Processo n.º 600/2012 Data do acórdão: 2013-5-16 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– art.o 73.o do Código de Processo Penal
– art.o 74.o, n.o 3, do Código de Processo Penal
– arbitramento oficioso de indemnização
– decisão civil
– sentença contravencional condenatória
– art.o 583.o, n.o 1, do Código de Processo Civil
– recurso da decisão civil tomada em sentença penal
– alçada do tribunal
– regra da sucumbência
– art.o 390.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
– princípio de adesão
– erro notório na apreciação da prova
– Lei das Relações de Trabalho
– Lei n.o 7/2008
– empresa
– conversão da multa contravencional em prisão
– art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da Lei n.o 7/2008
S U M Á R I O
1. Atento o disposto no art.o 73.o do Código de Processo Penal vigente (CPP), ex vi do art.o 74.o, n.o 3, do mesmo Código, a decisão de arbitramento oficioso de indemnização tomada na sentença contravencional condenatória não deixa de ser uma decisão autenticamente civil.
2. É de entender, segundo os cânones vertidos no art.o 8.o, n.o 1, do Código Civil vigente, que a norma do n.o 2 do art.o 390.o do CPP, como respeita material e propriamente à consabida regra da sucumbência, não afasta a aplicabilidade da regra da alçada da parte inicial do n.o 1 do art.o 583.o do actual Código de Processo Civil, pois caso contrário irá haver evidente injustiça processual relativa – não justificável pelo princípio de adesão consagrado no art.o 60.o do CPP nem compaginável com a regra de equivalência de decisões a nível de força do caso julgado a que alude o art.o 73.o do CPP – na questão de alçada do tribunal entre o recurso de decisão proferida em acção cível autónoma ou em separado, e o recurso interposto de decisão cível tomada em sentença penal.
3. Nesses parâmetros, e considerando que o valor económico da relação civil material controvertida entre a empresa arguida ora recorrente e cada uma das duas trabalhadoras reclamantes e como tal configurada no auto de notícia então levantado, ulteriormente convertido em acusação, não é superior à alçada do Tribunal Judicial de Base em matéria civil laboral, ainda que a arguida se sinta concretamente prejudicada pela sentença contravencional condenatória recorrida em valor superior à metade dessa alçada em qualquer das duas quantias indemnizatórias aí judicialmente arbitradas a favor daquelas trabalhadoras, não é de conhecer efectivamente, por efeito do art.º 583.º, n.º 1, parte inicial, do Código de Processo Civil, do recurso na parte respeitante à decisão de arbitramento oficioso de indemnização.
4. Não ocorre o erro notório na apreciação da prova, quando vistos todos os elementos probatórios indicados pelo tribunal a quo no texto da sua sentença como sendo suporte à formação da sua livre convicção sobre a matéria de facto, não se vislumbra ao tribunal ad quem que esse tribunal tenha violado quaisquer regras da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, ou quaisquer normas jurídicas sobre a prova legal, ou ainda quaisquer leges artis no domínio de julgamento de factos, pelo que não pode vir a recorrente, com citação de algum conteúdo de depoimentos de testemunhas de defesa, e ao arrepio do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP, impugnar o resultado de julgamento de factos feito pelo tribunal a quo.
5. A multa cominada na alínea 6) do n.o 1 do art.o 86.o da Lei n.o 7/2008, de 18 de Agosto (Lei das Relações de Trabalho vigente), não é convertível em prisão, quando está em causa uma empresa arguida.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 600/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: B – Gestão Hoteleira, Limitada
(B酒店管理有限公司)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 511 a 519 dos autos de Processo de Contravenção Laboral n.° CR1-12-0014-LCT do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), a arguida B – Gestão Hoteleira, Limitada (B酒店管理有限公司), ficou condenada pela prática de duas contravenções p. e p. pelos art.os 59.º, n.o 1, alínea 2), 62.º, n.º 3, e 85.º, n.º 1, alínea 6), da Lei n.o 7/2008, de 18 de Agosto (a vigente Lei das Relações de Trabalho, doravante abreviada como sendo LRT), em conjugação com o art.o 20.o da Lei n.o 21/2009, de 27 de Outubro (Lei da contratação de trabalhadores não residentes), em MOP23.000,00 (vinte e três mil patacas) de multa por cada, e, em cúmulo, na quantia total de MOP46.000,00 (quarenta e seis mil patacas) de multa, e ainda no pagamento de MOP53.372,40 (cinquenta e três mil, trezentas e setenta e duas patacas e quarenta avos) de indemnização total pecuniária arbitrada oficiosamente a favor das duas trabalhadoras ofendidas chamadas C (C) e D (D) (cabendo a C a quantia de MOP27.804,20, e a D a quantia de MOP25.568,20), com juros legais.
