Processo n.º 574/2012 Data do acórdão: 2013-5-16 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– art.o 73.o do Código de Processo Penal
– art.o 74.o, n.o 3, do Código de Processo Penal
– arbitramento oficioso de indemnização
– decisão civil
– sentença contravencional condenatória
– art.o 390.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
– erro notório na apreciação da prova
– Lei das Relações de Trabalho
– Lei n.o 7/2008
– art.o 87.o da Lei n.o 7/2008
– pessoa colectiva
– conversão da multa contravencional em prisão
– art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da Lei n.o 7/2008
– falta de pagamento de remuneração de trabalho extraordinário
S U M Á R I O
1. Atento o disposto no art.o 73.o do Código de Processo Penal vigente (CPP), ex vi do art.o 74.o, n.o 3, do mesmo Código, a decisão de arbitramento oficioso de indemnização tomada na sentença contravencional condenatória não deixa de ser uma decisão autenticamente civil.
2. Como essa decisão cível, que condenou a empresa ora arguida no pagamento de uma indemnização pecuniária a favor da parte trabalhadora ofendida, não é desfavorável à própria arguida recorrente em valor pecuniário superior à metade da alçada do Tribunal Judicial de Base em matéria civil laboral, não é de conhecer do recurso da arguida na parte tangente à peticionada absolvição da indemnização (cfr. o art.o 390.o, n.o 2, do CPP).
3. Não ocorre o erro notório na apreciação da prova, quando vistos todos os elementos probatórios indicados pelo tribunal a quo no texto da sua sentença como sendo suporte à formação da sua livre convicção sobre a matéria de facto, não se vislumbra ao tribunal ad quem que esse tribunal tenha violado quaisquer regras da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, ou quaisquer normas jurídicas sobre a prova legal, ou ainda quaisquer leges artis no domínio de julgamento de factos, pelo que não pode vir a recorrente, com citação de algum conteúdo de depoimentos de testemunhas de defesa, e ao arrepio do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP, impugnar o resultado de julgamento de factos feito pelo tribunal a quo.
4. Não sendo a arguida recorrente uma pessoa física ou singular, mas sim uma pessoa colectiva, não lhe é aplicável o instituto de conversão da multa contravencional em prisão de que se fala no art.o 87.o da Lei n.o 7/2008, de 18 de Agosto (Lei das Relações de Trabalho vigente) (LRT).
5. Incorre na contravenção laboral p. e p. pelo art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da LRT, com referência aos art.os 59.o, n.o 1, alínea 2), e 62.o, n.o 3, da mesma Lei, a conduta da empresa recorrente de falta de pagamento atempado da parte de remuneração de base devida à parte trabalhadora, in casu concretamente correspondente a um certo período de tempo, por dia, de trabalho extraordinário prestado fora do tempo normal de trabalho.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 574/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A, S.A. (A股份有限公司)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 97 a 100v dos autos de Processo de Contravenção Laboral n.° CR3-11-0054-LCT do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), a arguida A, S.A. (A股份有限公司), ficou condenada pela prática, de forma continuada, de uma contravenção p. e p. conjugadamente pelos art.os 10.o, alínea 1), e 85.o, n.o 1, alínea 2), da da Lei n.o 7/2008, de 18 de Agosto (a vigente Lei das Relações de Trabalho, doravante abreviada como sendo LRT), em MOP23.000,00 (vinte e três mil patacas) de multa, e no pagamento de MOP9.125,00 (nove mil, cento e vinte e cinco patacas) de indemnização pecuniária à trabalhadora ofendida B, com juros legais desde a data da sentença até integral pagamento.
