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Proc. nº 910/2012
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 11 de Abril de 2013
Descritores:
-Declaração de remissão/quitação
-Vícios da vontade


SUMÁRIO

I - A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.

II - A quitação (ou recibo, no caso de obrigação pecuniária) é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação.

III - O reconhecimento negativo de dívida é o negócio pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.

IV - O reconhecimento negativo da dívida pode ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas.

V - A remissão ou quitação de créditos do contrato de trabalho é possível após a extinção das relações laborais.

VI - É válida a declaração assinada por um trabalhador, em que afirma ter recebido determinada quantia como compensação pelo trabalho prestado em dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios, e em que anuncia não subsistir nenhum outro crédito emergente da relação laboral sobre a sua entidade se não ficar provado que tal declaração foi assinada com vício da vontade ou com outro qualquer vício que a torne nula ou anulável.
Proc. Nº 910/2012

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I- Relatório
B, do sexo feminino, com os demais sinais dos autos, moveu contra a STDM acção de processo comum de trabalho pedindo a condenação desta no pagamento de Mop$798.478,90, como compensação pelos descansos semanais, feriados obrigatórios e descansos anuais não gozados desde o início ao termo da relação laboral entre ambos estabelecida.
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Na sua contestação, a ré STDM suscitou a excepção de prescrição e, além da matéria impugnativa, deduziu igualmente reconvenção, que, concretamente, manifestou através do pedido de devolução das gorjetas que entregou à autora ao longo da relação laboral, no pressuposto de que elas não eram devidas nos termos do contrato entre ambos celebrado e no de que elas haviam sido oferecidas livre e espontaneamente pelos jogadores sem que fizessem, portanto, parte do salário. A ser assim, considera estar perante um enriquecimento indevido por parte do trabalhador, circunstância que a leva a pedir a sua devolução.
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No despacho saneador, o tribunal “a quo” não admitiu o pedido reconvencional e, a propósito da prescrição, julgou prescritos todos os créditos anteriores a 10/11/1991.
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Não houve recurso do despacho saneador.
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Prosseguiram os autos a sua normal tramitação e, na oportunidade, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, com base na quitação resultante de um documento assinado pela autora da acção.
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Inconformada, a autora recorre jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A - Ao caso sub judicio apenas se pode aplicar o R.J.R.T. da R.A.E.M., uma vez que o mesmo não contém lacuna que deva ser integrada, não se podendo fundar a Sentença recorrida no art. 854º do Código Civil - art. 3º do D.L. 39/99/M e art 6º, nº 3, 8º, 9º do C.C. e 25º e 33º do R.J.R.T.
B - De acordo com o disposto no art. 33º do Decreto-Lei nº 84/89/M, de 03 de Abril, os direitos dos trabalhadores a créditos laborais, designadamente a salários por trabalho efectivamente prestado, são inalienáveis e irrenunciáveis.
C - Ao não aplicar ao caso concreto a norma do art. 33º do R.J.R.T., a Douta Sentença recorrida sofre de nulidade - art. 571º, nº 1 alínea d) do C.P.C..
D - Os créditos laborais dos trabalhadores da R.A.E.M. não têm um tratamento diferenciado, i.e., indisponíveis na vigência do contrato de trabalho e disponíveis após essa vigência.
E - Uma tal interpretação, no sentido da sua disponibilidade após a cessação da relação laboral, não resulta nem da letra da Lei, nem do seu espírito, nem das circunstâncias efectivas e históricas em que foi criada.
F - Bem como violaria o Princípio da Igualdade, pois os direitos dos trabalhadores nas mesma circunstâncias da recorrente têm vindo a ser acauteladas pelas Tribunais da RA.E.M., existindo sobre a questão Jurisprudência Assente.
G - A “Declaração” assinada pela recorrente não constitui, por falta de todos os legais requisitos e por violação do art. 33º do R.J.R.T. uma remissão ou renúncia abdicativa, sendo nula e de nenhum efeito.