Inconformada, veio a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, na sua essência, o seguinte na sua motivação (apresentada a fls. 525 a 538v dos presentes autos correspondentes), a fim de rogar a sua absolvição da imputada contravenção e do pagamento das quantias indemnizatórias arbitradas oficiosamente na sentença:
– 1) há falta de inquérito no caso dos autos, tal como referida no art.º 106.º, alínea d), do actual Código de Processo Penal (CPP), devido à omissão da descrição, na acusação, de todos os elementos susceptíveis de levar a que a Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL) subsumisse a conduta da ora recorrente ao art.º 85.º, n.º 1, alínea 2), da LRT, omissão essa que, outrossim, em violação do direito de defesa consagrado no art.º 50.º, n.º 1, alínea b), do CPP e no art.º 29.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, impediu a pronúncia da recorrente sobre a globalidade da acusação, designadamente quanto aos elementos subjectivos do tipo contravencional, pelo que a acusação deve ser considerada nula;
– 2) tal como a acusação, também a sentença recorrida é parca sobretudo relativamaente aos elementos subjectivos do tipo contravencional em cuja prática foi condenada a recorrente, não se esclarecendo, pois, se o tipo de ilícito contravencional teria sido praticado a título doloso ou meramente negligente, nem sobre qual o grau de culpa da recorrente, o grau de responsabilidade ou a capacidade económica da recorrente, nem se indicando quais os elementos de prova que permitiriam ao Tribunal a quo concluir como concluiu aquando da decidida condenação e da medida da pena de multa, daí que há manifesta falta de fundamentação na sentença, que constitui nulidade insanável nos termos dos art.os 360.º, alínea a), e 355.º, n.º 2, do CPP;
– 3) não constava da acusação, ao contrário do referido na sentença, qualquer imputação de factos à recorrente que pudessem ser subsumidos à contravenção p. e p. pelo art.º 85.º, n.º 1, alínea 6), da LRT, cuja imputação só veio considerada como possível pelo Tribunal a quo posteriormente à produção da prova na audiência então realizada, tipo contravencional esse que é distinto do constante da acusação e cuja pena pode ser, à luz do art.º 87.º da LRT, convertível em pena de prisão, circunstância essa que já não se verifica em relação ao ilícito contravencional do art.º 85.º, n.º 1, alínea 2), da LRT por que vinha acusada, pelo que a sentença condenatória é nula nos termos do art.º 360.º, alínea b), do CPP, devido ao derespeito do art.º 340.º, n.º 1, do CPP;
– 4) como à recorrente não foi dada a possibilidade de se pronunciar sobre os concretos factos ponderados pelo Tribunal a quo aquando da decisão de arbitramento oficioso de indemnização cível a favor das duas trabalhadoras reclamantes, na medida em que apenas após a fase de produção de prova é que foi notificada da possibilidade de alteração da qualificação jurídica da sua conduta, a sentença deve ser anulada na parte referente à condenação cível, devido à violação do princípio do contraditório;
– 5) o termo “trabalho extraordinário” é um conceito jurídico e conclusivo, e não simples matéria de facto, razão pela qual nunca poderia constar do elenco de factos provados nos autos;
– 6) a prova efectivamente produzida em audiência e relatada na sentença não permitia ao Tribunal a quo concluir pela existência da prestação de qualquer trabalho extraordinário por parte das trabalhadoras reclamantes, posto que, ao contrário do concluído por esse Tribunal, o intervalo para descanso/refeição (que podia ser livremente gozado pelas duas trabalhadoras, as quais, se assim entendessem, poderiam ausentar-se das instalações da recorrente) não pode ser contabilizado no período normal de trabalho de acordo com o disposto no art.º 33.º, n.º 4, a contrario sensu, da LRT, pelo que o período normal de trabalho não sofreu qualquer alteração desde o início da prestação da actividade pelas duas trabalhadoras até ao seu termo, não podendo, pois, ter havido qualquer redução da remuneração;
– 7) ao que acresce que o guia de benefícios (benefit guide), datado de 3/8/2007, e elaborado para o F Resort Hotel, em nada alterou a organização do período de trabalho das duas trabalhadoras;
