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Processo n.º 976/2012 Data do acórdão: 2013-4-11 (Autos de recurso penal)
Assuntos:
– furto qualificado
– membro de grupo destinado à prática de crimes
– art.o 198.o, n.º 2, alínea g), do Código Penal
– realidade perceptível
– facto conclusivo
S U M Á R I O
1. A circunstância tida por provada pelo tribunal a quo no sentido de que os dois arguidos agiram “como membro de grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património”, embora tenha sido descrita com transcrição literal da primeira metade da redacção da norma incriminadora da alínea g) do n.o 2 do art.o 198.o do Código Penal, não deixa de constituir uma frase descritiva de uma realidade ainda perceptível por pessoas leigas de direito, isto porque todas as palavras empregues na redacção dessa circunstância já fazem parte da linguagem corrente comum das pessoas na vida quotidiana.
2. Contudo, tal frase já apresenta um tom algo conclusivo quanto à pertença dos dois arguidos a um “grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património”, quando em toda a restante matéria tida por provada, não se vislumbra nenhuma referência concreta feita a esse “grupo”, pelo que não pode relevar tal frase como matéria de facto provada em desfavor dos dois arguidos, devendo, pois, decair o imputado tipo legal de furto qualificado do art.o 198.o, n.o 2, alínea g), do Código Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 976/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrentes: A
B



ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 683 a 699 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR4-12-0148-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), foi decidido, de entre as outras coisas:
– condenar o 1.o arguido A como co-autor material de um crime consumado de furto qualificado, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 2, alínea g), do Código Penal vigente (CP), em quatro anos e seis meses de prisão, e como autor material de um crime consumado de abuso de cartão de crédito, p. e p. pelo art.o 218.o, n.o 1, do CP, em nove meses de prisão, e ainda como autor material de dois crimes tentados de abuso de cartão de crédito, em cinco meses de prisão por cada, e, finalmente em cúmulo jurídico dessas quatro penas parcelares, na pena única de cinco anos e seis meses de prisão;
– e também condenar o 2.o arguido B como co-autor material de um mesmo crime consumado de furto qualificado, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 2, alínea g), do CP, em quatro anos de prisão.
Inconformados, vieram ambos os arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para, na sua motivação una (apresentada a fls. 707 a 714v dos presentes autos correspondentes), pedir que fossem absolvidos da acusada prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 2, alínea g), do CP, ou, pelo menos, que fosse reduzida a pena desse crime (com consequente redução também da pena única do 1.o arguido recorrente), tendo para isso imputado ao Tribunal a quo os seguintes problemas como objecto e fundamento do recurso:
– o erro notório na apreciação da prova aquando da decidida comprovação efectiva da circunstância de que os factos relativos a furto foram praticados pelos recorrentes “como membro de grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património”;
– a impossibilidade de verificação total do tipo legal de furto qualificado por que vinham condenados (porquanto o consignado na factualidade considerada provada pelo Tribunal a quo na parte em que se escreveu “como membro de grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património”, não passou de ser mero conceito jurídico);
– e, subsidiariamente arguindo, o exagero na medida da pena do crime de furto qualificado (em contraste com as circunstâncias provadas de serem eles delinquentes primários, de o próprio 1.o arguido, apesar de não ter admitido que fosse membro de grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património, ter confessado os factos acusados, e de o valor pecuniário dos prejuízos dos ofendidos não ser elevado, devendo, pois, o 1.o arguido ser punido finalmente numa pena única de prisão com duração não superior a dois anos e meio, e o 2.o arguido numa pena não superior a dois anos).
Ao recurso, respondeu o Ministério Público (a fls. 728 a 732), no sentido de improcedência da argumentação dos recorrentes.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 740 a 742v), pugnando também pelo não provimento dos recursos.
Feito subsequentemente o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência feita neste TSI, cumpre decidir (sendo certo que os dois arguidos já foram advertidos da eventual alteração da qualificação jurídico-penal dos factos).