H - A recorrente, embora tenha cessado o seu contrato de trabalho com a recorrida, continuou a exercer funções para a sua subsidiária, existindo entre aquela e a SJM, subsidiária da recorrida e por ela controlada, uma relação de trabalho, que o impedia de, livremente, formar uma vontade, com o que os documentos que suportam a Decisão recorrida são nulos e inquinam a mesma art. 259º do C.C..
I - A Jurisprudência portuguesa que suporta a Decisão recorrida não tem aplicação ao caso concreto, pela que padece a mesma de ausência de fundamentação - art. 571º, nº 1, alíneas b) e d) do C.P.C..
J - A “Declaração” assinada pela recorrente é vaga e imprecisa, sendo certo que os requisitos do art. 854º do C.C., sem conceder, são a existência de um direito e não a mera hipótese de existência ou probabilidade de existência do mesmo, e a certeza, pela concretização, do direito a que se renúncia, quer pela sua especificação exacta, quer pelo reconhecimento da sua existência, o que não acontece in casu.
L - A “Declaração” da recorrente e documentos constantes dos autos, reportam-se a um “prémio de serviço” e não a um qualquer direito efectivado, não representando, ainda, a perda de um valor pecuniário/patrimonial, por si só e sem contrapartida.
M - Ainda, para que se dê a remissão/renúncia consensual do direito, nos termos do art. 854º do C.C., é condição essencial o consentimento do devedor na remissão, que inexiste nesta concreta situação.
N - Ninguém pode dar quitação de um crédito que ignora e cuja titularidade nem sequer lhe é reconhecida, donde, não existindo qualquer remissão/renúncia abdicativa da recorrente aos seus créditos laborais e não sendo permitido retirar qualquer efeito liberatório de uma “Declaração” viciada, está a Decisão recorrida ferida de nulidade - cfr. arts. 854º, 239º e 240º do C.C. e art. 571º, nº 1 alíneas b) e d) do C.P.C..
O - Atento o inderrogável Princípio do Favor Laboratoris, elaborado atentas as especificidades do Direito de Trabalho e a necessidade de proteger o trabalhador, encontrando-se a solução jurídica que lhe seja mais favorável, uma vez que é a parte débil em qualquer relação laboral, deve sempre entender-se a “Declaração” sub judicio como declaração retratável - na senda da Jurisprudência da R.A.E.M., sob pena de violação do art. 6º do D.L. nº 24/89/M, de 3 de Abril.
P - Sem conceder, mesmo que a “Declaração” assinada tivesse feito surgir o contrato de remissão de dívida, de acordo com as normas imperativas dos arts. 6º e 2º, alínea d) do R.J.R.T., não podia este surtir qualquer efeito, pois é, em concreto, muitíssimo desfavorável à recorrente.
Termos em que, e nos melhores de Direito, sempre com o mui Douto suprimento de V.Exªs, Venerando Juízes, deverá ser declarada nula e de nenhum efeito a Douta Sentença proferida, com as legais consequências, designadamente, ser a presente Acção julgada, in totum, procedente por provada, assim se fazendo a esperada JUSTIÇA!».