– 8) face ao exposto, dos elementos juntos aos autos, apenas seria possível ao Tribunal a quo concluir, quanto à matéria de facto, que as duas trabalhadoras: (i) foram contratadas para prestar 48 horas efectivas de trabalho semanal; (ii) sempre estiveram obrigadas a prestar 48 horas efectivas de trabalho semanal, divididas em 8 horas diárias de trabalho efectivo, interrompidas por um intervalo para descanso de 1 hora; (iii) esse intervalo para descanso de 1 hora estava excluído no período normal de trabalho; e (iv) as trabalhadoras sempre foram remuneradas pela prestação de 48 horas de trabalho semanal efectivo;
– 9) deveria, pois, o Tribunal a quo ter-se abstido de dar como provados os factos elencados nos 4.º a 8.º parágrafos de factos provados descritos na sentença, aresto esse, por falta de fundamentação, deve ser declarado nulo, à luz dos art.os 360.º, alínea a), e 355.º, n.º 2, do CPP;
– 10) deveria, ainda, o mesmo Tribunal ter-se abstido de referir que a recorrente agiu livre, voluntária e conscientemente, uma vez que nenhum elemento probatório de ponderação foi indicado para sustentar essa conclusão, encontrando-se, pois, a sentença também ferida de falta de fundamentação na parte em questão, devendo ser declarada nula nessa parte, também nos termos dos art.os 360.º, alínea a), e 355.º, n.º 2, do CPP;
– 11) o Tribunal a quo parece basear todas as conclusões constantes da sentença num equívoco essencial: o de que teria de exitir um guia de benefícios em vigor à data da contratação das duas trabalhadoras. Contudo, na altura em que o F Resort Hotel abriu ao público em 28/8/2007, já estava em vigor o guia de benefícios de 3/8/2007, e o guia de benefícios de 26/12/2006 apenas se aplicava aos trabalhadores do G tal como esclarecido por uma testemunha de defesa ouvida em audiência, tendo até as próprias duas trabalhadoras dito em audiência que não se recordaram se algo lhes teria sido referido, à data da respectiva contratação, sobre o horário ou o período normal de trabalho, e uma outra testemunha de defesa, responsável operacional pelo estabelecimento em que as duas trabalhadoras trabalhavam, depôs no sentido de que os trabalhadores desse estabelecimento eram livres de gozar como entendessem o intervalo para refeição/descanso, ao que acresce, finalmente, que não consta da sentença qualquer análise dos registos de ponto e dos recibos de vencimento das duas trabalhadoras que permitisse ao Tribunal a quo identificar os concretos dias da (suposta) prestação de trabalho extraordinário não remunerado.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público (a fls. 541 a 549) no sentido de improcedência da argumentação da recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 559 a 560v), pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar (em sede do qual se ordenou a notificação da recorrente para se pronunciar sobre a eventualidade de, à luz do art.º 583.º, n.º 1, primeira parte, do vigente Código de Processo Civil (CPC), o seu recurso na parte referente à indemnização não ser conhecido por este TSI, por o valor total de indemnização pecuniária então calculada pela Entidade Autuante (DSAL) como sendo devido pela própria arguida a cada uma das duas trabalhadoras reclamantes não ultrapassar o valor da alçada da Primeira Instância em matéria civil laboral, tendo a recorrente respondido depois a essa questão no sentido de admissão do recurso no seu todo), corridos os vistos, e com audiência feita nesta Segunda Instância, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à solução do recurso:
A) À arguida B – Gestão Hoteleira, Limitada, foi acusada inicialmente a prática de duas contravenções (por diminuição da remuneração de base da parte trabalhadora, no período de 26/4/2010 a 31/8/2010) p. e p. pelos art.os 10.o, alínea 5), e 85.o, n.o 1, alínea 2), da LRT, em conjugação com o art.o 20.o da Lei da contratação de trabalhadores não residentes (Lei n.o 21/2009) (cfr. o teor, ora a fls. 4 a 5, do auto de notícia então levantado pela DSAL contra a arguida, e convertido pelo Ministério Público em acusação por despacho exarado a fl. 430).
