Processo nº 286/2013 Data: 20.06.2013
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes”.
“Agente infiltrado”.
“Agente provocador”.
SUMÁRIO
1. Há que distinguir se a actuação da polícia teve como resultado “demonstrar a prática de um crime” que o agente cometeu ou vinha cometendo, sendo, neste caso, lícita, ou se, teve como resultado ou objectivo, “provocar” ou levar o agente a praticar um crime que apenas ocorre como consequência de tal actuação
2. Quando a intenção do arguido de praticar continuamente a actividade de tráfico de droga se forma com a total liberdade e a compra simulada de droga montada pela polícia não provoca a actividade criminosa que tem realizado ou a intenção do arguido de praticar crime, mas apenas as revelou, não constitui a recolha de prova mediante meio enganoso.
O relator,
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Processo nº 286/2013
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Sob acusação pública respondeu, no T.J.B., A, (1°) arguida com os sinais dos autos, vindo a ser condenada pela prática de 1 crime de “tráfico de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão; (cfr., fls. 667 a 683-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformados com o assim decidido, do mesmo recorreram o Ministério Público e a referida arguida.
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O Ministério Púbico, pedindo a aplicação de uma pena “não inferior a 6 anos de prisão”, (cfr., fls. 764 a 713-v), e a arguida, a redução da pena que lhe tinha sido aplicada para uma outra não superior a 3 anos, suspensa na sua execução; (cfr., fls. 723 a 726).
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Neste T.S.I., juntou a Ilustre Procuradora Adjunta o seguinte douto Parecer:
“A, ora arguida dos presentes autos, foi condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substância psicotrópicas, p.° p.° pelo art.° 8 n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão, pelo douto acórdão do Tribunal Colectivo recorrido.
Inconformada com a decisão, vem recorrer a arguida A para o Tribunal de Segunda Instância, invocando violação dos art.s° 40, 65 e 48 do C.P.M. e solicitando condenação duma pena inferior a 3 anos e a sua suspensão de execução.
Em simultâneo, vem recorrer a Digna Magistrada do M. P. para o Tribunal de Segunda Instância, invocando violação dos art.°s 400 e 113 n.°s 1 e 2 al. a) do C.P.P.M. e solicitando a revogação do douto acórdão recorrido em relação à parte da condenação da recorrente A, ora arguida, e, a condenação numa pena não inferior a 6 anos.
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Analisados os autos, em completa sintonia com a Digna Magistrada do M.P. na sua motivação do recurso, bem como na da resposta ao recurso da recorrente A, entendemos nada de excessiva a decisão da aplicação da pena de prisão de 5 anos e 3 meses, pelo Tribunal a quo, por força da consequência jurídica exigida pelo art.° 8 n.° 1 da Lei n.° 17/2009, não assistindo razão à arguida recorrente.
Ao contrário, ainda nos parece que seja insuficientemente satisfatória para as fins da aplicação de penas, desde que o Tribunal a quo ignore os factos probatórios, ocorridos no dia 18 de Abril de 2012, constantes nos pontos 13 a 20 dos factos provados (cfr. fls. 674 a 675), por entender que a recolha da prova pela Polícia Judiciária foi feita através dos métodos proibidos previstos no art.° 113 n.° 1 e n.° 2 al. a) do C.P.P.M ..
Permitindo-nos aqui citar as ilustres jurisprudências derivadas dos acórdãos do T.S.I. (Proc. 4/2002 de 21/03/2002) :
"1. A lei aceita uma colaboração com uma actividade criminosa em curso, mas não a adopção de uma conduta de impulso ou instigação dessa actividade.
2. Não são consideradas como provas proibidas aquelas que tenham sido obtidas com o método de que a Polícia deu indicações a um arguido já detido para que este finja a comprar "mais uma vez" os estupefacientes e assim, que se pôde certificar de que o produto foi efectivamente fornecido pelo arguido àqueles, vindo o mesmo a ser surpreendido em plena actividade de tráfico.