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Respondeu ao recurso a STDM, cuja peça alegatória terminou da seguinte maneira:
«1. Andou bem a douta Sentença recorrida na consideração da “Declaração” como extintiva dos eventuais créditos da Autora sobre a Ré, decorrentes da relação laboral mantida entre ambas e já cessada;
2. O Tribunal a quo aderiu, assim, ao entendimento do TUI no que toca a esta matéria, mormente ao expresso no Acórdão n.º 46/2007, de 27 de Fevereiro de 2008, no âmbito do qual se declara que “A remissão de créditos do contrato de trabalho é possível após a extinção das relações laborais”;
3. Mais se invoca o Acórdão do TUI proferido no processo n.º 27/2008, de 30 de Julho de 2007, no âmbito do qual a Alta Instância qualifica a “Declaração” como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo da dívida, não obstante também afirmar que tratando-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a Ré;
4. Autora e Ré chegaram a um acordo quanto às eventuais compensações decorrentes da prestação de trabalho em dias de descanso, consubstanciando-se na assinatura da “Declaração” aqui em causa;
5. A Autora sabia e estava consciente do que assinava, aliás nada em contrário resulta da prova constante dos autos, ou seja, estava plenamente consciente de que se encontrava a dispor de eventuais direitos que eram disponíveis, porquanto a relação laboral com a Ré já tinha cessado;
6. Por outro lado, No tocante à questão fundamental da validade da declaração remissiva e a sua consequência jurídica, sabe-se que também é entendimento deste douto Tribunal de Recurso que a mesma é válida e extintiva de toda e qualquer compensação emergente da relação laboral (cfr. o Acórdão do TSI, de 24 de Julho de 2008, no âmbito do processo n.º 491/2007)1;
7. Trata-se de uma remissão que se traduz numa causa de extinção das obrigações e na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte2, revestindo, por isso, a forma de “contrato”, como claramente se preceitua no artigo 854.º, n.º 1 do Código Civil, onde consta que o credor por remitir a dívida por contrato com o devedor, ou, tal como entende o Alto Tribunal de Última Instância, de uma questão de “quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida” que se prevê no disposto no artigo 776.º do Código Civil e, de uns direitos disponíveis;
8. Seja qual for a qualificação, visa a mesma “Declaração” a produção dos efeitos de fazer extinguir a dívida do devedor e o reconhecimento definitivo da inexistência da prestação devida ao credor;
9. No caso dos presentes autos, encontrando-se a “Declaração” assinada, e cessada que estava a relação laboral entre as aqui Ré e Autora, nada mais deve aquela a esta;
10. Nestes termos, porque a declaração produz efeitos extintivos sobre a eventual dívida resultante das compensações por trabalho prestado em dias de descanso, deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se, na íntegra, o doutamente decidido em Primeira Instância;
Ainda concluindo,
11. A “Declaração” não é subsumível à figura da cessão ou cedência de créditos. Aliás, bem pelo contrário, no âmbito da cessão de créditos, o crédito continua a existir, não se extingue, apenas operando-se mudanças quanto à sua titularidade. No caso dos autos e da “Declaração” em concreto, discute-se a extinção do crédito;
12. Por outro lado, o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, não tem aplicabilidade no caso dos presentes autos, porquanto o preceito refere-se a valores resultantes de créditos ao salário e não a valores resultantes de eventuais compensações por trabalho prestado em dias de descanso;
13. Esta posição da Recorrida tem, inclusivamente, acolhimento neste douto Tribunal de recurso. A título exemplificativo, socorre-se a Recorrida do recente Acórdão proferido no Processo n.º 192/2011, de 19 de Abril de 2012, no âmbito do qual esta Alta Instância Recursória se pronunciou sobre o assunto, epigrafando-o de “Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade”;
14. Nestes termos, por o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, não ter aplicabilidade no caso dos presentes autos, deverá o presente recurso ser considerado improcedente, mantendo-se na totalidade a douta Decisão recorrida;
Ainda concluindo,
15. Não há na matéria assente qualquer facto que se possa subsumir à existência de qualquer vício na formação ou declaração de vontade da Autora expressa na “Declaração” remissiva, ou a qualquer outra tipologia de falta ou vício da vontade, sendo que a prova de tais hipotéticos factos sempre caberia à Autora.
16. Realce-se que a Autora nem sequer o alegou na sua Petição Inicial, nem em qualquer outra fase do processo. Repescando o Acórdão do TUI de 30 de Julho de 2008, proferido no processo n.º 27/2008, entendimento este também adoptado por esta Instância, mormente no recente e já citado Acórdão do TSI proferido no Processo n.º 192/2011, de 19 de Abril de 2012, transcreve-se o aí doutamente decidido: “Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.”;
17. Sem necessidade de mais, estamos em crer, deverá o recurso improceder também no que a esta parte se refere, mantendo-se na totalidade a Decisão constante da douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, o que se requer;
Em face de todo o exposto, deverá o recurso apresentado pela Recorrente ser considerado improcedente porque infundado e, consequentemente, ser mantida em conformidade a douta Sentença recorrida, na parte em que absolveu a aqui Recorrida, fazendo-se desta forma a devida e costumada Justiça.».