B) No auto de notícia levantado pela DSAL, foram imputados essencialmente os seguintes factos em desfavor da arguida:
– as trabalhadoras não-residentes C e D ingressaram igualmente em 16/7/2007 no posto profissional de empregada de mesa, sendo os salários mensais delas igualmente de MOP4.850,00 no período de 16/7/2007 a 31/5/2008, de MOP5.150,00 no período de 1/6/2008 a 30/6/2008, e de MOP5.750,00 no período de 1/7/2008 a 31/8/2010;
– de acordo com o guia de benefícios de trabalhador de categoria F, actualizado em 26/12/2006 pela parte empregadora, foi expressamente estipulado o horário de 48 horas de trabalho semanal (incluindo o tempo para refeição), com 6 dias de trabalho por semana, guia de benefícios esse que já era aplicável aquando do ingresso das referidas duas trabalhadoras como pertencentes ao pessoal de categoria F;
– posteriormente, a parte empregadora, sem ter obtido o consentimento das trabalhadoras, actualizou unilateralmente, em 3/8/2007, o guia de benefícios em causa, alterando o número de horas de trabalho, no sentido de que em vez de “48 horas por semana (incluindo o tempo para refeição)”, passou a ser de “48 horas por semana”, ou seja, as duas trabalhadoras jamais prestavam 7 horas de trabalho por dia com 1 hora para refeição, mas sim prestavam 8 horas de trabalho por dia com 1 hora para refeição. Em face dessa alteração, a parte empregadora continuava a pagar, na mesma, a remuneração de base inicialmente fixada, implicando a redução indirecta da remuneração da parte trabalhadora, e, por outro lado, a parte empregadora não chegou a obter consentimento das trabalhadoras, nem pediu, a propósito disso, autorização à DSAL;
– segundo o mapa de apuramento em anexo, a parte empregadora não pagou ainda a quantia de MOP29.435,00 à trabalhadora C, e a de MOP29.435,00 à trabalhadora D, referente ao período de trabalho desde a data de ingresso profissional delas até 31/8/2010.
C) Na audiência em primeira instância, e após ouvidas as duas trabalhadoras reclamantes e a Senhora Inspectora autora do auto de notícia como testemunhas de acusação e outras duas pessoas como testemunhas de defesa, e vistos os elementos documentais constantes dos autos, o Tribunal a quo procedeu, nos termos analogicamente aplicáveis do art.o 339.o do CPP, à advertência da arguida, representada pela sua Ex.ma Defensora, da eventualidade de alteração da qualificação jurídica dos factos como passando a integrar duas contravenções p. e p. pelos art.os 59.o, n.o 1, alínea 2), 62.o, n.o 3, e 85.o, n.o 1, alínea 6), da LRT, em conjugação com o art.o 20.o da Lei da contratação de trabalhadores não residentes (cfr. o teor da acta de fls. 460 a 462), tendo a arguida exercido o direito de resposta por escrito (a fls. 475 a 476v).
