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Proc. nº 243/2013
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 06 de Junho de 2013
Descritores:
-Contrato laboral
-Resolução
-Justa causa
-Art. 68º, nº2, da Lei nº 7/2008
-Confiança


SUMÁRIO:

I- A noção de “justa causa” edificada em redor de factos e circunstâncias graves que tornem praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho não pode ser apenas densificada através de um juízo de prognose a efectuar pelo empregador, mas também pode ser analisada e sindicada pelo tribunal em cada caso concreto. Isto é, cabe ao tribunal através de critérios objectivos apreciar da existência dos factos e da sua subsunção ao conceito de impossibilidade da subsistência da relação de trabalho.

II- A quebra da confiança do empregador no trabalhador pode fazer ruir o suporte psicológico inerente à existência da relação laboral.

III- Entre os critérios da quebra da confiança podem avultar a perda de autoridade, a imagem da empresa perante os outros trabalhadores, e isso pode ser caracterizado não só pela ofensa dos deveres principais do trabalhador, como pelo desrespeito pelos deveres acessórios e secundários, desde que relacionados de algum modo com o vínculo contratual.

IV- Se a entidade patronal tiver invocado essas razões para a resolução, é indispensável que os respectivos factos sejam levados à base instrutória a fim de que deles tenha ela oportunidade de fazer a respectiva prova.




Proc. nº 243/2013

Acordam no Tribunal de Segunda Instância de RAEM

I - Relatório

A, de nacionalidade chinesa, titular de BIR nº 1XXXXX(o), com domicílio na XX, edif. “XX”, Bloco XX, XXº andar, “XX”, na Taipa, moveu no TJB acção laboral com processo ordinário contra “Venetian Macau S.A.”, sua ex-entidade patronal, pedindo a condenação desta no pagamento de uma indemnização pelos danos sofridos em consequência de um despedimento sem justa causa de que diz ter sido vítima.
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Na oportunidade, foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente provada e procedente e, em consequência disso, condenou a ré a pagar ao autor a indemnização global de Mop$ 161.600,00 e juros legais.
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Irresignada, a ré recorre jurisdicionalmente para este TSI, tendo nas respectivas alegações formulado as seguintes conclusões:
«A. Nos termos do artigo 430.º, nº2 do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 1.º do CPT, o despacho proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final.
B. A Recorrente alegou, na Contestação, factos que eram relevantes segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que não foram levados em conta na elaboração da base instrutória, mesmo após a reclamação que, para o efeito, a Recorrente apresentou.
C. Deverá o aditamento de tais factos ser deferida, ordenando-se a repetição do julgamento para sobre eles se fazer prova.
D. O comportamento do Recorrido, consubstanciado nos factos dados como provados, traduziu-se numa actuação ilícita e culposa, desleal e desonesta em si mesma, relevante do quadro da justa causa.
E. A gravidade do comportamento do Recorrido é maior, atento o cargo de director associado que ocupava.
F. O concreto cargo ocupado pelo Recorrido, sendo director associado do sector de compras e abastecimentos, obrigava-o a uma probidade e honestidade acima de qualquer suspeita, não lhe bastando ser honesto, probo e diligente para poder desempenhar as funções que lhe estavam cometidas, devendo sê-lo acima de qualquer suspeita.
G. A conduta do Recorrido é, atentas todas as circunstâncias, gravíssima, tendo, ao nível das suas consequências, minado a autoridade da Recorrente e causado a quebra da confiança necessária à subsistência da relação laboral.
H. O comportamento do Recorrido violou, grave e culposamente, o dever de lealdade previsto no artigo 11.º, nº 1 parágrafo 5) da LRT, sendo contrária aos regulamentos em vigor na empresa da Recorrente, por esta aprovados e postos em vigor ao abrigo do seu poder de direcção, conforme dispõe o artigo 5.º da LRT.
I. O autor deve obediência a tais regulamentos e, em particular, no que toca ao presente caso, ao “Team Member Parking at the Venetian Macao-Resort-Hotel”, por força do disposto no artigo 11.º, nº 1, parágrafos 4) e 9) da LRT.
J. Os deveres do trabalhador estão listados no artigo 11º da LRT.
K. O incumprimento baseado no comportamento ilícito e culposo do trabalhador tanto pode proceder do desrespeito dos deveres principais, de deveres secundários ou de deveres acessórios de conduta, deduzidos do princípio geral da boa fé no cumprimento das obrigações acolhido no nº 2 do artigo 752.º do CC e reiterado no artigo 7.º da LRT.
L. Entre eles figura o dever de guardar lealdade ao empregador, referindo o parágrafo 5) do nº 1 do artigo 11.º apenas um afloramento do dever de lealdade, como flui do termo “nomeadamente” aí utilizado.
M. O requisito da impossibilidade da subsistência do vínculo laboral deve ser reconduzido à ideia de inexigibilidade, para a outra parte de manutenção do contrato, e não apreciado como impossibilidade objectiva.
N. Existe impossibilidade prática de subsistência da relação laboral quando se esteja perante uma situação de quebra de confiança entre trabalhador e empregador, que seja susceptível de criar no espírito deste a dúvida sobre a ideoneidade futura da conduta daquele.
O. Violados os referidos deveres de obediência e lealdade, a conduta do Recorrido gerou fundadas dúvidas sobre a idoneidade da sua prestação futura, inquinando fatalmente o suporte psicológico em que assentava a relação fiduciária do empregador, a quem não é exigível, por isso a manutenção do vínculo.
P. No presente caso existiu uma quebra de confiança e os factos são de tal modo graves que tornaram impossível a subsistência da relação de trabalho, verificando-se, pois, a existência de justa causa para a resolução do contrato, nos termos do artigo 68.º da LRT.
Q. O único facto dado como provado para determinação do montante a atribuir a título de danos morais foi o de que “O despedimento provocou ao A. um forte abalo psicológico”.
R. O conceito de “forte abalo psicológico” é uma conclusão sem qualquer suporte factual e revela-se muito curto para se determinar a atribuição de qualquer quantia a título de indemnização por danos morais.