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
«A R. tem por objecto social a exploração de jogos de fortuna ou azar, e a indústria hoteleira, de turismo, transportes aéreos, marítimos e terrestre, construção civil, operações em títulos públicos e acções nacionais e estrangeiros, comércio de importação e exportação. (A)
A R. foi, até 31 de Março de 2002, a única concessionária de jogos de fortuna ou azar em Macau, designadamente a proprietária e, ou, operadora de todos os casinos aqui existentes. (B)
A 1 de Dezembro de 1987, a A. iniciou a sua relação contratual com a R., sob a direcção efectiva e fiscalização por parte desta. (C)
A sua função foi inicialmente a de Assistente de Clientes da R., e a partir de 1989 passou a exercer as funções de croupier. (D)
O horário de trabalho da A. foi sempre fixado pela R., em função das suas necessidades, por turnos diários, em ciclos de três dias, num total de 8 horas, alternadas de 4 em 4 horas, existindo apenas o período de descanso de 8 horas diárias durante dois dias e um período de 16 horas de descanso no terceiro dia. (E)
O rendimento da A. era constituído por duas quantias, uma fixa, no valor de MOP 4,10/dia, desde o início da relação contratual até 30 de Junho de 1989; de HKD 10,00/dia, desde 1 de Julho de 1989 até 30 de Abril de 1995; e de HKD 15,00/dia, desde 1 de Maio de 1995 até ao fim da relação contratual com a Ré, e ainda outra parte variável, em função do dinheiro recebido dos clientes de casinos vulgarmente designado por gorjetas. (F)
As gorjetas oferecidas a cada um dos seus trabalhadores pelos seus clientes eram reunidas e contabilizadas diariamente pela seguinte composição de indivíduos: um funcionário do Departamento de Inspecção de Jogos de Fortuna ou Azar, um membro do departamento de tesouraria da R., um “floor manager” (gerente do andar) e trabalhadores das mesas de jogo, e depois distribuídas, de dez em dez dias, por todos os trabalhadores dos casinos da R. (G)
Tais gorjetas eram distribuídas por todos os trabalhadores da R. e não apenas pelo que tinham contacto directo com os clientes nas salas de jogo e nessa distribuição interna das gorjetas, os trabalhadores recebiam quantitativo diferente consoante a respectiva categoria, tempo de serviços e departamentos em que trabalhavam. (J)
No dia 1 de Julho de 2002, a A. passou a desempenhar funções para a Sociedade de Jogos de Macau. (I)
A 15 de Julho de 2003, a A. emitiu a declaração constante de fls. 67, de cujo teor se passa a transcrever:
“Eu, B, titular do BIR n.º X/XXXXXX/X, recebi, voluntariamente (...) a quantia de MOP$ 29.732,98 (...), da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a todos os dias de licença (descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade) e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM. (...) Mais declaro e entendo que, recebido o valor recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
(A Declarante): (ass.) A.