D) Afinal, o Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (originalmente descritos em chinês no texto da sua sentença exarado a fls. 511 a 519, e agora traduzidos para português pelo ora relator), na sua essência, e na parte que ora interessa à solução do recurso:
– a trabalhadora C, possuidora do Título de Identificação de Trabalhador Não-Residente, foi contratada, desde 16/7/2007, pela F, S.A. (F股份有限公司), para desempenhar as funções de empregada de mesa, encontrando-se a trabalhar até 3/1/2012 (cfr. o 1.º parágrafo de factos provados descritos na sentença);
– a trabalhadora D, possuidora do Título de Identificação de Trabalhador Não-Residente, foi contratada, desde 16/7/2007, pela F, S.A. (F股份有限公司), para desempenhar as funções de empregada de mesa, encontrando-se a trabalhar ainda presentemente (cfr. o 2.º parágrafo de factos provados);
– as duas trabalhadoras referidas pertenciam ao grupo de pessoal operacional de categoria F, com 6 dias de trabalho semanal, e 48 horas de trabalho semanal (cfr. o 3.º parágrafo de factos provados);
– no período de 16/7/2007 a 31/8/2010, a F, S.A. e a arguida B – Gestão Hoteleira, Limitada afectaram unilateralmente, sem obtenção do consentimento das duas trabalhadoras referidas, ao trabalho de 9 horas por dia, nelas se incluindo 1 hora como o tempo para refeição, ou seja, as mesmas prestaram, em concreto, 8 horas de trabalho, e tiveram 1 hora para refeição (cfr. o 4.o parágrafo de factos provados);
– a F, S.A., sem obtenção do consentimento das referidas duas trabalhadoras, actualizou unilateralmente, em 3/8/2007, o guia de benefícios do grupo de pessoal operacional de categoria F, alterando o número de horas de trabalho, no sentido de que em vez de “48 horas por semana (incluindo o tempo para refeição)”, passou a ser de “48 horas por semana”, ou seja, o pessoal trabalhador em causa jamais prestavam 7 horas de trabalho efectivo por dia com 1 hora para refeição (cfr. o 5.º parágrafo de factos provados);
– portanto, as duas trabalhadoras referidas, no período de 16/7/2007 a 31/8/2010, trabalharam, em cada dia, mais 1 hora, para além do tempo normal de prestação de trabalho, mas a F, S.A. e a arguida não lhes fizeram aumento salarial em função disso ou não lhes pagaram compensação de trabalho extraordinário (cfr. o 6.º parágrafo de factos provados);
– a F, S.A. e a arguida, a propósito disso, não pediram autorização nem fizeram comunicação à DSAL (cfr. o 7.º parágrafo de factos provados);
– a arguida, até agora, ainda não pagou às duas mencionadas trabalhadoras C e D a compensação pecuniária, na quantia de MOP27.804,20 e na de MOP25.568,20, respectivamente, do trabalho extraordinário do período de 16/7/2007 a 31/8/2010, ao total de MOP53.372,40 (veja-se o mapa de cálculo infra) (cfr. o 8.º parágrafo de factos provados);
– a arguida, ao praticar os actos acima referidos, agiu livre, voluntária e conscientemente (cfr. o 9.º parágrafo de factos provados);
– sabendo claramente que tais actos eram proibidos e puníveis por lei (cfr. o 10.º parágrafo de factos provados);
– a F, S.A., no último trimestre de 2007 (sensivelmente entre Setembro e Dezembro), cedeu a sua posição nos contratos de trabalho das duas trabalhadoras dos autos a favor da B – Gestão Hoteleira, Limitada, o que obteve a autorização do Gabinete para os Recursos Humanos;
– segundo o conteúdo do contrato de trabalho assinado em 15/7/2007 entre a F, S.A. e a trabalhadora C, o horário de trabalho desta trabalhadora era de 48 horas de trabalho por semana, as regalias da trabalhadora eram definidas conforme o guia do pessoal trabalhador em função da categoria profissional e os dados conexos fornecidos, e a remuneração do trabalho extraordinário era calculada ao factor de 1,1;
– segundo o conteúdo do contrato de trabalho assinado em 13/7/2007 entre a F, S.A. e a trabalhadora D, o horário de trabalho desta trabalhadora era de 48 horas de trabalho por semana, as regalias da trabalhadora eram definidas conforme o guia do pessoal trabalhador em função da categoria profissional e os dados conexos fornecidos, e a remuneração do trabalho extraordinário era calculada ao factor de 1,1;
– a trabalhadora D prestou voluntariamente consentimento prévio no sentido de prestar trabalho extraordinário no período de 1/1/2009 a 31/12/2009 (cfr. fls. 491 a 502).
E) O Tribunal a quo, na pagína 4 (a partir da 10.ª linha) e na página 5 (até à 8.ª linha) do texto da sentença, indicou diversos elementos probatórios de suporte à formação da sua convicção sobre a matéria de factos, e explicitou o seu raciocínio na formação dessa convicção.