S. A sentença recorrida violou as normas ínsitas no artigo 430.º, nº 1, do CPC, nos artigos 5.º, 7.º, 11.º, nº 1 parágrafos 4), 5) e 9) da LRT e nos artigos 489.º, nº 1, e 752.º, nº 2, do CC.
Termos em que deve o presente recurso se julgado procedente:
a) Baixando-se o processo ao Tribunal a quo para repetição do julgamento, no que respeita aos novos factos a introduzir na base instrutória; ou, caso assim não se entenda,
b) Considerando-se que existiu justa causa na resolução do contrato e absolvendo-se o Recorrente de todos os pedidos; ou, caso assim não se entenda,
c) Considerando-se que nenhuma quantia deve ser atribuída a título de danos não patrimoniais».
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O autor da acção respondeu ao recurso, concluindo as suas alegações pelo modo que segue:
«I - São irrelevantes (pelas razões acima aduzidas e que se dão aqui por integralmente reproduzidas), quer por se tratar de factos aos quais o douto tribunal a quo deu já resposta, ou por serem redundantes ou inúteis, os quesitos que a recorrente pretende levar à Base Instrutória, pretensão essa que não deverá ser acolhida;
II - O recorrido foi admitido ao serviço da recorrida em 16 de Fevereiro de 2004, primeiro como fiscal do sector de produtos alimentares, depois, sucessivamente e com breves intervalos entra cada uma delas, promovido às categorias de gerente-regional, gerente-superior e director-associado do departamento de compras e abastecimentos, ao longo dos 5 anos e meio que trabalhou para a sua entidade patronal, a ora recorrente;
III - Os cargos exercidos na conclusão que precede foram-no sempre com a maior lisura e competência, razão pela qual o seu desempenho profissional, classificado de EXCEPCIONAL em 2009 (ano imediatamente anterior ao seu despedimento), foi continuadamente tido em alta consideração pela sua entidade patronal, a ora recorrente;
IV - A própria recorrente assim o atesta ao reconhecer a honestidade, probidade e diligência do ora recorrido;
V - A recorrente, ao tentar sustentar a tese de que o despedimento do ora recorrido foi feito com justa causa, afirma nas suas doutas alegações (cfr. págs. 6 e 7 das mesmas), que “Qualquer desvio às regras específicas do departamento de compras e abastecimentos é susceptível de causar gravíssimos danos à empresa, tanto a nível patrimonial como a nível do seu bom nome e reputação” (sublinhados e negritos nossos). Porém, o que está em causa nos presentes autos não é qualquer desvio às regras específicas do departamento de compras e abastecimentos mas, como se referiu já, trata-se apenas de um incumprimento das regras respeitantes ao estacionamento das viaturas dos funcionários da empresa no parque público da mesma, não tendo tal facto qualquer conexão com o departamento de compras e abastecimentos de que o requerente, ora recorrido, era director-associado;
VI - Importa sublinhar que, nesse departamento, o desempenho profissional do requerente, ora recorrido, se revelou sempre impecável, circunstância que a própria recorrente reconhece, ao referir a honestidade, probidade e diligência do ora recorrido;
VII - Nem a recorrente ousou apontar-lhe, no desempenho das funções exercidas no departamento de compras e abastecimentos, quaisquer irregularidades que, essas sim, pudessem ter afectado o bom nome e reputação da entidade patronal;
VIII - Não alcança, pois, o ora recorrido, em que termos a questão que subjaz ao seu despedimento (ou seja, o uso do parque de estacionamento ao arrepio do respectivo regulamento), pode causar gravíssimos danos à danos à empresa, nem como tal se poderá repercutir a nível do seu bom nome e reputação...
IX - A apontada irregularidade no uso do parque de estacionamento público da ora recorrente, referida em V supra, constituiu mera desculpa para se “descartar” do ora recorrido, tal como aconteceu, de resto, embora sob pretextos diferentes, com muitos outros funcionários da recorrida, tidos como afectos à administração substituída;
X - A prática dessa irregularidade, imputada ao ora recorrido, verificava-se já desde data anterior a Março de 2008, data em que foi divulgado o primeiro regulamento (tanto quanto o recorrido conhece) sobre a utilização do parque de estacionamento;
XI - Apesar de tal prática ser do conhecimento da ora recorrida, como bem o demonstra a matéria alegada nos artigos 12º e 13º da sua contestação, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, só em Junho de 2009 - após a substituição da administração da entidade patronal - esta decidiu recolher “provas” para levar a cabo o “saneamento” do recorrido;
XII - Nada permite inferir - muito menos afirmar - que o recorrido, por ter cometido a referida irregularidade (que se consubstanciava, em última análise, em estacionar mais perto do local de trabalho e, consequentemente, aumentar o seu rendimento ao serviço da recorrente) passaria, sem mais, a cometer falcatruas no departamento de compras e abastecimentos...
XIII - Trata-se duma extrapolação inaceitável, perfeitamente abusiva, que não pode ser acolhida;
XIV - A punição a que foi sujeito o ora recorrido - a mais gravosa de entre a panóplia das sanções ao dispor da entidade patronal, ora recorrente - não merece ser sufragada, uma vez que na sua aplicação foram completamente desprezados os princípios do contraditório, da razoabilidade e da proporcionalidade, princípios estes que enformam qualquer sistema sancionatório;
XV - O comportamento do recorrido poderá configurar uma mera irregularidade, por violação das normas de utilização do parque de estacionamento da entidade patronal, sem lhe poder ser conferida, todavia, a virtualidade de fundamento bastante para um despedimento com justa causa;
XVI - Os factos referidos em III e VI supra, a todos os títulos brilhantes e sem qualquer mácula, não podiam ser esquecidos e deviam ser tomados em consideração na formulação do juízo quanto ao perfil moral do recorrido e da sua futura actuação;
XVII- Ao contrário do que a recorrente afirma, não foram violadas quaisquer normas legais, designadamente os artºs 430º, nº 1 do C.P.C., 5º, 7º, 11º, nº 1, parágrafos 4), 5) e 9) da L.R.T, e, ainda, 489º, nº 1 e 752º, nº 2, ambos do C.C.; a douta sentença recorrida fez boa interpretação e aplicação do Direito, bem como administração de sã justiça, pelo que deverá ser integralmente confirmada.