3. Na actuação policial, não resulta que foi a polícia, seja por sua mão seja através doutro arguido detido, que provocou um crime que o arguido não pretende cometer, mas foi a própria arguida, que já tinha cometido crime anteriormente, optou voluntariamente por novamente infringir a lei"
Nesta conformidade, não podemos concordar com o entendimento do Tribunal a quo, devendo medir as penas a partir de todos os factos provados, na esteira do disposto do art.s° 40 e 65 do C.P.M ..
Apesar de ser livre o tribunal para fixar a pena, dentro da moldura penal de cada crime, é obrigatório atender às exigências de prevenção criminal e da culpa do agente.
Vale a pena destacar aqui que os estupefacientes apreendidos à recorrente são de quantidade muito superior à do uso diário que para o Metanfetamina é de apenas 0,2 grama, em referência à Lei 17/2009.
Como já foi demonstrado na fundamentação do recurso interposto pela Digna Magistrada do M.P., bem como na do próprio acórdão recorrido, a espécie e a quantidade dos estupefacientes encontrados na posse da arguida recorrente, e, a maneira típica de venda dos estupefacientes, tudo aponta para o seu dolo na prática de tráfico ilícito de tais produtos proibidos por lei evidenciando vontade de perturbar a tranquilidade e a paz social, bem como a saúde pública da R.A.E.M ..
São, sem dúvida, prementes as exigências de prevenção geral, impondo-se prevenir a prática dos crimes em causa, que se constituem como factores de elevado risco para a saúde pública e a paz social.
Tudo ponderado, não se nos afigura suficiente a pena de prisão aplicada à recorrente, tendo em linha de conta as molduras abstractas das penas previstas para os crimes, a culpa da recorrente, a protecção de bens jurídicos, as exigências de prevenção criminal e a reintegração da recorrente na sociedade, nos termos do art.s° 40 e 65 do C.P.M., havendo necessidade de condenar numa pena mais elevada a arguida recorrente, possivelmente em medida superior a 6 anos de prisão efectiva.
Por tanto, face à falta do pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução para a pena de prisão em medida não superior a três anos, não há lugar à consideração do pressuposto material da aplicação da suspensão da execução, nos termos do art. 48° do C.P.M ..
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Pelo exposto, deve ser julgado procedente o recurso interposto pelo M. P., mas improcedente o da arguida A”; (cfr., fls. 750 a 751-v).
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Nada obstando, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido, a fls. 673 a 679, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Dois são os recursos interpostos nos presentes autos.
Um, do Ministério Público, pedindo a agravação da pena, e o outro, da arguida, a pedir a sua redução.
Vejamos de que lado está a razão, começando pelo primeiro recurso interposto, no caso, o do Ministério Público.
3.1. Do “recurso do Ministério Público”.
Pede-se a agravação da pena.
E se bem ajuizamos, alegando-se, em síntese, que a conduta da arguida é “mais grave”, pois que provada está uma outra “transacção de estupefacientes” da arguida para o também arguido B, que o Colectivo a quo considerou “penalmente irrelevante”, por ter entendido que, nesta parte, houve “instigação”.
Ora, vejamos.
A arguida dos autos foi detida após a detenção do dito B, que identificou a arguida como sua “fornecedora”, e que, a sugestão das autoridades policiais, solicitou uma “encomenda” àquela, para cuja entrega marcaram um encontro no qual ocorreu a aludida detenção.
E, provado estando que a arguida já se dedicava ao tráfico de estupefacientes, e que já tinha antes fornecido estupefacientes ao B, com os quais foi surpreendido quando detido, (cfr., matéria de facto dada como provada), cremos pois que não se pode manter a decisão recorrida.
De facto, como em Ac. deste T.S.I. de 24.07.2003, Proc. n.° 91/2003, já tivemos oportunidade de consignar, essencial é distinguir se a actuação da polícia teve como resultado “demonstrar a prática de um crime” que o agente cometeu ou vinha cometendo, ou se, teve como resultado ou objectivo, “provocar” ou levar o agente a praticar um crime que apenas ocorre como consequência de tal actuação.