Data: 15-07-2003” (J)
A A. emitiu uma declaração junto a fls. 116, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida, e recebeu uma quantia de MOP$ 14.866,49, a título de “prémio de serviços”, arbitrada pelo Departamento de Inspecção de Trabalho da DSAL. (K)
Durante o período em que prestava serviço à R., a A. auferiu os seguintes rendimentos:
a) Ano de 1987 = MOP$ 3.509,00
b) Ano de 1988 = MOP$ 40.397,00
c) Ano de 1989 = MOP$ 77.956,00
d) Ano de 1990 = MOP$ 114.132,00
e) Ano de 1991 = MOP$ 114.059,00
f) Ano de 1992 = MOP$ 140.184,00
g) Ano de 1993 = MOP$ 142.549,00
h) Ano de 1994 = MOP$ 174.155,00
i) Ano de 1995 = MOP$ 180.317,00
j) Ano de 1996 = MOP$ 209.202,00
k) Ano de 1997 = MOP$ 209.369,00
l) Ano de 1998 = MOP$ 197.680,00
m) Ano de 1999 = MOP$ 168.549,00
n) Ano de 2000 = MOP$ 162.987,00
o) Ano de 2001 = MOP$ 173.347,00
p) Ano de 2002 = MOP$ 176.668,00. (1º)
A A. e a R. acordaram verbalmente, aquando da sua contratação, que o salário do primeiro fosse conforme descrito em F). (2º)
A A. só aceitou trabalhar para a R. porque esta lhe oferecia as condições aludidas em F). (3º)
Desde o início da relação contratual até à sua cessação com a R., e a A. nunca gozou um dia de descanso semanal. (4º)
Sem que a R. lhe tenha pago qualquer compensação salarial. (5º)
Desde o início da relação contratual até à sua cessação com a R., a A. nunca gozou descansos anuais. (6º)
Sem que a R. lhe tenha pago qualquer compensação salarial. (7º)
Desde o início da relação contratual até à sua cessação com a R., a A. trabalhou para a R. em todos os dias de feriado obrigatório. (8º)
Sem que a R. lhe tenha pago qualquer compensação salarial. (9º)
Aquando da contratação dos trabalhadores da R., a A. era informada que ao gozo de dias de descanso não corresponderia qualquer remuneração. (10º)
A A. era livre de pedir o gozo de dias de descanso sempre que assim o entendesse, desde que tal gozo não pusesse em causa o funcionamento da empresa da R.. (11º)
Sempre que a A. queria gozar os dias de descanso, apenas tinha de apresentar um formulário com antecedência. (12º)
Os trabalhadores, incluindo à A., optavam por trabalhar nos dias de descanso semanal, anual e dias de feriados obrigatórios para auferir os respectivos rendimentos. (13º)
A A. foi autorizada pela R. a não comparecer ao serviço nos seguintes dias:
No ano 1988, a A. gozou 7 dias de descanso;
No ano 1991, a A. gozou 25 dias de descanso;
No ano 1993, a A. gozou 39 dias de descanso;
No ano 1994, a A. gozou 9 dias de descanso;
No ano 1995, aA. gozou 45 dias de descanso;
No ano 1996, a A. gozou 7 dias de descanso;
No ano 1997, a A. gozou 12 dias de descanso;
No ano 1998, a A. gozou 20 dias de descanso;
No ano 1999, a A. gozou 25 dias de descanso;
No ano 2000, a A. gozou 36 dias de descanso;
No ano 2001, a A. gozou 16 dias de descanso;
No ano 2002, a A. gozou 25 dias de descanso. (14º)
A A. exerceu funções na R. (STDM) até 21 de Julho de 2002, data em que assinou contrato com SJM. (15º)
A A. trabalhou para a SJM até meados do ano de 2006. (16º)
O local de trabalho onde a A. passou a exercer funções era exactamente o mesmo. (19º)
A A. recebeu o “prémio de serviço” aludido na alínea J) dos factos assentes. (23º)».
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III- O Direito
1 – Da nulidade da sentença
Na óptica da recorrente, sido cometida a nulidade do art. 571º, als. b), do CPC, na medida em que a sentença teria atribuído ao documento/declaração por si assinado um efeito liberatório. E pretende também a recorrente ver na decisão recorrida a nulidade do art. 571º, nº1, al. d), do CPC, com base na circunstância de o tribunal “a quo” não ter aplicado o art. 33º do DL nº 84/89/M, de 3/04, segundo o qual os direitos dos trabalhadores a créditos laborais, designadamente a salário, são inalienáveis e irrenunciáveis.
Ora. Se os fundamentos para a invocação da nulidade são estes, então somos obrigados a discordar da recorrente. O que está em causa, segundo as palavras da recorrente, não é uma nulidade que decorra de falta de fundamentação, nem de omissão de pronúncia sobre questão de que devia ter sido tomado conhecimento, mas sim, e diferentemente, de uma má aplicação do direito. Verdadeiramente, em sua opinião, o tribunal teria, antes, tomado uma decisão sem ter tido em conta uma regra jurídica que, se aplicada, lhe imporia outra solução jurídica. Mas, isso é o que veremos já de seguida.
Assim, escusadas mais delongas, somos a concluir pela improcedência da referida nulidade.