Inconformada, veio a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, na sua essência, o seguinte na sua motivação (apresentada a fls. 109 a 124 dos presentes autos correspondentes, e ulteriormente rectificada, através de fl. 126, de dois lapsos de escrita), a fim de rogar a sua absolvição da imputada contravenção e do pagamento da quantia indemnizatória arbitrada oficiosamente na sentença:
– 1) o Tribunal a quo não procedeu à prévia comunicação da arguida, da possibilidade de a matéria de facto que da acusação constava e que do julgamento resultou provada vir a ser qualificada não como uma contravenção, inicialmente acusada, à alínea 5) do art.o 10.o da LRT, mas uma contravenção à alínea 1) do mesmo artigo, omissão de comunicação essa que, inexistindo entre essas duas contravenções qualquer relação de especialidade ou de consunção, privou a arguida da possibilidade de preparar atempadamente a sua defesa adequada, e violou, assim, o plasmado no n.o 1, parte final, do art.o 339.o do Código de Processo Penal de Macau (CPP), pelo que a sentença recorrida deverá ser revogada, nos termos do art.o 360.o, alínea b), do CPP;
– 2) a arguida foi condenada pela prática de uma contravenção, por se ter oposto a que a trabalhadora exercesse os seus direitos, ou a ter prejudicado pelo exercício desses direitos, mas não resulta claro da sentença quê tipo de direito(s) se terá oposto a que a trabalhadora exercesse;
– 3) o Tribunal a quo entendeu, sem sustentação factual suficiente, que a trabalhadora, de 23/8/2007 a 30/6/2010, teria prestado 8 horas de trabalho por dia (excluindo 1 hora de intervalo para descanso/refeição), quando deveria ter prestado 8 horas de trabalho por dia, incluindo 1 hora remunerada de intervalo para descanso/refeição, tal como acontecera desde o dia 23/7/2007 a 2/8/2007. Entretanto, esse entendimento assenta na conclusão (errónea e sem qualquer sustentação) de que o previsto no guia de benefícios de 26/12/2006 deveria prevalecer sobre um contrato de trabalho válido e eficazmente celebrado entre a arguida e a trabalhadora como fruto da manifestação de vontade de ambas;
– 4) com efeito, de acordo com a prova produzida em sede de julgamento, não estavam à disposição do Tribunal a quo elementos probatórios bastantes que lhe permitisse concluir como concluiu erroneamente, no sentido de que o guia de benefícios, de 26/12/2006, seria aplicável à trabalhadora, ou sequer, que esse documento fora entregue a esta aquando da celebração do respectivo contrato de trabalho;
– 5) deveria, pois, o Tribunal a quo ter-se abstido de dar como provada a correspondente factualidade constante do 2.o parágrafo de factos provados, devendo a sentença ser declarada nula nessa parte, à luz dos art.os 360.o, alínea a), e 355.o, n.o 2, do CPP, por falta de fundamentação;
– 6) de facto, dos elementos juntos aos autos, apenas seria possível concluir que a trabalhadora: (i) fora contratada para prestar 48 horas efectivas de trabalho semanal; (ii) sempre prestou 48 horas efectivas de trabalho semanal, divididas em 8 horas diárias de trabalho efectivo, com um intervalo para descanso de 1 hora, desde o primeiro ao último dia de relação laboral que manteve com a arguida; (iii) poderia ausentar-se do local de trabalho durante o período de descanso diário de 1 hora para uma refeição; e (iv) sempre foi remunerada pela prestação de 48 horas de trabalho semanal efectivo;
– 7) assim, face à factualidade efectivamente apurada, o período de descanso diário de 1 hora gozado pela trabalhadora não deveria ser contabilizado no período normal de trabalho, sendo de concluir que a trabalhadora sempre trabalhou 8 horas diárias e 48 horas semanais, conforme estabelecido no respectivo contrato de trabalho ao qual se vinculou de sua livre vontade, não tendo havido qualquer redução, ainda que indirecta, da remuneração da trabalhadora com o guia de benefícios de 3/8/2007;
– 8) o guia de benefícios de 3/8/2007 não alongou, de facto, a prestação de trabalho efectiva da trabalhadora, limitando-se a organizar os intervalos de descanso e a reflectir a realidade do Departamento onde se encontrava inserida a trabalhadora reclamante;
– 9) não houve alteração unilateral, feita pela arguida, do período diário de trabalho;
– 10) nem há lugar ao pagamento de qualquer montante à trabalhadora, uma vez que, de acordo com as disposições normativas aplicáveis, apenas o trabalho que fosse prestado para além do seu período normal (i.e., das 48 horas semanais) poderia ser considerado, e não ficou demonstrado que a trabalhadora tenha, alguma vez, prestado actividade não compensada para além do limite desse limite.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público (a fls. 128 a 131) no sentido de improcedência da argumentação da recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 143 a 145v), pugnando também pela improcedência do recurso, para além de suscitar a alteração da qualificação jurídica dos factos provados em primeira instância conforme o entendimento vertido no acórdão do TSI no Processo n.o 228/2011, no sentido de se passar a condenar a arguida pela prática de uma contravenção p. e p. pelos art.os 59.o, n.o 1, 62.o, n.o 3, e 85.o, n.o 1, alínea 6), da LRT.