Termos em que,
Deverá o presente recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida».
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
***
II - Os Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
«O A. foi admitido na empresa R. em 16/02/2004, com a categoria de fiscal (controller) do sector de produtos alimentares (Food & Beverage), auferindo um salário mensal de MOP$27.500,00 (vinte e sete mil e quinhentas patacas). (A)
   Com efeitos a partir de 1 de Setembro de 2006, foi promovido a gerente regional do sector de compras, nível C1 (Regional Procurement Manager of Regional Procurement Department, Job Grade C1), com um vencimento mensal de MOP40.000,00 (quarente mil patacas), conforme o teor da cópia da carta da empresa R. enviada ao A. em 11 de Setembro de 2006 cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (doc. 1) (B)
   O A. foi elevado à categoria de gerente superior regional do sector de compras (Senior Regional Procurement Manager of Regional Procurement Department), com um vencimento mensal de MOP$48.000,00 (quarenta e oito mil patacas), conforme o teor da cópia da carta da empresa R. enviada ao A. em 20 de Junho de 2007 cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (doc. 2) (C)
   Com efeitos a partir de 1 de Março de 2009, foi o A. promovido a director associado do sector de compras e abastecimentos, nível C1 (Associate Director of Procurement and Supply Chain, Job Grade C1), com um salário mensal de MOP61.600,00 (sessenta e uma mil e seiscentas patacas), conforme o teor da cópia da carta da empresa R. enviada ao A. em 19 de Março de 2009 cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (doc. 3) (D)
   O A. sempre foi um funcionário cujo desempenho profissional a empresa R. tinha em alta consideração (E)
   O qual é classificado de EXCEPCIONAL (outstanding), conforme o teor da cópia do respectivo formulário da empresa R. cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (doc. 5) (F)
   Pelo convite que lhe foi endereçado, em meados de Junho de 2007, pela empresa R., para integrar um programa especial de incentivo profissional, equivalente a 6 meses de salário correspondente ao vencimento que auferisse em 30 de Junho de 2010, pagável em Julho de 2010, conforme o teor da cópia da carta da empresa R. enviada ao A. em 16 de Junho de 2007 (G)
   Por carta datada de 11 de Julho de 2009, a empresa R. decidiu terminar o contrato de trabalho com o A., a Ré comunicou ao Autor, que o despedia porque utilizou repetidamente um cartão que lhe não pertencia, assim utilizando o parque de estacionamento do público durante as horas de serviço e usando um esquema para fugir ao pagamento do custo de estacionamento, bem sabendo que esta conduta violava os regulamentos da empresa e que não tinha direito a estacionar no parque de estacionamento do público, conforme o teor da cópia da carta de despedimento da empresa R. enviada ao A. em 11 de Julho de 2009. (3º e 35º)
   Sendo que o regulamento de que o A. tem conhecimento versar sobre tal matéria, datado de 1 de Março de 2008, é o que consta da cópia cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (doc. 7 junto com a petição inicial). (5º)
   Que consagra o direito que os funcionários da R. têm de estacionar as suas viaturas nas instalações da R., regulamente esse que se aplica aos trabalhadores da R. cujo nível (Job Grade) das funções desempenhadas ao serviço da R., esteja compreendido entre “A” e “D2”. (6º)
   Sendo que, desde 1 de Setembro de 2006, o nível atribuído ao ora A. é “C1”., nível esse que lhe confere o direito a usar o parque de estacionamento que a R. disponibiliza aos seus trabalhadores. (7º)
   Nos termos da cláusula 9. do contrato de trabalho celebrado entre as partes: o presente Contrato pode ser resolvido por qualquer das partes desde que, para o efeito, a resolução seja comunicada por escrito com uma antecedência mínima de 1 (mês) ou, em sua substituição, fazendo-se o pagamento equivalente a 1 (um) mês de vencimento. (10º)
   O A., que era bem considerado no meio da empresa. (14º)
   Respeitado por superiores, colegas e subordinados. (15º)
   O despedimento provocou ao A. um forte abalo psicológico. (17º)
   Atenta a, sua categoria (C1 desde 1 de Setembro de 2006), o Autor não tinha direito a usar gratuitamente o parque estacionamento público da Ré. (19º)
   O superior hierárquico do Autor, B, tinha direito a estacionar no parque de estacionamento do público, porque detinha a categoria B1. (20º)
   Foi a B atribuído o cartão n.º 3178, ao qual foi associado o veículo com matricula a MK-8X-XX. (21º)
   Na sequencia da investigação foram apurados os seguintes factos:
   No dia 8 de Junho de 2009:
   12:00 um Toyota bronze com matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   19:07 um BMW ciano com a matrícula MN-5X-XX saiu do parque de estacionamento com o cartão n.º 3178, tendo o condutor entregue posteriormente o cartão a um terceiro;
   19:10 um Mazda preto com a matrícula MM-9X-XX saiu do parque de estacionamento com o cartão n.º 3178;
   19:45 o Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente. (22º)
   No dia 9 de Junho de 2009:
   08:31 Um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX entrou no parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   08:37 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   12:44 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   17:31 um BMW ciano com a matrícula MN-5X-XX saiu do parque de estacionamento. Um terceiro apareceu, abriu a porta com o cartão n.º 3178 e foi-se embora;
   19:06 um Nissan Branco com a matrícula MM-7X-XX saiu do parque de estacionamento. Um terceiro apareceu, abriu a porta com o cartão n.º 3178 e foi-se embora;
   19:40 um Mazda preto com a matrícula MM-9X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178;
   20:44 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente. (23º)
   No dia 10 de Junho de 2009:
   08:14 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX entrou no parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   08:19 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   12:58 um BMW ciano com a matrícula MN-5X-XX saiu do parque de estacionamento usando o cartão n.º 3178. De seguida, deixou o cartão que foi usado pelo condutor do carro seguinte;
   12:58 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 que lhe foi deixado pelo condutor anterior;