F) O Tribunal a quo, com base na factualidade provada acima referida, acabou por condenar a arguida pela prática de duas contravenções (por negação do direito da parte trabalhadora à remuneração do trabalho extraordinário), p. e p. pelos art.os 59.o, n.o 1, alínea 2), 62.o, n.o 3, e 85.o, n.o 1, alínea 6), da LRT, em conjugação com o art.o 20.o da Lei da contratação de trabalhadores não residentes (Lei n.o 21/2009, de 27 de Outubro), na pena de MOP23.000,00 de multa por cada, e, em cúmulo, na quantia total de MOP46.000,00 de multa, inconvertível em prisão (por entender que estando em causa uma pessoa colectiva, não se podia converter a multa em prisão – cfr. concretamente as 8.a e 9.a linhas da página 10 da sentença), tendo escrito na sentença os fundamentos jurídicos para essa condenação e a aplicação da respectiva pena (cfr. os capítulos de “Aplicação do Direito” e de “Medida concreta” do texto da sentença).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7/12/2000 no Processo n.o 130/2000, de 3/5/2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17/5/2001 no Processo n.o 63/2001).
Cabe decidir, desde já, da questão de eventual não conhecimento do recurso na parte referente à pretendida absolvição da indemnização pecuniária arbitrada oficiosamente pelo Tribunal a quo a favor das duas trabalhadoras reclamantes.
Pois bem, atento o disposto no art.o 73.o do CPP, ex vi do art.o 74.o, n.o 3, do mesmo Código, é indubitável que a decisão de arbitramento oficioso de indemnização constante da sentença ora recorrida não deixa de ser uma decisão autenticamente civil.
Por outro lado, no acórdão definitivo proferido neste TSI em 26/4/2012 para o Processo n.o 47/2012, já se assumiu o seguinte entendimento jurídico: segundo os cânones vertidos no art.o 8.o, n.o 1, do Código Civil vigente, a norma do n.o 2 do art.o 390.o do CPP, como respeita material e propriamente à consabida regra da sucumbência, não afasta a aplicabilidade da regra da alçada da parte inicial do n.o 1 do art.o 583.o do CPC, pois caso contrário irá haver evidente injustiça processual relativa – não justificável pelo princípio de adesão consagrado no art.o 60.o do CPP nem compaginável com a regra de equivalência de decisões a nível de força do caso julgado a que alude o art.o 73.o do CPP – na questão de alçada do tribunal entre o recurso de decisão proferida em acção cível autónoma ou em separado, e o recurso interposto de decisão cível tomada em sentença penal.
Nesses parâmetros, e considerando que o valor económico da relação civil material controvertida entre a arguida e cada uma das duas trabalhadoras reclamantes e como tal configurada no auto de notícia da DSAL, ulteriormente convertido em acusação, não é superior à alçada do TJB em matéria civil laboral (nota-se que o valor da alçada do TJB nessa matéria é de MOP50.000,00 – art.o 18.o, n.o 1, da vigente Lei de Bases da Organização Judiciária), ainda que a arguida se sinta concretamente prejudicada pela sentença ora recorrida em valor superior à metade dessa alçada em qualquer das duas quantias indemnizatórias aí judicialmente arbitradas a favor daquelas trabalhadoras, não é de conhecer efectivamente, por efeito do art.º 583.º, n.º 1, parte inicial, do CPC, do recurso da arguida na parte respeitante à decisão de arbitramento oficioso de indemnização (consubstanciada em questões colocadas por ela a este respeito, e já referidas, em súmula, na alínea 4) da parte do relatório do presente acórdão de recurso).
Resta, pois, apreciar tão-só as questões postas no recurso atinentes à decisão condenatória contravencional.
Quanto à primeiramente levantada problemática de omissão da descrição de todos os elementos subsceptíveis de levar a que a DSAL subsumisse a conduta da recorrente ao art.º 85.º, n.º 1, alínea 2), da LRT, com alegada relevância para a figura de falta de inquérito, é desnecessário a este TSI investigar sobre isto, porquanto a recorrente acabou por não ser condenada à luz dessa norma jurídica da LRT.