Por despacho do relator (de fl. 157), foi ordenada a notificação da arguida para se pronunciar, em dez dias, “sobre a eventual alteração da qualificação jurídica dos factos provados em primeira instância como integrando a autoria material, por ela, na forma continuada, de uma contravenção p. e p. pelo art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da Lei das Relações de Trabalho (Lei n.o 7/2008, de 18/8), por falta de pagamento atempado da parte de remuneração de base devida à trabalhadora dos autos (“in casu”, concretamente correspondente a uma hora, por dia, de trabalho extraordinário prestado fora do tempo normal de trabalho (cfr. os art.os 59.o, n.o 1, alínea 2), e 62.o, n.o 3, da mesma Lei))”.
Veio responder a arguida (a fls. 159 a 160v), nuclearmente nos seguintes termos: sendo a contravenção do art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da LRT distinta da inicialmente acusada, com efeitos sancionatórios mais graves para a arguida (pois a multa é convertível em prisão conforme estipulado no art.o 87.o da LRT), a condenação em sede da dita contravenção da alínea 6) iria acarretar o derespeito do art.o 340.o, n.o 1, do CPP e a nulidade prevista no art.o 360.o, alínea b), do CPP, para além de constituir uma violação inaceitável das garantias de defesa, sendo certo que do processo nem constam factos susceptíveis de subsunção a essa contravenção.
Concluído o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência feita nesta Segunda Instância (em sede da qual ficou a arguida advertida também da eventualidade de o seu recurso na parte referente à pretendida absolvição da quantia indemnizatória por que vinha condenada em primeira instância não ser conhecido por este TSI, por o montante por que vinha condenada não ultrapassar a metade da alçada do TJB em matéria cível laboral, tendo a arguida declarado que prescindia do prazo para resposta a essa questão), cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à solução do recurso:
A) No auto de notícia então levantado (em chinês) pela DSAL contra a arguida ora recorrente A, S.A., foram imputados essencialmente os seguintes factos (cfr. o teor desse auto, a fls. 4 a 5):
– a trabalhadora B foi contratada pela arguida para no período de 23/7/2007 a 30/6/2010, trabalhar como empregada de limpeza de loiças;
– os salários mensais dessa trabalhadora foram de MOP6.000,00 no período de 23/7/2007 a 31/5/2008, e de MOP6.360,00 no período de 1/6/2008 a 30/6/2010;
– de acordo com o guia de benefícios de trabalhador de categoria F, actualizado em 26/12/2006 pela parte empregadora, foi expressamente estipulado o horário de 48 horas de trabalho semanal (incluindo o tempo para refeição), com 6 dias de trabalho por semana, guia de benefícios esse que já era aplicável aquando do ingresso da referida trabalhadora como pertencente ao pessoal de categoria F;
– posteriormente, a parte empregadora, sem ter obtido o consentimento da trabalhadora, actualizou unilateralmente, em 3/8/2007, o guia de benefícios em causa, alterando o número de horas de trabalho, no sentido de que em vez de “48 horas por semana (incluindo o tempo para refeição)”, passou a ser de “48 horas por semana”, ou seja, a trabalhadora jamais prestava 7 horas de trabalho por dia com 1 hora para refeição, mas sim prestava 8 horas de trabalho por dia com 1 hora para refeição. Em face dessa alteração, a parte empregadora continuava a pagar, na mesma, a remuneração de base inicialmente fixada, implicando a redução indirecta da remuneração da parte trabalhadora, e, por outro lado, a parte empregadora não chegou a obter consentimento da trabalhadora, nem pediu, a propósito disso, autorização à DSAL;
– segundo o mapa de apuramento em anexo, a parte empregadora não pagou ainda a quantia de MOP31.286,00 à trabalhadora.
B) A DSAL imputou, pois, à arguida a prática, de forma continuada, de uma contravenção (por diminuição da remuneração de base da parte trabalhadora) outrora referida no art.o 9.o, n.o 1, alínea d), do Decreto-Lei n.o 24/89/M, de 3 de Abril, e presentemente p. e p. pelos art.os 10.o, alínea 5), e 85.o, n.o 1, alínea 2), da LRT (cfr. o teor do mesmo auto de notícia, convertido pelo Ministério Público em acusação por despacho exarado a fl. 74).