   18:14 um Nissan Branco com a matrícula MM-7X-XX saiu do parque de estacionamento. Um terceiro apareceu, abriu a porta com o cartão n.º 3178 e foi-se embora;
   22:15 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178, entregando-o depois a um terceiro. (24º)
   No dia 11 de Junho de 2009:
   00:31 um Mazda preto com a matrícula MM-9X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178;
   08:37 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   08:50 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX entrou no parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   19:04 um Nissan Branco com a matrícula MM-7X-XX saiu do parque de estacionamento usando o cartão n.º 3178, tendo depois entregue o mesmo a um terceiro;
   19:14 um BMW ciano com a matrícula MN-5X-XX saiu do parque de estacionamento. Um terceiro usou o cartão n.º 3178 para que ele pudesse sair e foi-se embora;
   19:39 um Mazda preto com a matrícula MM-9X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178;
   19:58 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente; (25º)
   No dia 12 de Junho de 2009:
   08:26 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX entrou no parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   08:31 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   12:28 um Mazda preto com a matrícula MM-9X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178; de seguida deixou o cartão para que o próximo condutor o pudesse usar;
   12:28 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 que lhe foi deixado pelo condutor anterior;
   13:23 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX entrou no parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   18:17 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor deixado o cartão n.º 3178 para que o próximo condutor o pudesse usar;
   18: 17 um Mazda preto com a matrícula MM-9X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 deixado pelo condutor anterior. (26º)
   No dia 15 de Junho de 2009:
   08:27 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX entrou no parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   08:34 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   12:03 um Mazda preto com a matrícula MM-9X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 que entregou depois a um terceiro;
   13: 14 um Toyota bronze com a matrícula MK-8X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 normalmente;
   17:25 um BMW ciano com a matrícula MN-5X-XX saiu do parque de estacionamento, tendo o condutor usado o cartão n.º 3178 que entregou a um terceiro. (27º)
   O veículo com a matricula MK-8X-XX estava registado em nome de C, e era usado por B. (28º)
   O veículo MN-5X-XX era usado por A, ora Autor; o veículo MM-9X-XX era usado por E, “Procurement Manager”; o veículo MM-7X-XX era usado por D, “procurement Officer”. (29º)
   O Autor, E e D eram todos subordinados de B. (30º)
   Nos termos do “Team Member Parking at the Venetian Macao Resort-Hotel”, documento junto pelo Autor à p.i. com o n.º 7: “Para não afectar os espaços de estacionamento disponíveis para os hóspedes, os membros da equipa sem direito a estacionamento não podem estacionar no Estacionamento dos hóspedes Sena o estiverem em serviços. (31º)
   O acesso ao parque de estacionamento do público, pelos funcionários que a ele tenham direito, é feito através do uso de um cartão. (32º)
   A avalização da alínea F) foi feita por B, superior hierárquico do Autor. (33º)».
***
III - O Direito
1 – O caso
O autor da acção, aqui recorrido, era funcionário da ré “Venetian”, ora recorrente, desde 16/02/2004. Com uma rápida ascensão profissional, em 1 de Março de 2009 fora promovido a director associado do sector de compras e abastecimentos, com um salário mensal de Mop$61.600,00 (al. d) da especificação). Tratava-se de um empregado que detinha o nível C1 desde 1 de Setembro de 2006 (resposta ao quesito 7º) e que, pelo seu desempenho profissional, a empresa ré tinha em alta consideração (al. E), da especificação e resposta ao quesito 14º), considerando-o “excepcional” (al. f) da especificação).
Mas, porque este empregado repetidamente utilizava, para aparcamento automóvel, o cartão nº 3178 que não lhe pertencia, utilizando o parque de estacionamento destinado ao público durante as horas de serviço, a entidade patronal enviou-lhe uma carta de despedimento em 11 de Julho de 2009 (resposta ao quesito 3º e 35º).
O veículo atribuído ao autor era um BMW com a matrícula MN-5X-XX (resposta ao quesito 29º); o cartão nº 3178 pertencia a B, ao qual estava associado o veículo de marca Toyota com a matrícula MK-8X-XX (resposta aos quesitos 21º e 28º). B era superior hierárquico do autor da acção (resposta ao quesito 30º) e tinha direito a estacionar no parque de estacionamento público, por deter a categoria B1 (resposta ao quesito 20º).
A empresa despediu o trabalhador por considerar que este uso do parque de estacionamento pelo autor era inapropriado, na medida em que, podendo embora usar do direito de estacionar a viatura em local disponibilizado para os seus trabalhadores, já não o podia fazer no espaço destinado ao estacionamento público. Tratou-se, para a empregadora, de uma actuação que violava os seus regulamentos internos e com o objectivo de fugir ao pagamento da taxa devida.
*
2 – A sentença
A sentença deu por provado que o autor:
a) Não tinha direito a usar o parque estacionamento público da Ré;
b) Usava o cartão de estacionamento de outrem para a ele ter acesso.
E depois asseverou: “O Tribunal entende que, apesar de tal conduta do Autor ser inadequada, esta não se trata de qualquer facto ou circunstância grave que torne praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, nem prejudica de forma grave o interesse da empresa, pelo que não constitui justa causa para a resolução do contrato (artigo 68º, nº2, da Lei nº 7/2008) ” (negrito nossos).
*
3 – O recurso jurisdicional
3.1 – Da matéria de facto
Pretende em primeiro lugar a recorrente, e ao abrigo do art. 430º, nº3 do CPC, chamar a atenção para a circunstância de haver matéria de facto que deveria ter sido levada à base instrutória. Trata-se de factualidade que por não ter integrado aquela peça foi objecto de reclamação, a qual, porém, mereceu despacho de indeferimento, contra o qual agora se rebela.
Que factos são esses, i.é., o que pretendia a recorrente que se quesitasse?