*
2- Da bondade da sentença
A sentença extraiu dos documentos assinados a fls. 77 dos autos (ver facto assente em J)) - em que a autora declarou ter recebido da ré a quantia de Mop$ 29.732,98 referente à compensação de direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios e eventual licença de maternidade – o valor de declaração de quitação ou, então, de remissão.
A autora recorrente defende que este entendimento é ilegal, em violação do art. 33º do RJRT, na medida em que os créditos dos trabalhadores são inalienáveis e irrenunciáveis. Além disso, considera vaga e imprecisa tal declaração, sendo ainda certo que a sentença não atendeu ao princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador.
Está em causa, portanto, o referido documento, que tem o seguinte conteúdo:
“Eu, B, titular do BIR n.º X/XXXXXX/X, recebi, voluntariamente (...) a quantia de MOP$ 29.732,98 (...), da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a todos os dias de licença (descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade) e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM. (...) Mais declaro e entendo que, recebido o valor recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral”.
O problema foi já objecto de debate tanto no TSI, como no TUI. Sirvamo-nos, com a devida vénia, do texto de um acórdão do TUI lavrado no Processo nº 27/2008, em 30/07/2008, com o qual concordamos e que, por essa razão, aqui fazemos nosso, transcrevendo-o:
“A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor”, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.
4. Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade
Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ:
“Relacionada com a irredutibilidade encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações”.
Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.
5. Normas convencionais e declarações negociais. O princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador
O Acórdão recorrido considerou que o art. 6.º do RJRL não permitia o acordo das partes pelo qual a autora, trabalhadora, declarasse remitir a dívida para com a ré, tendo esta declaração violado o princípio de tratamento mais favorável dos trabalhadores.
E acrescentou o mesmo Acórdão, referindo-se ao princípio de tratamento mais favorável, ele “deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir”.
Na feliz síntese de BERNARDO LOBO XAVIER13 “o princípio do tratamento mais favorável, no plano da hierarquia das normas, significa que as normas de mais alto grau valem como estabelecendo mínimos, podendo ser derrogadas por outras subalternas, desde que mais favoráveis para o trabalhador. No plano da interpretação, na dúvida sobre o sentido da lei, deverá eleger-se aquele que seja mais benéfico para o trabalhador. Na aplicação no tempo, aplicar-se-ão imediatamente todas as regras do trabalho, no pressuposto de que, havendo um constante progresso social, as novas normas são mais favoráveis para o trabalhador, conservando este, ainda, as regalias adquiridas à sombra de anterior legislação”.
O art. 6.º do RJRL dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Prevalência de regimes convencionais São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”.
Esta norma prevê que as normas convencionais, estipuladas entre empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos, podem afastar o regime das normas legais desde que o regime convencional não seja menos favorável para os trabalhadores do que o regime legal.
Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.
O Acórdão recorrido invoca, ainda, em abono da sua tese o art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, que institui o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Tal preceito, no seu n.º 2 fere com a nulidade os actos e os contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos naquele diploma. Ora, nem nos autos está em causa qualquer acidente de trabalho ou doença profissional, nem a quitação operou qualquer renúncia a direitos da autora.
O art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é, pois, inaplicável.
Em suma, a autora não tem o direito que invocou, pelo que a acção estava condenada ao insucesso”.
Por esta autorizada posição se vê que a referida declaração, mais consentânea com uma quitação, tal como se pode ler no aresto, implica que o credor nada mais tenha a exigir do devedor, seja qual for a for de composição do salário (questão que haveria de discutir-se no recurso do então autor). De qualquer modo, mesmo admitindo que se trate de remissão, não deixou de aflorar a questão e concluir no mesmo sentido da inexigência de mais nenhuma importância a título de créditos salariais.
Por outro lado, também ela responde à questão da renunciabilidade e disponibilidade de direitos, do tratamento mais favorável e da cedência do crédito do salário.
