pintura) (cfr. o documento n.o 21 então anexado a esse petitório cível, ora a fl. 83 dos autos).
2) O Tribunal a quo acabou por considerar provado inclusivamemente o seguinte no texto do seu acórdão:
– em 30 de Julho de 2008, de manhã, cerca das 11:10 horas, o arguido conduziu um táxi a chegar ao cruzamento estradal dos autos, sendo nessa altura bom o clima, seco o pavimento, suficiente a iluminação, e sem engarrafamento o tráfego;
– apesar de saber claramente o próprio arguido que o seu veículo devia ceder passagem nesse cruzamento, ele não deixou que o motociclo pesado na altura conduzido pelo ora demandante e recorrente passasse primeiro no cruzamento, o que fez com que o táxi, depois de avançar para o cruzamento, tenha batido nesse motociclo, fazendo cair quer o motociclo quer o recorrente no chão, em consequência do que o recorrente ficou com escoriações e contusões em várias partes do tecido mole do corpo, e com a articulação do ombro direito deslocada do lugar, o que lhe demandou 30 dias para convalescença;
– até antes da ocorrência desse acidente, o recorrente era agente da Unidade Táctica de Intervenção Policial (UTIP) da Polícia de Segurança Pública (PSP), com índice salarial de 270 pontos, com salário mensal de MOP20.500,00;
– a partir de Setembro de 2008, o recorrente participou no Curso de formação para ser elementos do Grupo de Operações Especiais (GOE) da PSP;
– no caso de obtenção da qualificação profissional para ser elemento do GOE, o seu índice salarial, se viesse a trabalhar no GOE, iria subir em 80 pontos;
– durante o período de tratamento ambulatório das lesões, o recorrente sofreu dores, e teve sentimento de sem-auxílio e de medo;
– ao aproximar-se do cruzamento referido, o recorrente não reduziu em especial a velocidade do motociclo;
– o arguido declarou que trabalhava como taxista.
3) Por outro lado, já deu o Tribunal a quo como não provado o seguinte:
– o capacete danificado do recorrente custou MOP500,00;
– as despesas de aplicação de nova pintura no capacete foram de MOP1.000,00, e essas despesas resultaram directa e necessariamente do acidente dos autos;
– o acidente fez com que o lesado não tenha podido continuar a frequentar nem concluir o curso de formação, o que obstou a que ele viesse a ser um elemento do GOE, com perda do incremento salarial correspondente;
– a nomeação para ser elemento do GOE dura, por cada vez, por quatro anos;
– o acidente de viação reduziu a capacidade de trabalho do recorrente, afectou o seu aproveimento no trabalho e a vida pessoal;
– o recorrente, devido ao acidente, teve um período de tempo em que não conseguiu praticar o desporto na modalidade de que gostava;
– o recorrente precisou dos cuidados a prestar por seus familiares;
– o recorrente teve preocupações mentais ao longo dos dias, não conseguiu dormir e teve dores da cabeça por causa da insónia.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, decidindo agora concretamente:
– Do primeiramente esgrimido erro notório na apreciação da prova no tocante às então reclamadas MOP1.500,00 de despesas de reparação do capacete usado pelo próprio recorrente na altura do acidente de viação dos autos:
Sempre tem este TSI afirmado, em inúmeros recursos anteriormente julgados, que ocorre o erro notório na apreciação da prova como vício previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando depois de analisados todos os elementos probatórios referidos no texto da decisão recorrida, se mostra que o concreto resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal a quo seja evidentemente desrazoável aos olhos de qualquer homem médio conhecedor das regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, ou flagrantemente violadora quer de quaisquer normas relativas à prova tarifada quer de quaisquer legis artis vigentes em matéria de julgamento de factos.
No caso dos autos, não se vislumbra alguma desrazoabilidade patente na livre convicção do Tribunal recorrido no respeitante ao julgamento do facto então alegado pelo recorrente no pedido cível de indemnização, acerca do montante das despesas de reparação do seu capacete. Aliás, não sendo tal escrito de autoria de um estabelecimento particular de reparação de veículos pré-considerado pelo Legislador como dotado de força probatória legal, não é nada de estranhar que o Tribunal recorrido não se convenceu do teor ali mencionado como sendo as despesas de reparação do capacete. Não pode, pois, o recorrente vir sindicar, gratuitamente, a livre apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo à luz do art.o 114.o do CPP.