O primeiro (art. 33º da B.I.), teria a seguinte redacção:
«O Autor estava bem ciente da política da Ré no que respeita à utilização do parque de estacionamento do público e mesmo assim actuou intencional e conscientemente contra tal política?»
O segundo (art. 36º da B.I.), apresentaria o seguinte teor:
«O Autor utilizou o parque de estacionamento público sem pagar a respectiva taxa de utilização?».
O último (37º, da B.I.) apresentaria a seguinte redacção:
«Com a conduta descrita do Autor, a autoridade e política da empresa foram minadas e a sua imagem ficou afectada perante os respectivos trabalhadores?».
*
3.1.1 - Comecemos, então, pelo primeiro.
Com ele pretende a recorrente fazer ver quão o autor da acção estava consciente da natureza reservada ao público (logo, não indiferenciada e não livre) do espaço de estacionamento que ele utilizava e quão ele ofendia a “política” da empresa sua entidade patronal.
Cremos, ainda assim, que essa matéria não alteraria o rumo da decisão da causa, uma vez que a factualidade que foi levada ao questionário da Base Instrutória seria suficiente para revelar o conhecimento por parte do autor da impossibilidade de utilizar o espaço de estacionamento destinado ao público. Efectivamente, ele não o podia usar gratuitamente, tal como decorre da formulação da pergunta do ponto 19º da B.I. e como ainda emerge da matéria quesitada no ponto 31º da mesma peça. Aliás, se ele detinha a categoria C1 desde 1/09/2006, isso apenas lhe permitia usar um espaço específico destinado pela “Venetian” aos seus próprios trabalhadores (quesitos 6º e 7º), o que não era o caso.
Portanto, o que se pretendeu desvendar e aquilo que se conseguiu efectivamente apurar não carecia de outros adicionais elementos para expor o tribunal perante a evidência do conhecimento que o autor da acção tinha da impossibilidade de utilizar um local de estacionamento que estava dedicado ao público e que, excepcionalmente, só podia ser utilizado pelos trabalhadores da empresa que detivessem pelo menos a categoria B1 (quesito 20º). Era, aliás, por essa mesma razão que ele, autor, se servia do cartão do seu superior hierárquico (que detinha, efectivamente, a categoria B1) para, dessa maneira ardilosa e com a conivência aparente do seu titular, ocupar um espaço que sabia ser destinado a outros destinatários.
De resto, o teor do pretendido quesito, nalguns aspectos, salvo melhor opinião, é vago demais para ser objecto de pergunta, sendo que eventual resposta positiva pouco préstimo haveria de fornecer ao desfecho da causa. Realmente, haverá a recorrente de concordar que a sua “política no que respeita à utilização do parque de estacionamento do público” não tem necessariamente um significado unívoco e consensual. O que quer a ré dizer, verdadeiramente, com essa “política”? Era uma “política” de tolerância zero? Uma “política” que não pactuava com ofensa aos valores da “verdade”, “boa fé” e da “confiança”? Embora não seja difícil adivinhar qual seja o sentido imanente do vocábulo no caso concreto, o certo é que o tribunal só pode operar com factos precisos e não com conceitos vagos e indeterminados. O que significa que nunca uma resposta afirmativa “tout court” a esse eventual quesito poderia trazer nenhum aporte relevante à tese da recorrente.
Daí que nesta parte não mereça provimento o recurso.
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3.1.2 – Com o segundo quesito pretendia a recorrente demonstrar que o recorrido “utilizou o parque de estacionamento público sem pagar a respectiva taxa de utilização”.
Ora, conquanto possamos compreender a recorrente neste particular aspecto, ainda assim a matéria apurada transmite-nos com suficiente clareza e sossego o que naquele pretenso quesito estaria em causa: que afinal de contas a conduta do empregado causou prejuízo à empresa. Isso extrai-se da articulação dos artigos da base instrutória que visavam o apuramento das condições em que o empregado utilizou um espaço que era destinado ao público pagante. Basta olhar para a resposta aos quesitos 6º, 7º e 19º para logo ser entendido que o autor não podia utilizar de forma gratuita o parque de estacionamento destinado ao público em geral.
Uma resposta a um eventual quesito com tal formulação não seria mais do que um reforço de uma ideia que já transparece, até mesmo expressamente, da resposta a outros. E por isso não se justifica a procedência do recurso com vista a um desenvolvimento processual cujo resultado se sabe de antemão qual é, mas cujo efeito nada vem acrescentar ao que foi já processualmente adquirido.
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3.1.3 – Com a matéria do pretendido quesito 37º tudo muda. O que a recorrente queria era trazer aos autos uma situação que, uma vez provada, revelaria judicialmente um quadro fáctico que a exporia a um juízo de censura interna com afectação da sua autoridade e imagem enquanto empresa perante os seus próprios empregados.
Ora, esta matéria não é inerte, nem neutra do ponto de vista do desvalor que pretende judicialmente denunciar. Quer dizer, não é indiferente que o empregador seja contemporizador com actuações dos seus empregados que atinjam a sua imagem e a sua autoridade perante estes ou que, diferentemente, seja implacável perante eles. Ou seja, não se pode dizer que “tanto faz” que o empregador seja uma ou outra coisa. E se um empregador quer provar em tribunal que não é insensível à situação descrita no pretendido quesito, que não quer deixar que a sua imagem e sentido de autoridade sejam tocados, então tem o tribunal que franquear-lhe as portas, possibilitando-lhe o exercício desse direito.
Mas, para se atingir a compreensão da importância desta questão, recentremos o problema sob dois diferentes ângulos. Duas perspectivas para o mesmo caso, duas leituras para a mesma situação.
