Processo nº 168/2013
(Recurso Cível)
Data: 6/Junho/2013
Assuntos:
- Indemnização pelo divórcio; danos não patrimoniais
SUMÁRIO :
1. Uma coisa são os factos que são fundamento do divórcio e conduzem à dissolução do casal, por culpa porventura exclusiva de um dos cônjuges e outra os factos que são consequência do divórcio. Uns e outros podem originar dois tipos de indemnização: a que promana de cada um dos factos ilícitos isolados, causador de per se de um dano; a que promana da dissolução de um casamento e que esse facto por si ou conjugadamente com outros desencadeia.
2. O cônjuge ofendido pode nem perdoar até ao decretamento do divórcio e nem perdoar nunca ao cônjuge ofensor. Mas pode perdoar-lhe já depois do divórcio, com relevo até em termos morais ou criminais e se a ofensa produziu efeitos civis, arrastando um divórcio, este não deixará de perdurar e ter as suas próprias consequências. Assim se vê que há aqui valores merecedores de diferentes tutelas.
3. Os factos que levam um cônjuge a peticionar o divórcio não são exactamente os mesmos que o levam a peticionar uma indemnização por danos não patrimoniais.
4. Assim se compreende que o pedido da A. cumpre, também, o requisito literal do n.º 1 do artigo 1647.º do Código Civil, isto é, os danos alegados são aqueles que causará o divórcio e não aqueles que conduzem ao mesmo.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º168/2013
(Recurso Civil)
Data : 6/Junho/2013
Recorrente : A
Objecto do Recurso: Decisão que julgou improcedente o pedido de indemnização
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, confrontada com o despacho da Mma Juíza que decidiu julgar improcedente o pedido de indemnização no valor de MOP500.000,00, a título de danos não patrimoniais, pelo divórcio, formulado pela A, ora recorrente, dele vem recorrer, alegando, em suma e em termos úteis:
O douto despacho recorrido fundamentou-se no pressuposto de que os danos alegados pela A já se consumaram aquando da interposição da acção de divórcio litigioso, pois, não se trata de danos que a A irá sofrer com a dissolução do casamento. A lei contempla os danos decorrentes da dissolução do casamento e não os danos decorrentes de factos que servem de fundamento ao divórcio.
A verdade é que a A. fundamenta o seu pedido de indemnização por danos não patrimoniais no facto "dissolução do matrimónio" e não nos factos que levaram a essa dissolução. Esta distinção é absolutamente determinante para se compreender que o Tribunal a quo andou mal quando proferiu o douto despacho recorrido, salvo o respeito devido, que é muito.
É o «pôr fim ao casamento» provocado pelo R. que se deve enquadrar na expressão contida pela dissolução do casal, sendo esta dissolução o resultado final da causa, motivadora do dano que lhe origina e continuará a originar, no futuro, o desgosto de que se queixa e que avalia na petição.
O Tribunal recorrido não procedeu, portanto, a uma correcta apreciação/aplicação do artigo 1647.° ao presente caso, pelo que, deve o douto despacho de fls. 44 a 45 ser revogado.
Nestes termos, conclui deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, revogado o despacho recorrido, com as demais consequências legais, e substituído por outro que determine que o pedido de indemnização por danos não patrimoniais seja conhecido no processo de divórcio litigioso que corre termos pelo 3.° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base.
Foram colhidos os vistos legais.
II - Despacho recorrido
É do seguinte teor o despacho recorrido:
“(…)
Na presente acção de divórcio, a A pede que o R seja condenado ao pagamento de uma indemnização no valor de MOP$500.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Fundamenta o seu pedido nos factos por ela articulados por os mesmos lhe terem causado mágoa, vergonha, desgosto, preocupação e instabilidade psicologia e emocional.
Nos termos do art. 1647.°, n.º 1 do CC: "o cônjuge declarado único ou principal culpado e bem assim, o cônjuge que pediu o divórcio com o fundamento da alíneas c) do art. 1637, deve reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento".
Este preceito legal não pode ser mais claro. Os danos a que ela se refere são apenas os decorrente da dissolução do casamento os quais, por força do disposto no art. 1647.0º, n.º 2 do CC, são obrigatoriamente apreciados no âmbito do processo de divórcio litigioso. Todos os demais, eventualmente existentes, constituem objecto de apreciação autónoma. Com efeito, também assim, entende o Acórdão do STJ, de 5 de Fevereiro de 1985, in BMJ, 344° - 357: "De harmonia com o disposto no art. 1792.º do CC ... na acção de divórcio só pode ser apreciado e decidido o pedido de indemnização por danos patrimoniais causados pela dissolução do casamento. Os danos causados pelos fundamentos do divórcio, como factos ilícitos que são, estão sujeitos ao regime geral da responsabilidade civil, mediante a utilização da via processual comum".