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o Tribunal a quo acabou por considerar provado inclusivamemente o seguinte no texto do seu acórdão ora recorrido, com pertinência para a decisão do objecto do recurso:
– os dois recorrentes são residentes do Interior da China, e conhecem-se entre si (cfr. o facto provado n.o 1);
– em 31 de Dezembro de 2011, à tarde, os dois recorrentes perderam nos jogos todo o dinheiro inicialmente trazido para jogar. Sob sugestão do 1.o arguido recorrente, os dois recorrentes combinaram em praticar actos de furto em Macau, e em repartir todo o proveito a obter dos furtos (cfr. o facto provado n.o 3);
– em 31 de Dezembro de 2011, cerca das cinco horas da tarde, os dois recorrentes, em conjugação de esforços, conseguiram tirar, inclusivamente, mil e quinhentas patacas em numerário existentes na mala da primeira pessoa ofendida dos autos (senhora C), no Centro Comercial do Hotel XX (cfr. os factos provados n.os 4 e 5);
– em 31 de Dezembro de 2011, cerca das cinco horas e trinta e cinco minutos da tarde, os dois recorrentes, em conjugação de esforços, conseguiram, dentro do Hotel XX, tirar uma carteira (de marca “XX”) pertencente à segunda pessoa ofendida dos autos (senhor D), carteira essa que valia oitenta mil yens japoneses, e continha, no interior, trezentos e cinquenta mil yens japoneses, causando assim a este indivíduo ofendido um prejuízo total, convertido para patacas ao câmbio de 0,104, de quarenta e quatro mil, setecentas e vinte patacas (cfr. os factos provados n.os 9 a 13);
– no Primeiro de Janeiro de 2012, ao meio-dia, o 1.o arguido recorrente, numa rua perto do Casino Lisboa, tirou uma carteira pertencente a um turista, carteira essa que continha, no interior, trinta e cinco mil yens japoneses em numerário, equivalentes a três mil, seiscentas e quarenta patacas (cfr. o facto provado n.o 17);
– no mesmo dia 1 de Janeiro de 2012, cerca das cinco horas e cinquenta e um minutos da tarde, os dois arguidos perseguiram um turista de identidade desconhecida, no rés-do-chão do Hotel XX. Na altura, o 1.o arguido meteu a mão na parte das costas desse turista para tentar retirar a carteira deste, mas não conseguiu, enquanto o 2.o arguido ficava a encobrir o acto do 1.o arguido e a vigiar;
– os dois recorrentes, como membro de grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património, à luz do acordo ajustado entre si em mútuo consentimento, e com divisão de tarefas, tiraram e fizeram seus, de modo livre, voluntário e consciente, os bens móveis de outrem (cfr. o facto provado n.o 28);
– os dois recorrentes sabiam claramente que os seus actos deste tipo eram violadores da lei e puníveis por lei (cfr. o facto provado n.o 30);
– os dois recorrentes são delinquentes primários em Macau.
Outrossim, do exame dos autos, resulta que:
– a primeira ofendida C apresentou queixa dos factos (cfr. sobretudo o teor de fls. 213 a 213v);
– e não há qualquer notícia de apresentação de queixa dos factos pelos dois turistas referidos nos factos ocorridos no dia 1 de Janeiro de 2012.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, decidindo agora concretamente:
Começaram os dois recorrentes por imputar ao Tribunal a quo o erro notório na apreciação da prova no tocante à comprovação da circunstância de eles terem agido “como membro de grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património”, para além de alegarem, depois, que fosse como fosse, essa circunstância não passaria de ser uma mera transcrição literal de um conceito jurídico constante da correspondente norma incriminadora.
Sempre tem este TSI afirmado, em inúmeros recursos anteriormente julgados, que ocorre o erro notório na apreciação da prova como vício previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando depois de analisados todos os elementos probatórios referidos no texto da decisão recorrida, se mostra que o concreto resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal a quo seja evidentemente desrazoável aos olhos de qualquer homem médio conhecedor das regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, ou flagrantemente violadora quer de quaisquer normas relativas à prova tarifada quer de quaisquer legis artis vigentes em matéria de julgamento de factos.
No caso dos autos, e independentemente da demais indagação por desnecessária, afigura-se, desde já, a este Tribunal ad quem que aquela circunstância então acusada e finalmente descrita como provada no texto do acórdão ora recorrido, embora tenha sido aí descrita com transcrição literal da primeira metade da redacção da norma incriminadora da alínea g) do n.o 2 do art.o 198.o do CP, não deixa de constituir uma frase descritiva de uma realidade perceptível por pessoas leigas de direito (isto porque todas as palavras empregues na redacção da dita circunstância, tais como “membro”, “grupo”, “destinado”, “prática”, “reiterada”, “crimes”, “contra” e “património”, etc., já fazem parte da linguagem corrente comum das pessoas na vida quotidiana).
Contudo, a mesma frase já apresenta um tom algo conclusivo quanto à pertença dos dois recorrentes a um “grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património”, isto precisamente porque em toda a restante matéria descrita como factualidade provada no mesmo texto decisório penal, não se vislumbra nenhuma referência concreta feita a esse “grupo”.
Assim sendo, não pode relevar tal frase como matéria de facto provada em desfavor dos dois recorrentes, pelo que decai o imputado tipo legal de furto qualificado do art.o 198.o, n.o 2, alínea g), do CP, com o que fica prejudicado o conhecimento do vício de erro notório na apreciação da prova.