C) Posteriormente, no início da audiência de julgamento realizada em primeira instância (em sede da qual vieram depor a trabalhadora ofendida e o Senhor Inspector autor do auto de notícia como testemunhas de acusação, e três pessoas como testemunhas de defesa), o Tribunal a quo autorizou o pedido do Ministério Público, e sem oposição da defesa, de aditamento do seguinte à matéria fáctica inicialmente acusada (cfr. o teor da acta lavrada a fls. 95 a 96v):
– a arguida sabia claramente as disposições legais, e mesmo assim praticou os factos acusados de modo livre, voluntário e consciente;
– a arguida sabia claramente que a sua conduta seria punida por lei.
D) Afinal, no texto da sentença proferida (a fls. 97 a 100v), o Tribunal a quo fixou a seguinte matéria de facto (originalmente escrita em chinês):
– como factos provados:
– a trabalhadora B foi contratada pela arguida para no período de 23/7/2007 a 30/6/2010, trabalhar como empregada de limpeza de loiças; os salários mensais foram de MOP6.000,00 no período de 23/7/2007 a 31/5/2008, e de MOP6.360,00 no período de 1/6/2008 a 30/6/2010 (cfr. o 1.o parágrafo de factos provados descritos na sentença);
– segundo o contrato assinado entre a parte empregadora e a trabalhadora referida, esta pertencia ao pessoal de categoria F, e começou a trabalhar pela parte empregadora no dia 23/7/2007, tendo sido estipulado no contrato que a trabalhadora podia gozar dos benefícios correspondentes à sua categoria profissional. E conforme o guia de benefícios de trabalhador, actualizado pela parte empregadora em 26/12/2006, o horário de trabalho para o pessoal trabalhador de categoria F era de “8 horas de trabalho por dia e 48 horas de trabalho por semana (incluindo o tempo para almoço)”, condição de trabalho essa que já era conhecida pela trabalhadora aquando do seu ingresso profissional (cfr. o 2.o parágrafo de factos provados);
– posteriormente, a parte empregadora, sem ter obtido o consentimento da trabalhadora, actualizou unilateralmente, em 3/8/2007, o guia de benefícios em causa, alterando o número de horas de trabalho, no sentido de que em vez de 48 horas por semana (incluindo o tempo para refeição), passou a ser de “48 horas por semana”. Sob afectação pela parte empregadora, a trabalhadora trabalhava 8 horas por dia e tomava refeição por 1 hora, mas a parte empregadora continuava a pagar, na mesma, a remuneração de base inicialmente fixada (cfr. o 3.o parágrafo de factos provados);
– a parte empregadora não chegou a obter consentimento da trabalhadora, nem pediu autorização à DSAL (cfr. o 4.o parágrafo de factos provados);
– a arguida praticou os actos acima referidos de modo livre, voluntário e consciente, sabendo claramente que a sua conduta era proibida por lei (cfr. o 5.o parágrafo de factos provados);
– (e a respeito da matéria alegada na contestação da arguida): a parte empregadora não obrigou o pessoal trabalhador a permanecer no local de trabalho durante o tempo para almoço; a trabalhadora, dentro de uma hora para almoço, tinha total liberdade para dispor desse tempo; a trabalhadora parava de trabalhar no tempo de uma hora para almoço, e apenas voltava ao posto de trabalho depois de decorrida essa uma hora; o tempo de trabalho efectivamente prestado pela trabalhadora por dia não ultrapassava 8 horas;
– e como factos não provados:
– desde o ingresso profissional em 23/7/2007, a trabalhadora trabalhava 9 horas por dia;
– o guia de benefícios de 26/12/2006 não é aplicável à trabalhadora;
– a parte empregadora nunca chegou a entregar à trabalhadora o guia de benefícios de 26/12/2006.
E) O Tribunal a quo, nas 7.a a 8.a linhas da pagína 3 do texto da sentença, explicou que o seu julgamento sobre os factos foi feito depois de analisados detalhadamente e considerados os elementos documentais constantes dos autos e os depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência.