Trata-se, de resto, de uma posição que noutras ocasiões temos já subscrito. Veja-se, por exemplo, e por mais recentes, os Acs. do TSI lavrados nos Processos nºs., 318/2010 e 316/2010, ambos de 28/07/2011; 317/2010, de 6/10/2011. Ainda os arestos de 12/2011, Proc. nº 1014/2010; 9/02/2012, Proc. nº 124/2011 e de 19/04/2012, Proc. nº 192/2011; 17/01/2013, Proc. nº 981/2012, 31/01/2013, Proc. nº 875/2012.
E não se diga que aquela declaração aqui representa a tradução de um erro-vício (art. 240º do C.C.) por parte da recorrente, ao dizer que apenas a assinou na convicção de que os seus direitos sempre estariam acautelados.
Nada disso pode proceder.
Veja-se o que sobre o tema este TSI já asseverou no acórdão datado de 29/09/2011, no Proc. nº 11/2011, o qual por nós foi subscrito como adjunto do relator:
“ …Pretende o recorrente que se tratou de uma renúncia de direitos indisponíveis.
E para tanto invoca a natureza indisponível dos direitos concedidos ao trabalhador, a natureza proteccionista daquele diploma em relação a tais direitos, a necessidade de protecção da parte mais fraca, a posição dominante da concessionária empregadora, a menor margem de liberdade do trabalhador.
Não tem razão o recorrente.
Não obstante ser verdade o que diz quanto à enunciação daqueles princípios, a protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
É verdade que, desde logo, o RJRL, no seu art. 1º, pugnando pela “observância dos condicionalismos mínimos” nele estabelecidos, prevê que
“O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
E no art. 33º do R.J.R.T.
“O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
Daqui decorre que nenhum desses artigos contempla ex professo a situação em apreço. Antes respeitam a situações diferentes, nomeadamente o artigo 33º o que prevê é a impossibilidade de renúncia a um salário e não já às compensações devidas por trabalho indevido.
Tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compreendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, como acontece no caso presente.
E também não são válidas quando já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações recebidas por créditos laborais.
A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
11. Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige que as condições de trabalho sejam humanas e ignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.
Nem aquele princípio, consagrado no artigo 5º do mesmo supra citado Regime nos seguintes termos “1. O disposto no presente diploma não prejudica as condições de trabalho mais favoráveis que sejam já observadas e praticadas entre qualquer empregador e os trabalhadores ao seu serviço, seja qual for a fonte dessas condições mais favoráveis. 2. O presente diploma nunca poderá ser entendido ou interpretado no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas ou observadas entre os empregadores e os trabalhadores, com origem em normas convencionais, em regulamentos de empresa ou em usos e costumes, desde que essas condições de trabalho sejam mais favoráveis do que as consagradas no presente diploma.”, poderá ter o alcance que se pretende, de limitar a capacidade negocial do trabalhador de forma tão extensa.
O princípio do tratamento mais favorável “...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas”
Noutra perspectiva, considera-se que tratamento mais favorável ao trabalhador deve ser entendido em termos actualistas, como o conjunto dos valores que o Direito do Trabalho, de modo adaptado, particularmente defende e entre os quais, naturalmente, avulta a protecção necessária ao trabalhador subordinado. Quando haja um conflito hierárquico entre fontes do Direito do Trabalho, aplicam-se as normas que estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador, sejam elas quais forem; tal não se verificará quando a norma superior tenha uma pretensão de aplicação efectiva, afastando a inferior.
Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.
(…) Nesta conformidade falece eventual invocação do artigo 6º do RJRL “São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”, tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
Isto porque, como se disse, já não se trata de conduta e actuação no local de trabalho e exercício de funções.
Tal é a situação dos autos, em que se mostra cessada a relação laboral e assim se tem entendido em termos de Jurisprudência comparada.
(…) É que não se trata da disponibilidade de direitos, mas sim da compensação pela sua não satisfação. Pelo contrato havido e comprovado, no âmbito do qual foi emitida aquela declaração, as partes acordaram sobre o montante de indemnização ou "compensação" devida ao Autor e, com o recebimento dessa quantia, a correspondente obrigação da Ré, surgida em substituição da obrigação inicial, extinguiu-se pelo pagamento de que o A. deu total quitação, sendo legítima a transacção extrajudicial sobre o conteúdo ou extensão de obrigação da Ré nos termos do artigo 1172º do CC, não abrangida já por qualquer indisponibilidade.