E, perante as referidas situações, cremos que unânime, (ou, pelo menos maioritária), é a doutrina e jurisprudência no sentido de que legal é a primeira e ilegal e inadmissível a segunda; (sobre a questão, vd., v.g., M. Costa Andrade in, “Sobre as proibições de prova em processo penal”, pág. 209 e segs.; F. Gonçalves, M. Alves e M. Guedes Valente in, “Lei e Crime. O agente infiltrado versus agente provocador ...”, pág. 253 e segs.; M. Alves Meireis in, “O regime das provas obtidas pelo agente provocador em processo penal” pág. 125; G. Margens da Silva in, “Bufos, Infiltrados, Provocadores e Arrependidos ...”; A. Lorenço Martins in, “Droga e Direito”, pág. 278; Ac. do S.T.J. de 15.01.97 in, B.M.J. 463º - 226; do T.S.J. de 02.06.99, Proc. nº 1073 e do Vdº T.U.I. de 27.06.2002, Proc. nº 6/2002 e de 09.10.2002, Proc. nº 10/2002, onde se consignou, nomeadamente, que “quando a intenção do arguido de praticar continuamente a actividade de tráfico de droga se forma com a total liberdade e a compra simulada de droga montada pela polícia não provoca a actividade criminosa que tem realizado ou a intenção do arguido de praticar crime, mas apenas as revelou, não constitui a recolha de prova mediante meio enganoso prevista na al. a) do n.° 2 do art.º 113.° do CPP, nem excede o âmbito permitido pelo art.º 36.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M”).
Nesta conformidade, quid iuris?
Pois bem, tal como se deixou consignado, não nos parece que houve “provocação”, mas tão só “demonstração” da prática de 1 crime que a arguida vinha cometendo, e atento também ao preceituado no art. 31° da Lei n.° 17/2009, motivos inexistem para não se tomar em consideração os respectivos factos (já) dados como provados para efeitos de graduação da pena a aplicar à arguida.
E, então, nesta conformidade, atenta a natureza e quantidade de estupefaciente pela arguida destinada ao “tráfico”, o disposto no art. 40° e 65° do C.P.M., às necessidades de prevenção criminal, e o estatuído no art. 350°, n.° 3 do C.P.P.M. afigura-se que deve o presente recurso proceder, ficando a arguida condenada na pena de 8 anos de prisão.
3.2. Do “recurso da arguida”.
Face ao que se decidiu em relação ao recurso do Ministério Público, e dando como reproduzido o teor do entendimento pelo mesmo assumido, improcede o recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam conceder provimento ao recurso do Ministério Público, julgando-se improcedente o recurso da arguida.
Pagará a arguida a taxa de justiça de 6 UCs.
Honorários à Exma. Defensora no montante de MOP$2.500,00.
Macau, aos 20 de Junho de 2013
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José Maria Dias Azedo
(Relator)
[Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, afigura-se-me excessiva a pena de 8 anos de prisão fixada à arguida, atento, nomeadamente à moldura penal para o crime pela mesma cometido, a quantidade de estupefaciente em questão, e, considerando, também, que no recurso do Ministério Público se pedia (apenas) uma “pena não inferior a 6 anos”].
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)
(Vencido nos termo de declaração de voto se junta em anexo)
Processo nº 286/2013 (Autos de recurso penal)
Data: 20/06/2013
Declaração de voto
Vencida por seguintes razões:
Não concordo com a decisão da agravação da pena condenada à arguida recorrente da prática do crime de tráfico de estupefaciente por entender que no presente processo, como foi bem decidido pelo Tribunal a quo, a intenção ilícita da arguida recorrente A de vender ao 3º arguido B, a droga apreendida na sua posse foi provocada pela conduta policial o que é proibida nos termos do art.113º nºs 1 e 2 al.a) do Código Processo Penal, e assim sendo, essa quantidade da droga não devia ser considerada na determinação da pena aplicada à mesma arguida.
Pelo exposto, não merecia o recurso do Ministério Público provimento e devia manter na íntegra a decisão do Tribunal a quo.
No entanto, no caso de tomar em conta a quantidade da droga apreendida na posse da arguida recorrente, como vem defendendo no douto acórdão antecedente, e ao abrigo do disposto no art.350º nº3 do Código Processo Penal, voto na decisão de aplicar, à arguida recorrente, uma pena de oito (8) anos de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefaciente.
A Segunda Adjunta
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Tam Hio Wa
Proc. 286/2013 Pág. 14
Proc. 286/2013 Pág. 1