F) O Tribunal a quo, com base na factualidade acima julgada, acabou por materialmente condenar a arguida pela prática, de forma continuada, de uma contravenção, p. e p. conjugadamente pelos art.os 10.o, alínea 1), e 85.o, n.o 1, alínea 2), da LRT, na pena de MOP23.000,00 de multa, e no pagamento, a favor da trabalhadora ofendida, de MOP9.125,00 de indemnização pecuniária, arbitrada oficiosamente, com juros legais desde a data da sentença até integral pagamento, tendo chegado a tecer (no último parágrafo da página 4 ao 1.o parágrafo da página 5 do texto da sentença, e originalmente em chinês), na sua essência, as seguintes razões jurídicas para explicar a dita condenação contravencional: Ponderados em global os factos provados acima referidos, o Tribunal entende que a parte empregadora, ao ter alterado a inicial condição de trabalho de 8 horas (incluindo o tempo para refeição) para 8 horas (sem inclusão do tempo para refeição), praticou acto de redução de condição de trabalho da trabalhadora, ou seja, impediu a trabalhadora de exercer o direito, conferido pelo contrato, de tomar refeição dentro do período de 8 horas de trabalho.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7/12/2000 no Processo n.o 130/2000, de 3/5/2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17/5/2001 no Processo n.o 63/2001).
Cabe decidir, desde já, da questão de eventual não conhecimento do recurso na parte referente à pretendida absolvição do pagamento da indemnização pecuniária arbitrada oficiosamente na sentença.
Pois bem, atento o disposto no art.o 73.o do CPP, ex vi do art.o 74.o, n.o 3, do mesmo Código, é indubitável que a decisão de arbitramento oficioso de indemnização constante da sentença ora recorrida não deixa de ser uma decisão autenticamente civil.
E como essa decisão cível, que condenou a arguida no pagamento de MOP9.125,00 a favor da trabalhadora ofendida, não é desfavorável à própria arguida em valor pecuniário superior à metade da alçada do TJB em matéria civil laboral (nota-se que o valor da alçada do TJB nessa matéria é de MOP50.000,00 – art.o 18.o, n.o 1, da vigente Lei de Bases da Organização Judiciária), não é de conhecer efectivamente, nos termos do art.o 390.o, n.o 2, do CPP, do recurso em causa na parte tangente à peticionada absolvição da indemnização pecuniária (cfr. os argumentos aduzidos pela recorrente a este respeito, e já acima referidos, em súmula, na alínea 10) da parte I do presente acórdão de recurso).
Resta, pois, apreciar tão-só as questões postas no recurso atinentes à decisão condenatória contravencional.
A arguida suscitou a falta de fundamentação da sentença.
Contudo, para o presente Tribunal ad quem, os elementos supra referidos na parte II deste acórdão já demonstram que o Tribunal a quo não violou o seu dever processual de fundamentação, quer fáctica quer jurídica, da sua decisão condenatória, nomeadamente exigido no art.o 355.o, n.o 2, do CPP, sendo de realçar que esse mesmo Tribunal já afirmou expressamente na parte da fundamentação jurídica da sua sentença, que considerou que a arguida, em face da factualidade provada, impediu a trabalhadora ofendida de gozar do seu direito, como uma condição de trabalho, de tomar refeição durante o período de 8 horas de trabalho, pelo que não pode vir a recorrente defender agora que não resulta claro da sentença quê tipo de direito se terá posto a que a trabalhadora exercesse.
E no que a todo o remanescentemente alegado pela recorrente para se insurgir contra o julgamento de factos feito pelo Tribunal a quo diz respeito (cfr. um conjunto de considerações por ela tecidas a este respeito e já sobretudo referidas, em súmula, nas alíneas 3) a 5) da parte I do presente acórdão de recurso), é de verificar que, ao fim e ao cabo, quis ela apontar materialmente ao Tribunal a quo o cometimento de erro notório na apreciação da prova.
Entretanto, vistos todos os elementos probatórios indicados por esse Ente Julgador no texto da sua sentença como sendo suporte à formação da sua livre convicção sobre a matéria de facto, não se vislumbra a esta Instância de recurso que esse Tribunal tenha violado quaisquer regras da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, ou quaisquer normas jurídicas sobre a prova legal, ou ainda quaisquer leges artis no domínio de julgamento de factos, pelo que não pode vir a recorrente, com citação de algum conteúdo de depoimentos de testemunhas de defesa, e ao autêntico arrepio do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP, impugnar o resultado de julgamento de factos feito pelo Tribunal a quo.
Estando válido o resultado de julgamento de factos a que chegou o Tribunal a quo, é tempo de decidir da possibilidade, ou não, de alteração oficiosa da qualificação jurídica dos factos provados em primeira instância.
Dos elementos pertinentes já acima elencados na parte II do presente aresto de recurso, decorre, com nitidez, que não houve nenhuma alteração substancial dos factos (em desfavor da arguida) entre a versão fáctica acusada e a versão fáctica finalmente assente na sentença. Aliás, toda a factualidade provada, nos seus termos essenciais, condiz com a matéria de facto imputada à recorrente no auto de notícia levantado pela DSAL, ulteriormente convertido pelo Ministério Público em acusação, daí que não pode ocorrer a situação de que se fala na alínea b) do art.º 360.º do CPP.