Não obstante, importa proceder à alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal dos factos respeitantes a furto.
Na verdade, atenta a factualidade provada a respeito dos casos de furto dos autos e já referenciada, nos termos essenciais, na parte II do presente acórdão de recurso (com desconsideração, agora, da frase “como membro de grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património”), há que passar a condenar, por haver factos provados que assim suficientemente sustentam (e só assim sustentam), os dois recorrentes como co-autores materiais de um crime (semi-público) consumado de furto simples (de que foi ofendida e queixosa a senhora C), p. e p. pelo art.o 197.o, n.o 1, do CP, e de um crime (público) consumado de furto em valor elevado (de que foi ofendido o senhor D), p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 1, alínea a), do CP, ambos praticados no mesmo dia 31 de Dezembro de 2011 (sendo, pois, de notar que por falta de notícia de apresentação da respectiva queixa, o Ministério Público não pode ter legitimidade para exercer a acção penal nos presentes autos em relação ao caso de furto simples consumado e o de furto simples tentado, ocorridos no dia 1 de Janeiro de 2012).
E finalmente, da medida da pena:
Pois bem, quanto ao crime de furto simples punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, e ao crime de furto em valor elevado punível com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até seiscentos dias, e em sede do art.o 64.o do CP falando, não se pode optar pela aplicação da pena de multa a ambos os crimes, devido às elevadas exigências de prevenção geral dos crimes de furto praticados por pessoas vindas do exterior de Macau em comparticipação contra turistas aqui visitantes.
Assim sendo, e ponderando todas as circunstâncias fácticas já apuradas pelo Tribunal a quo com pertinência para a graduação da pena (as quais demonstram que é elevado o grau de dolo na prática dos factos delituosos em questão), e considerando sobretudo que os dois recorrentes não têm antecedentes criminais em Macau e que o valor pecuniário em causa no primeiro caso de furto é, de facto, não muito grande, para além de haver que dar satisfação às acima referidas inegáveis elevadas exigências da prevenção geral dos crimes, há que punir, sob os padrões da medida da pena plasmados nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, os dois arguidos recorrentes, co-autores dos analisados dois crimes consumados de furto:
– igualmente com nove meses de prisão, no primeiro caso de furto (simples) praticado em 31 de Dezembro de 2011, cerca das cinco horas da tarde;
– e igualmente com um ano e seis meses de prisão, no caso de furto em valor elevado, ocorrido no dia 31 de Dezembro de 2011, cerca das cinco horas e trinta e cinco minutos da tarde.
Como o 1.o arguido recorrente não sindicou da justeza das penas concretas de prisão achadas no acórdão recorrido para os seus outros crimes (quais sejam, um crime consumado de abuso de cartão de crédito, p. e p. pelo art.o 218.o, n.o 1, do CP, aí punido com nove meses de prisão, e dois crimes tentados de abuso de cartão de crédito, punidos cada um identicamente com cinco meses de prisão), as mesmas penas entram assim tal e qual na feitura do cúmulo jurídico.
Deste modo, considera-se como justo e equilibrado passar a aplicar ao 1.o arguido, dentro da moldura de um ano e seis meses a três anos e dez meses da pena de prisão única, calculada nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, dois anos e seis meses de prisão única, e ao 2.o arguido, dentro da moldura de um ano e seis meses a dois anos e três meses da pena de prisão única, um ano e dez meses de prisão única.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em:
– julgar parcialmente provido o recurso do 1.o arguido A e do 2.o arguido B;
– alterar oficiosamente a qualificação jurídica dos factos no respeitante aos casos de furto, passando, por conseguinte, a condenar os dois arguidos recorrentes como co-autores materiais, na forma consumada, de um crime de furto simples, p. e p. pelo art.o 197.o, n.o 1, do Código Penal, e de um crime de furto em valor elevado, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 1, alínea a), do mesmo Código, ambos praticados no mesmo dia 31 de Dezembro de 2011, igualmente na pena de nove meses de prisão (pelo furto simples) e na pena de um ano e seis meses de prisão (pelo furto em valor elevado);
– e passar a impor ao 1.o arguido dois anos e seis meses de prisão única (resultante do cúmulo jurídico das duas penas parcelares acima referidas e também das penas parcelares já aplicadas no acórdão recorrido quanto aos seus outros três crimes, relativos ao abuso de cartão de crédito), e ao 2.o arguido um ano e dez meses de prisão única;
– ficando, por outro lado, intacto o dispositivo do acórdão recorrido na parte respeitante à indemnização cível.
Pagarão os dois recorrentes metade das custas do seu recurso, com oito UC de taxa de justiça individual.
E comunique a decisão aos ofendidos senhora C e senhor D.
Macau, 11 de Abril de 2013.
________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
________________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)



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