(…) Somos assim, face à caracterização jurídica do acordo celebrado, em considerar que a alegação sobre a vaguidade da declaração de reconhecimento de cumprimento e extinção de toda e qualquer prestação que fosse porventura devida não colhe, face à sua admissibilidade.
Para além de que não se deixaram de concretizar a que título ocorreu o acerto final, quais as compensações a que se procedia, dando-se quitação de todas e eventuais prestações não abrangidas por aquele recebimento.
(…) Sobre a eventual situação de inferioridade e dependência ao assinar o recibo, pelo que, não manifestando qualquer vontade negocial, não tomou uma opção livre e consciente, uma escolha livre no tocante à assinatura da referida declaração, estaríamos perante uma situação de erro vício previsto no artigo 240º do CC, face à indução da conduta pela entidade pública tutelar e viciação da vontade, por temor, face à continuação numa sociedade subsidiária da primeira empregadora.
Ou, noutra perspectiva numa situação de coacção moral ou de negócio usurário contemplados nos artigos 240º e 275º do CC.
Trata-se de matéria não comprovada.
Como por tudo quanto se vem dizendo não há elementos que possam fundamentar um enquadramento em termos de tal declaração ter sido assinada com base em erro sobre a base do negócio ou em qualquer outro erro ou afectação de uma vontade negocial livre e esclarecida”
Reafirmamos a nossa posição vertida no trecho transcrito para concluirmos que é válida a declaração assinada por um trabalhador, em que afirma ter recebido determinada quantia como compensação pelo trabalho prestado em dias de descanso semanal, anual, feriados obrigatórios e licença de maternidade, e em que anuncia não subsistir nenhum outro crédito emergente da relação laboral sobre a sua entidade se não ficar provado que tal declaração foi assinada com vício da vontade ou com outro qualquer vício que a torne nula ou anulável.
Também não procede o argumento utilizado nas alegações segundo o qual estaria violado o princípio da igualdade, na medida em que outros colegas seus, trabalhadores do casino, receberam, pelo mesmo motivo, as indemnizações que a sentença nega a si. Não está provado, em 1º lugar, que as situações sejam iguais; há diferenças entre a situação dos trabalhadores, se uns assinaram a declaração e outros não. Por outro lado, se a violação da igualdade é imputada à sentença, portanto, ao trabalho judicial, não se pode falar em ofensa ao princípio, mas quando muito um erro de julgamento que, em sede de recurso jurisdicional, o tribunal superior sempre pode reparar. E não é caso para isso, como acima se viu.
Quer isto dizer, pois, que a posição da autora no recurso não merece o nosso acolhimento.
***
IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
TSI, 11 / 04 / 2013
(Relator)
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
Choi Mou Pan


Vencido pois não vejo razão para alterar a minha posição já assumida na declaração de voto que juntei aos vários Acórdão do TSI, nomeadamente os Acórdãos tirados nos processos nºs 210/2010, 216/2011, 223/2010 e 252/2008, isto é, dada a natureza imperativa da norma do artº 6º do Decreto-Lei nº 24/89/M, um contrato mediante o qual se convencionaram as condições de trabalho aquém do mínimo da protecção dos trabalhadores não pode deixar de ser julgado nulo, por força do disposto no artº 287º do Código Civil, nos termos do qual, salvo excepção expressa em contrário resultante da lei, são nulos os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo.

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong

1 Vide os Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância proferidos nos Processos nº 207/2008, 249/2008, 335/2008, 380/2008, 407/2008 e 428/2008, todos de 18 de Setembro de 2008, e, mais recentemente, os proferidos nos Processos nº 44/2012, de 7 de Junho de 2012, 143/2011, de 19 de Abril de 2012, 191/2011 e 192/2011, ambos de 19 de Abril de 2012.
2 Vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol.ll, Coimbra Almedina, 7.ª Edição, 1995, p. 203 e ss.
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