Ora, pela análise dos fundamentos alegados pela A, verifica -se que os alegados danos já se consumaram aquando da interposição da presente acção. Não se trata, pois, de danos que a mesma irá sofrer com a dissolução do casamento.
Nestes termos, julgo improcedente o pedido de indemnização formulado pela A.
Custas pela A.
*
Notifique e D.N. (art. 955.° do CPC). “
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por saber se se deve manter o despacho que julgou improcedente o pedido de indemnização formulado pelo A.
Note-se que não tendo sido um despacho de indeferimento liminar foi um despacho interlocutório proferido em sede do saneador.
2. Afigura-se não assistir razão à Mma Juíza.
A A., ora recorrente, intentou a presente acção de divórcio litigioso, pedindo que fosse decretado o divórcio entre a A e R., declarando-se este como único e exclusivo culpado, com os fundamentos de violação dos deveres conjugais de coabitação, respeito, cooperação e assistência, de forma grave e reiterada (artigos 1533.° e seguintes do Código Civil), mais pedindo a condenação do R. marido a pagar à A. uma indemnização por danos não patrimoniais causados pela dissolução do casamento, no montante de MOP500.000,00 (quinhentas mil patacas) e atribuindo exclusivamente à A. o exercício do poder paternal.
Resulta de uma forma clara que o pedido de indemnização é pelo divórcio, pela dissolução do casamento, pela situação danosa que resulta do facto-divórcio, pelo facto do divórcio autonomamente considerado, ficcionando o legislador uma situação de transtorno, de desgosto, das expectativas criadas, da alteração da situação material, tudo isso abstractamente justificativo de uma indemnização pelo divórcio, independentemente das causas específicas geradoras do divórcio e potenciadoras de danos próprios, concretos e autónomos.
O Tribunal a quo julgou improcedente o pedido relativo à indemnização por danos não patrimoniais formulado pela A., ora recorrente, indicando que os danos alegados pela A. que fundamentam o pedido de indemnização já se consumaram aquando da interposição da acção, pelo que, não se trata de danos que a A. irá sofrer com a dissolução do casamento.
O pedido foi formulado ao abrigo do n.º 1 do artigo 1647.° do Código Civil que dispõe "o cônjuge declarado único ou principal culpado e, bem assim, o cônjuge que pediu o divórcio com o fundamento da alínea c) do art. 1637º devem reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento".
Apreciando esta questão, o Tribunal a quo entendeu que "os danos causados pelos fundamentos do divórcio, estão sujeitos ao regime geral da responsabilidade civil, mediante a utilização da via processual comum, e, pela análise dos fundamentos alegados pela A., verifica-se que os alegados danos já se consumaram aquando da interposição da presente acção. Não se trata de danos que a mesma irá sofrer com a dissolução do casamento".
Isso é verdade, mas não menos é verdade que uns e outros danos são diferentemente protegidos e autonomamente reconhecidos em termos de ressarcibilidade.
3. Isso mesmo não deixou de ser reafirmado em recente acórdão deste Tribunal, processo n.º 45/2013, enquanto ali se disse “Existe um direito de indemnização autónoma pelos danos não patrimoniais em razão da ilicitude dos factos que estiveram na base do divórcio, radicado nos arts. 477º e 489º do C.C. e concedível em acção dedicada a esse fim, e outro que decorre da própria ruptura do casamento alicerçado no art. 1647º do mesmo código, que será reconhecido na própria sentença que o decreta.”
Actualizamos, aliás, o que sobre o assunto já se escreveu no acórdão de 24 de Fev./2011, proc. n.º 217/2011, deste TSI:
“É já doutrina assente que os danos a indemnizar nesta sede são somente os resultantes da dissolução do casamento, o que significa que os danos não patrimoniais causados por factos que alicerçam tal dissolução ou que precedem o divórcio não são contemplados no referido preceito cujo ressarcimento dever ser pedido em acção autónoma com fundamento no art. 477º do CC, citando-se até Jurisprudência pertinente em termos comparados.1
Não vem colocada, embora pertinente, a questão que já se tem posto2 de que antes de ser decretado o divórcio não pode haver danos resultantes da dissolução pela razão simples de que nesse momento o efeito do acto gerador dos mesmos ainda não podia produzir quaisquer efeitos.
Para esta indemnização importa radicar os danos na situação causada por uma situação de ruptura conjugal que levará à dissolução juridicamente decretada, mas já previamente vivida e sentida por um dos cônjuges.
Não interessa argumentar tanto com o facto de a lei contemplar os danos decorrentes da dissolução do casamento e não já os danos decorrentes de factos que servem de fundamento ao divórcio, pois há situações em que a interdependência entre umas causas e as outras não deixa de ser uma realidade.
4. A este propósito acompanha-se o entendimento já sufragado por este Tribunal e na esteira do acórdão do STJ3, que aqui se cita - sempre em termos de Direito Comparado -, segundo o qual não se pode cair numa distinção especiosa, ausente da observação da realidade da vida, isolando a causa do efeito, esperando que este só aconteça, finda definitivamente a acção, e só então se avaliando a existência e a dimensão do dano não patrimonial sofrido pelo outro cônjuge.”