E no concernente à questão de assacada falta de fundamentação da sentença, não deixa de naufragar o recurso nesta parte, posto que visto o teor dessa peça decisória condenatória, a mesma apresenta não só a exposição de motivos de facto e de direito sustentadores da decisão de condenação contravencional e da de medida concreta da pena, como também a indicação de meios de prova de suporte à formação da livre convicção sobre os factos, o que dá para satisfazer a exigência do n.o 2 do art.o 355.o do CPP, sendo de verificar que da matéria de facto nela descrita como provada, resulta que a recorrente praticou o tipo de ilícito contravencional por que vinha condenada a título de dolo directo (por ter agido livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei) e com grau não reduzido de culpa (atendendo à duração não curta da sua conduta contravencional, e ao facto de ela ter procedido até à alteração unilateral, sem acordo da parte trabalhadora nem autorização pela DSAL, do teor do guia de benefícios de trabalhador, a fim de tentar camuflar a sua actuação de não compensar o trabalho extraordinário da parte trabalhadora), por um lado, e, que, por outro, sendo a recorrente gestora nomeadamente do F Resort Hotel, tem naturalmente ela grande capacidade económica. E por aí se vê que as multas aplicadas na sentença já são algo leves para a arguida.
E ante a mesma factualidade provada, é juridicamente mais pertinente a qualificação jurídica dada pelo Tribunal a quo (em sentido convergente, cfr. a posição jurídica vertida no acórdão deste TSI, de 15/12/2011, no Processo n.º 228/2011). Aliás, essa factualidade provada, nos seus traços essenciais, não deixa de condizer com a matéria de facto descrita no auto de notícia levantado pela DSAL, ulteriormente convertido pelo Ministério Público em acusação, daí que não pode ocorrer a situação de que se fala na alínea b) do art.º 360.º do CPP. De facto, o que aconteceu foi apenas uma menos pertinente qualificação jurídica dada pelo Ente Autuante aos factos descritos no auto de notícia ulteriormente convertido em acusação, a qual veio a ser alterada pelo Tribunal a quo com prévia advertência, ordenada nos termos analogicamente aplicáveis do art.º 339.º, n.o 1, do CPP, da recorrente da hipótese dessa alteração, sem nenhuma simultânea alteração substancial dos factos, sendo de notar, outrossim, que o Tribunal a quo já explicou, e bem decidiu, pela impossibilidade legal da conversão em prisão, da multa cominada pelo art.º 85.º, n.º 1, alínea 6), da LRT, pelo que fica prejudicada também a tese da recorrente (segundo a qual a pena aí prevista acarretaria efeitos mais graves do que a multa cominada na alínea 2) do n.º 1 do art.º 85.º da LRT, e haveria que aplicar o art.o 340.o, n.o 1, do CPP).
No tocante ao termo “trabalho extraordinário”, estes dizeres já entraram há muito na linguagem comum e corrente das pessoas leigas desconhecedoras do Direito, e representam uma realidade perceptível total e facilmente pelas mesmas, daí que improcede também a tese da recorrente de que tal termo seria um conceito jurídico ou conclusivo.
E no respeitante ao demais alegado pela recorrente (e já acima sumariado nas alíneas 6) a 11) da parte do relatório do presente aresto), é de ver que toda essa argumentação se destina, ao fim e ao cabo, a sindicar sobretudo o resultado de julgamento da matéria de facto a que chegou o Tribunal a quo.
Entretanto, vistos todos os elementos probatórios indicados por esse Tribunal no texto da sua sentença como sendo suporte à formação da sua livre convicção sobre a matéria de facto, não se vislumbra ao presente Tribunal ad quem que esse Tribunal tenha violado quaisquer regras da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, ou quaisquer normas jurídicas sobre a prova legal, ou ainda quaisquer leges artis no domínio de julgamento de factos, pelo que não pode vir a recorrente, com citação de algum conteúdo de depoimentos de testemunhas de defesa, e ao autêntico arrepio do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP, impugnar o resultado de julgamento de factos feito pelo Tribunal a quo, sendo de realçar, por outro lado, que toda a versão fáctico-jurídica sustentada pela recorrente nessa parte do recurso em questão contraria a matéria de facto já descrita como provada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em não conhecer do recurso da arguida B – Gestão Hoteleira, Limitada, na parte referente à pretendida absolvição das indemnizações pecuniárias arbitradas na sentença recorrida, e negar provimento à restante parte do recurso.
Custas do recurso pela arguida, com vinte e oito UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão às duas trabalhadoras ofendidas e à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais.
Macau, 16 de Maio de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto) (Vencido no que toca à decisão de não conhecimento do recurso do segmento decisório que condenou a recorrente no pagamento de indemnizações, dando aqui como reproduzido o teor da minha declaração de voto que anexei ao Ac. de 26.04.2012, Proc. nº 47/2012).
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