Numa certa perspectiva, poderia dizer-se, como o fez a sentença, de resto, que uma actuação como a que este empregado registou de forma repetida, afinal de contas, é ilícita (a sentença considerou-a “inadequada”), mas não grave. E se não é grave, não pode tornar praticamente “impossível a subsistência da relação laboral”. Por conseguinte, não estaria preenchido o requisito do art. 68º, nº2 da Lei nº 7/2008 e, consequentemente, não se aceitaria o despedimento (resolução) com esse argumento. Isto pode até ser dito de outra maneira. É esta: como pode um patrão deitar pela “porta fora” um funcionário tão competente, com um desempenho profissional tido em tão “alta consideração” (al. E) dos factos assentes), tão “excepcional” (al. F) dos factos assentes)?! A mais-valia profissional do empregado e a sua dedicação ao serviço deve sobrepor-se ao desvalor reduzido da sua actuação nalgum aspecto desligado da função. Bem, sendo assim, se um empregado contribui desta forma eficiente para o sucesso da empresa para a qual labora, e se o seu “pecado” foi o de simplesmente utilizar um espaço para aparcamento que era destinado ao público pagante, então o grau de censura acerca da sua actuação não poderia ter sido elevado e a situação não constituiria justa causa de resolução, face ao que consta do art. 68º citado.
Numa segunda perspectiva, a conclusão parece tomar outro rumo. Estar-se-á aí, efectivamente, perante um plano inclinado que faz descer o desvalor da actuação para níveis insuportáveis. Podíamos introduzi-la do seguinte modo, a partir da óptica do empregador: Porque terá assim agido o patrão, abrindo mão de um empregado com um tal mérito profissional? Veja-se a posição do empregador. Pensemos na imagem de incerteza e indecisão que isso transmitiria a todo o “staff”de colaboradores da empresa. Com que poderes de autoridade esta, enquanto entidade patronal, se imporia daí em diante perante os colegas daquele? Em que circunstâncias exerceria ela os poderes de direcção e autoridade conferidos pelo art. 2º, 1), da referida Lei?
A partir desta, digamos virtual, posição, pensamos ser possível construir uma ideia mais axiomática da solução. Pois bem. Do que se trata é de admitir que a noção de justa causa edificada em redor de factos e circunstâncias graves que tornem praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho não pode ser apenas densificada através de um juízo de prognose a efectuar pelo empregador, mas também pode ser analisada e sindicada pelo tribunal em cada caso concreto. Isto é, cabe ao tribunal apreciar da existência dos factos e da sua subsunção ao conceito de impossibilidade da subsistência da relação de trabalho (em direito administrativo e no plano do direito comparado, ver, a propósito, os Acs. do STA de 30/11/94, Proc. Nº 032 500; ver ainda o Ac. do STA de 05/05/87, Proc. Nº 024 090).
Ora, antes de tudo, olhando para a norma do nº2, do art. 68º, é preciso que o facto ou circunstância sejam “graves” e só depois se deve ir em busca da quebra da confiança, tão presente quão necessária, entre empregador e trabalhador, ao ponto de não mais ser possível, ou ser “praticamente impossível” a subsistência da relação de trabalho.
Todavia, para se atingir esse grau de insubsistência da relação deve fazer-se uma busca assente num juízo de prognose estruturada em critérios objectivos e não fundada em meros juízos subjectivos da entidade empregadora. Permitir-se que a densificação fosse feita apenas pela empregadora abriria a porta a toda a espécie de atropelos e abusos por parte do elemento mais forte da relação, acolheria decisões arbitrárias e suspeitas de perseguição e “desembaraço”, o que iria contra a matriz e fundamento do direito laboral. Daí que se entenda, na senda da mais moderna jurisprudência, que na caracterização daquele juízo de prognose se leve em consideração apenas o empregador normal, com a sagacidade, experiência e senso atribuíveis a um bom pai de família, a fim de, com essa parametricidade, se saber se ele (empregador normal), em face das condições que levaram o empregador a tomar a medida disciplinar em concreto e objecto de análise, também a tomaria (Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 1991, 460 e sgs). Somente quando for possível efectuar um juízo que aponte, de todo, para uma inexigibilidade na manutenção da fidúcia requerida pela relação laboral é que se poderá concluir pela adequação e proporcionalidade da medida desvinculativa (Mário Pinto, Furtado Martins e Nunes de Carvalho, Comentário às Leis do Trabalho, I, 1994, 135).
Não está em causa, bem entendido, uma impossibilidade material da relação1, mas uma impossibilidade prática de manutenção do vínculo laboral traduzida numa inexigibilidade jurídica apurada em função do balanço concreto dos interesses em presença: o interesse da urgência da desvinculação e o interesse da conservação do vínculo (neste sentido, Bernardo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, Verbo, 2.ª edição, pag. 491 e seguintes e Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 14.ª edição, pag. 589).
Será de concluir que há justa causa quando o interesse da emergência do despedimento prevalece sobre as garantias do despedido, o que acontecerá quando o suporte psicológico inerente à relação laboral ruir ou deixe de existir, ou seja, quando deixem de verificar-se as condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura que implica mais ou menos frequentes e intensos contactos entre os sujeitos (Monteiro Fernandes, ob. cit. pag. 591). «O que significa a referência legal à “impossibilidade prática” da subsistência da relação de trabalho – é que a continuidade da vinculação representaria (objectivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador» e que as circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações (pessoais e patrimoniais) que ele supõe seria de molde a ferir de modo desmesurado e violento a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do empregador» (Monteiro Fernandes, ob. e loc. cits.).
É, pois, imperioso que em cada caso se faça uma análise dos factos e das circunstâncias atendíveis, sem deixar de se considerar que a referida inexigibilidade surge apontada ao suporte psicológico do vínculo. E aqui chegados, sempre se poderia enveredar pelo caminho da jurisprudência mais intolerante com os comportamentos que traduzam uma quebra da confiança que o empregador tenha no trabalhador, mesmo em caso, por exemplo, de furtos ou desvio de valores, por muito insignificantes que sejam. Mas, por outro lado, também se não pode cair no extremo oposto, tolerando o tribunal aquilo que o empregador não tolera no quadro da sua autoridade, no âmbito da sua relação com o trabalhador, no plano da avaliação do que é ou não aceitável para si. Ou seja, é preciso concluir em concreto que a «conduta do trabalhador provocou a ruptura do contrato por se ter tornado impossível manter a relação laboral, impondo-se que a ruptura seja irremediável em virtude de não haver outra sanção susceptível de sanar a crise aberta com a conduta do trabalhador», já que a situação será de «impossibilidade prática de subsistência da relação laboral quando se esteja perante uma situação de quebra de confiança entre trabalhador e empregador, que seja susceptível de criar no espírito deste a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele, estando portanto o conceito de justa causa ligado à ideia de inviabilidade do vínculo contratual, correspondendo a uma crise extrema e irreversível do contrato» (Acórdão do STJ, de 21 de Março de 2012, proferido na revista 196/09.6TTMAI.P1-S1- 4.ª).