– Da alegada violação, pela decisão recorrida, do disposto nos art.os 556.o e seguintes do CC, com vício referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea b), do CPP, aquando da tomada de decisão de não comprovação das então reclamadas percas salariais futuras e previsíveis no valor total de MOP245.440,00:
A este propósto, também não tem razão o recorrente, porquanto, desde já, não se ressalta como evidente qualquer contradição irredutível na fundamentação do acórdão recorrido, e, por outro lado, ante o conjunto dos factos provados e não provados como tal descritos nesse texto decisório (e especialmente os já acima referidos na parte II do presente acórdão de recurso naquilo que interessa pertinentemente à decisão do recurso), é de naufragar, sem mais, o pedido de indemnização das alegadas percas salariais futuras e previsíveis, por estas não terem ficado provadas.
– Da imputada flagrante injustiça na fixação, apenas em MOP60.000,00, da quantia de compensação de danos morais:
Atenta também a factualidade já dada como provada e não provada no acórdão recorrido, em face da qual ficaram não provados muitos dos factos então alegados pelo recorrente no pedido cível para sustentar a sua pretensão de fixação da quantia indemnizatória dos danos morais em montante não inferior a MOP200.000,00 (cfr. o teor do pedido formulado a fl. 69 dos autos), tal montante, já achado pelo Tribunal a quo, já não pode admitir mais margem para aumento, mesmo que o recorrente só tenha pedido agora um montante não inferior a MOP150.000,00 na motivação do recurso.
– E, por fim, da questão da assacada desadequação da taxa de repartição da culpa:
Nesta parte do seu recurso, já procede na pretensão principal do recorrente: o arguido deve ter 100% de culpa pela produção do acidente de viação dos autos.
Na verdade, embora o Tribunal a quo tenha sustentado a sua decisão, tomada a contento da tese convergentemente posta pela companhia seguradora no ponto 41 da contestação cível (de fls. 103 a 111), de atribuir, ao recorrente, 30% de culpa pela produção do acidente, com o facto provado de não ter o recorrente reduzido em especial a velocidade do motociclo ao aproximar-se do cruzamento estradal em causa, e com as normas dos art.os 32.o, n.o 1, alínea 5), e 34.o, n.o 2, da LTR, tidas por violadas pelo próprio recorrente, o certo é que ante a factualidade fixada no acórdão recorrido, não se sabe qual a velocidade inicial com que estava a andar o motociclo do recorrente no momento anterior à sua aproximação no mesmo cruzamento (ou seja, não se sabe se esse motociclo estava a andar com ultrapassagem do limite máximo da velocidade permitida na via estradal em que seguia nessa altura) (velocidade inicial essa que releva muito para se poder ajuizar da observância, ou não, da regra estradal do n.o 2 do art.o 34.o da LTR, por parte do recorrente), pelo que é, na opinião do presente Tribunal ad quem, injusta a decisão de se atribuir ao recorrente (in casu, comprovadamente como condutor com prioridade de passagem no dito cruzamento) 30% de culpa na produção do acidente dos autos, sobretudo quando o art.o 34.o, n.o 1, da LTR manda que “O condutor sobre o qual recaia o dever de ceder a passagem deve abrandar a marcha, se necessário, parar, ou, em caso de cruzamento de veículos, recuar, por forma a permitir a passagem de outro veículo, sem alteração da velocidade ou direcção deste”.
Em suma, há que passar a declarar o arguido como sendo o único culpado pela produção do acidente dos autos, com que o total indemnizatório civil (de MOP46.490,50) por que vinha condenada a recorrida seguradora em primeira instância passará a ser de MOP66.415,00 (=MOP46.490,50/7x10), correspondendo, aliás, este novo total indemnizatório à soma entre MOP5.665,00 (como as já provadas despesas de tratamento médico das lesões), MOP750,00 (como as já provadas despesas de reboque do motociclo) e MOP60.000,00 (como a quantia atribuída para compensação de danos morais).
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em julgar parcialmente provido o recurso do demandante civil A, passando, por conseguinte, a condenar a civilmente demandada Companhia de Seguros de Macau, S.A., a pagar-lhe a quantia indemnizatória total de MOP66.415,00 (sessenta e seis mil, quatrocentas e quinze patacas), com juros legais desde a data de leitura do acórdão recorrido até integral e efectivo pagamento.
Custas do pedido cível em ambas as Instâncias pelo demandante recorrente e pela companhia seguradora recorrida na proporção dos respectivos decaimentos finais.
Fixam em mil e trezentas patacas os honorários a favor do Ex.mo Patrono Oficioso do recorrente, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância (visto que o Tribunal a quo decidiu, no acórdão recorrido, dispensar o recorrente somente do pagamento dos honorários do seu Patrono).
Macau, 14 de Março de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)



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