Uma coisa são os factos que são fundamento do divórcio e conduzem à dissolução do casal, por culpa porventura exclusiva de um dos cônjuges e outra os factos que são consequência do divórcio. Uns e outros podem originar dois tipos de indemnização: a que promana de cada um dos factos ilícitos isolados, causador de per se de um dano; a que promana da dissolução de um casamento e que esse facto por si ou conjugadamente com outros desencadeia.
Exemplificando: o homem agride a mulher, esta sofre lesões corporais e tem de ser hospitalizada; há aqui danos passíveis de serem indemnizados. Em consequência disso a mulher pede o divórcio e a dissolução do casamento acarreta desgosto e fá-la sofrer; surge aqui um outra consequência danosa merecedora de reparação.
5. Descendo ao caso concreto.
Para fundamentar o pedido de divórcio, com condenação do R. marido como principal culpado, a A alegou, entre outros:
i) Falta de apoio do R. marido (artigo 7.º da p.i.);
ii) Cessação da comunhão de leito, por culpa do R. marido (artigo 9.º da p.i.);
iii) Abandono da habitação, por parte do R. marido (artigos 10.º e 13.º da p.i.);
iv) O facto de o R. marido ter negligenciado o exercício do poder paternal sobre as suas filhas (artigos 12.º e 14.º da p.i.);
v) Cessação de comunhão de mesa, por culpa do R. marido (artigo 15.º da p.i.);
vi) O facto de o R. marido ter abandonado a habitação e a família em período particularmente difícil, por motivos de saúde, para a A (artigo 16.º da p.i.);
vii) O facto de o R. marido ter agredido a A e a filha de ambos (artigo 17.º da p.i.); e
viii) O facto de o R. marido ter deixado de contribuir financeiramente para a economia familiar (artigo 23.º da p.i.).
No entanto, não é por nenhum destes factos que a A entende dever ser indemnizada nos termos do n.º 1 do artigo 1647 do Código Civil.
Para fundamentar o seu direito ao ressarcimento por danos não patrimoniais nos termos da disposição acabada de citar, a A alegou, entre outros:
i) Desgosto que lhe causará a consumação do divórcio (artigo 38.º da p.i.);
ii) Vexame social que sofrerá quando estiver em situação de divórcio (artigo 40.º da p.i.);
iii) O facto de que a A, divorciada, doente e com duas filhas, não terá oportunidades para reconstruir a sua família (com uma figura parental) e perderá a família que todos nós, socialmente integrados, desejamos, ou seja, já não poderá contar com o Pai das suas Filhas no seio da família (artigo 41.º e 42.º da p.i.); e
iv) A angústia que sofrerá por envelhecer sem o Pai das suas Filhas (artigo 43.º da p.i.).
Todos estes danos acabados de elencar serão sofridos pela A. desde que seja decretado o divórcio, por efeito deste, ainda que por vezes não seja facilmente dissociável o facto gerador do divórcio do facto-divórcio. O cônjuge ofendido pode nem perdoar até ao decretamento do divórcio e nem perdoar nunca ao cônjuge ofensor. Mas pode perdoar-lhe já depois do divórcio, com relevo até em termos morais ou criminais e se a ofensa produziu efeitos civis, arrastando um divórcio, este não deixará de perdurar e ter as suas próprias consequências. Assim se vê que há aqui valores merecedores de diferentes tutelas.
Os factos que levam um cônjuge a peticionar o divórcio não são exactamente os mesmos que o levam a peticionar uma indemnização por danos não patrimoniais.
Assim se compreende que o pedido da A. cumpre, também, o requisito literal do n.º 1 do artigo 1647.º do Código Civil, isto é, os danos alegados são aqueles que causará o divórcio e não aqueles que conduzirem ao mesmo.
6. Estamos, pois, em condições de entender e enquadrar o pedido formulado, como danos causados pelo divórcio, com efeitos próprios, devidamente identificados e autónomos dos factos que motivaram o pedido de divórcio.
Tanto quanto baste para considerar o pedido atendível, não merecedor de uma decisão de improcedência como a que sobreveio nos autos, devendo estes prosseguir para conhecimento do mesmo.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento ao recurso, e, revogando a decisão recorrida, determina-se a admissibilidade do pedido, devendo os autos prosseguir para conhecimento do mesmo.
Sem custas por não serem devidas.
Macau, 6 de Junho de 2013,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Ac. STJ de 28/5/98, in BMJ, n.° 477, pg 521; Ac. STJ de 13/3/85, in BMJ, n.° 345, pg. 414
2 - Ac. TSI 248/2005, de 19/1/06
3 - Ac. STJ, proc. 02B4593, de 30/1/2003, http://www.dgsi.pt
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168/2013 1/13