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3.1.3.1 - Regressemos ao caso.
Claro está que a noção de gravidade do facto ou das circunstâncias, neste sentido, não se deve reduzir a critérios puramente económicos, patrimoniais ou materiais2, senão também deve ser preenchido com recurso aos valores em jogo no caso concreto. Se a valorização fosse desencadeada a partir de factores de quantificação de um prejuízo simplesmente económico, estamos certos que a “Venetian” nunca iria tratar o seu excelente empregado como o causador do “grande mal” financeiro à empresa. Mesmo que a situação detectada tivesse vindo a ocorrer desde há longo tempo, estamos convictos que o prejuízo sofrido pela empresa não haveria de ser assim tão grande e as consequências da acção haveriam de ser tão perniciosas. Basta pensar na hipótese de nem sempre o parque automóvel destinado ao público estar com a lotação completa. E tendo isso por plausível, então a ocupação de um lugar de aparcamento público pelo recorrido não levaria a empresa, pensamos nós, a sofrer uma significativa perda de rendimento. Isto é o que conjecturamos. Mas, ainda que se verificasse o contrário, isto é, admitindo que o parque público estivesse sempre repleto, a perda do rendimento provocado pela ocupação abusiva do seu empregado talvez não fosse caso de se traduzir num enorme prejuízo a uma empresa com esta tão grande dimensão. É o que cogitamos, mais uma vez apoiados em factores de relativismo.
Portanto, não é tanto a dimensão do dano que serve de refúgio e fundamento à decisão, mas outros valores podem estar em causa, tais como a noção de “perda de face”, a ideia de quebra de autoridade da entidade patronal perante todos os seus empregados, a consciência de ela ter nas suas fileiras alguém muito competente, mas insubmisso às regras regulamentares internas. No limite, a concessão de uma desculpabilização que ela pudesse ter para com a atitude do seu empregado podia, inclusive, ser vista pela maioria dos restantes empregados como uma cedência discriminatória (discriminação positiva) do patrão em relação a uma pessoa em particular, o que também não seria frutuoso para a paz social no interior da empresa.
É, por conseguinte, uma ideia de rigor e disciplina que está em causa. É a noção da responsabilidade e do espírito de “cumprir”, de acatar as determinações da entidade que ao trabalhador paga o salário; é o conceito de que a competência não pode pular sobre o dever de respeito pelas regras; é a indispensabilidade da observância de uma ética funcional. Tudo isso pode estar em cima da mesa. E nesse sentido, porque a medida tomada pela empresa e vertida em normas de regulamento não é despropositada, nem ilógica, nem podemos nós dizer que seja atrabiliária e absurda. É uma medida como qualquer outra ligada ao exercício da profissão, que o empregado deve executar com lisura.
Isto para dizer que, numa óptica puramente subjectivista, compreendemos que a “Venetian” possa ter perdido a confiança no seu trabalhador. Estamos no domínio do “comportamento psicológico”3, capaz de fazer-nos compreender a incapacidade de resistência do empregador na manutenção do vínculo. A confiança que o empregador deve manter na sua relação com o trabalhador pode ter ficado abalada pelo comportamento reiterado deste, independentemente do prejuízo material e económico que este lhe tenha efectivamente provocado. Há jurisprudência, aliás, nesse sentido4. Assim, porque se não duvida que o recorrido cometeu acto ilícito – aparentemente culposo e culposo e censurável - não nos podemos surpreender se a ora recorrente, em vez de temer a pernície que a resolução do contrato pudesse trazer para a sua esfera de interesses empresariais, tendo em conta a eficiência do profissional “despedido”, preferiu fazer emergir a perda de interesse na manutenção da relação laboral, tendo em consideração a atitude do trabalhador que, deslealmente e nas suas costas, fez o que sabia que ele queria que não fosse feito.
Em nossa opinião, a uma luz objectivista sobre o modo como deve o tribunal fazer o exercício do preenchimento do conceito de justa causa, não vemos que espécie de razão possa atribuir-se à sentença recorrida. Quer dizer, enquanto a primeira instância desvalorizou a atitude do trabalhador, considerando-a apenas “inadequada”, mas “não grave”, pelo nosso lado o entendimento é o de poder ser grave o desrespeito cometido pelo trabalhador no incumprimento das regras de disciplina comportamental estabelecidas pela entidade patronal no que concerne ao estacionamento dos seus empregados nos moldes acima vistos. A entidade pode até conceber a situação assim: hoje este incumprimento, amanhã outro diferente, num trilho cada vez mais perigoso, por vezes sem retrocesso (não estamos a dizer ser o caso, entenda-se) na senda da violação dos seus interesses económicos ou outros. Mas, por ora, basta pensar neste. Objectivamente, ele pode ser grave, não pelo valor da pecúnia que deixou de entrar nos cofres da empresa, mas pelo desvalor do comportamento infiel traduzido na violação plúrima e às escondidas de um dos deveres contratuais do empregado. Não está em causa um dever principal de bem trabalhar, de bem prestar o serviço, de ser eficiente, etc, etc. Mas já pode estar em causa um dever secundário de respeitar as ordens internas da entidade patronal vertidas em regulamento próprio - que era do conhecimento do trabalhador – sobre o modo como devia utilizar o seu direito ao aparcamento automóvel5. Aliás, entenda-se, se até os deveres acessórios ligados ao comportamento privado do trabalhador nem sempre podem ser arredados do nexo laboral6, conduzindo a sua violação culposa e grave à insubsistência do vínculo7, maior razão parece existir no caso presente para tal, pois o que se discute é uma atitude do trabalhador reflectida no espaço da unidade onde está instalado o seu local de trabalho, uma atitude que funciona exactamente contra os ditames do “bem servir” o patrão, conferindo à expressão destacada entre aspas a ideia de obediência às necessidades de organização da empresa, de cumprimento das regras internas de disciplina e de funcionamento e ocupação dos seus espaços. A situação pode, assim, cair sem esforço sob a alçada da previsão do art. 11º, nº1, als. 4) e 9), da lei citada. Circunstância agravada pelo facto de o recorrido ser director associado do sector de compras e abastecimentos desde 1 de Março de 20098. Mesmo secundário este dever, ele não deixa de ter importante reflexo na relação laboral.