Assim sendo, não pode a recorrente invocar o art.o 340.o do CPP para se opor à possibilidade de este TSI proceder oficiosamente à eventual alteração da qualificação jurídica dos factos provados, sendo de notar que a norma do art.o 87.o da LRT também não tem a pretendida virtude de abonar a posição da recorrente, porquanto independentemente de demais indagação por desnecessária, não sendo ela uma pessoa física ou singular, mas sim uma pessoa colectiva, naturalmente nunca lhe seria aplicável o instituto de conversão da multa contravencional em prisão.
Tendo sido já concedido à recorrente o prazo de dez dias para exercer o seu direito ao contraditório quanto à eventual alteração da qualificação jurídica dos factos provados nos termos opinados no despacho do relator de fl. 157, encontrou-se assim tutelado processualmente o seu direito de defesa nos termos analogicamente aplicáveis do art.o 339.o, n.o 1, do CPP, daí que já não há nada a obstar à possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos provados.
Pois bem, juridicamente falando, afigura-se mais pertinente considerar que a recorrente praticou, em autoria material, e de forma consumada e continuada, uma contravenção (da qual era ofendida a trabalhadora B), p. e p. pelo art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da LRT, por falta de pagamento atempado da parte de remuneração de base devida a essa trabalhadora, concretamente correspondente a uma hora, por dia, de trabalho extraordinário prestado fora do tempo normal de trabalho, inicialmente aplicável à trabalhadora (cfr. os art.os 59.o, n.o 1, alínea 2), e 62.o, n.o 3, da mesma Lei) – e em sentido convergente, cfr. a posição jurídica vertida no acórdão do TSI, de 15/12/2011, no Processo n.º 228/2011.
Do até agora analisado e concluído, decorre necessariamente também precludida ou prejudicada toda a restante argumentação fáctica e jurídica da recorrente (e já acima referida, em súmula, nas alíneas 6) a 9) da parte I do presente acórdão de recurso).
E como os termos jurídicos para os quais este Tribunal ad quem acaba de operar a nova qualificação jurídica dos factos provados divergem, real e inclusivamente, da qualificação jurídica dada pelo Tribunal a quo aos mesmos factos provados, já não é mister conhecer aqui da questão de violação do art.o 339.o, n.o 1, parte final, do CPP, assacada primeiramente pela arguida na sua motivação de recurso.
Por fim, no tocante à medida da pena correspondente à contravenção laboral acima finalmente constatada, prevista pelo art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da LRT como punível com multa de MOP20.000,00 a MOP50.000,00, é de aplicar, vistas todas as circunstâncias fácticas apuradas em primeira instância e sob a égide dos critérios da medida da pena definidos nomeadamente no art.o 65.o do Código Penal vigente, MOP32.000,00 de multa em princípio.
Entretanto, por força do princípio da proibição da reforma para pior em caso de recurso só interposto pela pessoa arguida, e não existindo nos autos elementos que possam levar a conclurir pelo melhoramento superveniente sensível da situação económico-financeira da arguida recorrente (cfr. o art.o 399.o, n.o 2, alínea a), parte final, do CPP, a contrario sensu), é de tomar a multa de MOP23.000,00 aplicada na sentença recorrida como sendo a multa da acima visada contravenção efectivamente cometida pela arguida.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em não conhecer do recurso da arguida A, S.A., na parte referente à pretendida absolvição da indemnização pecuniária, julgar improcedente o seu pedido absolutório contravencional, e passar a condenar a arguida como autora material, na forma consumada e continuada, de uma contravenção p. e p. pelo art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da Lei n.o 7/2008, de 18 de Agosto (com referência aos art.os 59.o, n.o 1, alínea 2), e 62.o, n.o 3, da mesma Lei), na multa de MOP32.000,00 (trinta e duas mil patacas), multa essa que, atento o art.o 399.o, n.o 1, do Código de Processo Penal vigente, fica reduzida à multa de MOP23.000,00 (vinte e três mil patacas) já aplicada na sentença recorrida.
Custas do recurso pela arguida, com vinte e duas UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão à trabalhadora ofendida e à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais.
Macau, 16 de Maio de 2013.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_______________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 574/2012 Pág. 1/20