É por tudo isto que não podemos sufragar o entendimento da sentença recorrida. Para além do juízo psicológico indispensável por banda do empregador e, por conseguinte, para lá da aparente quebra da confiança de um no noutro, cremos poder dizer que à luz de um juízo objectivo dominado pela noção do “bonus pater familiae”, não estamos liminarmente face a uma atitude desculpável e de culpa moderada. Em vez disso, podemos estar perante um comportamento ilícito, culposo e que pode ser aparentemente grave. Grave em si mesmo, do ponto de vista do desrespeito pelas regras da entidade patronal que a atitude do trabalhador pode representar; grave ainda, do ponto de vista da perda de autoridade e de disciplina da entidade patronal, em especial no quadro da sua imagem perante todos os restantes trabalhadores. O que outra coisa não é senão a remissão inapelável para o preenchimento da justa causa a que se refere o art. 68º, nº2 da Lei nº 7/2008. Ou seja, em face da circunstância invocada, pode não ser objectivamente adequada solução menos drástica do que a rescisão do contrato”9.
Ora, se este desvalor invocado pela recorrente não foi traduzido em factos do questionário, apesar de terem sido invocados e de pretensamente propostos à inclusão na base instrutória, parece-nos ter razão a recorrente quando se insurge ante a impossibilidade de fazer a respectiva prova. Ou seja, para o tribunal “a quo”aquele facto (37º) não teria valia alguma, e por isso não o quesitou. Mas, no nosso entendimento, aquele facto, se provado, pode reforçar a ideia de que a ofensa à sua autoridade de empregador e à imagem de si perante os restantes trabalhadores não pode ficar impune. Ora, se o tribunal deve estar dotado dos factos indispensáveis a todas as soluções plausíveis de direito, não se pode descartar este sobre o qual temos vindo a ponderar. O mesmo é dizer que se não pode retirar à recorrente a possibilidade de demonstrar esse facto; negar-lha é, como o fez o tribunal “a quo”, inviabilizar liminarmente o êxito da sua defesa. E nós pensamos, sinceramente, que este elemento de facto é muito importante para o preenchimento da justa causa de resolução. E conquanto, isoladamente, ele possa parecer ter alguma feição conclusiva, a verdade é que no conjunto com os restantes factos ele emerge como um facto susceptível de prova e com uma importância decisiva a respeito da revelação da impossibilidade de manutenção da relação laboral.
Pelo que vem de ser dito, somos a concluir que, pela violação dos arts. 68º, nº2 da Lei citada, a sentença não pode manter-se. Apesar de se não ter que repetir o julgamento quanto aos factos já apurados, torna-se, porém, necessário o prosseguimento dos autos na 1ª instância com vista à ampliação da matéria da base instrutória, de modo a incluir o facto do art. 56º, 2ª parte, da contestação (com a actuação do autor, a autoridade da empresa foram minadas e a sua imagem ficou afectada perante os restantes trabalhadores) sobre o qual deve a ora recorrente fazer a respectiva prova.
***
IV - Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e, em consequência, ordenando a baixa dos autos à 1ª instância para prosseguimento nos sobreditos termos.
Custas pela parte vencida a final.
TSI, 06 / 06 / 2013
_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Como o diz António Menezes Cordeiro, “na verdade, e em rigor, enquanto houver trabalhador e empresa, a relação de trabalho, por deteriorada que se apresente, é sempre possível” (Manual do Direito do Trabalho, Almedina, 1997, pág. 822).
2 Neste sentido, também, Júlio Gomes, Direito do Trabalho, vol. I, «Relações Individuais do Trabalho», Coimbra Editora, 2007, pág. 951.
3 A. Monteiro Fernandes, ob. cit., pag. 592 e sgs.
4 Ac. STJ, de 10/01/1986, BMJ nº 353/271; STA de 17/07/87, AD nº 314/284. Também, Ac. STJ, de 29/09/2009, Proc. nº 1229/06 e de 7/10/2010, Proc. nº 439/07.
5 Neste sentido, e com exemplos vários retirados da jurisprudência, ver Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 4ª ed., pág. 987
6 A vida pessoal, as suas escolhas, as suas preferências, as suas atitudes fora da relação laboral apenas a ele dizem respeito e não podem ser causa de despedimento. Todavia, já não se pode, absolutamente, dizer que transpostos os portões da fábrica o trabalhador pode fazer o que bem quiser, se de algum modo o seu comportamento for indissociável da sua própria profissão, isto é, se a sua acção estiver relacionada com o contrato de trabalho (Júlio Gomes, Direito do Trabalho, Vol. I, cit., pág. 971-975).
7 Pedro Romano Martinez, ob. cit., pag. 992.
8 Se é certo que o trabalhador deve, em princípio, abster-se de qualquer acção contrária aos interesses do empregador, “Nos cargos de direcção a obrigação de lealdade constitui uma parcela essencial, e não apenas acessória, da posição jurídica do trabalhador” (Monteiro Fernandes, ob. cit., pag. 241).
9 José António Pinheiro Torres, Da Cessação do Contrato de Trabalho em Face do Decreto-lei nº 24/89/M, de 3 de Abril, in «Boletim da faculdade de Direito de Macau», ano II, nº6, pag.125.
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