Processo n.º 471/2012 Data do acórdão: 2013-6-20 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– injúria agravada
– art.os 175.o, n.o 1, e 178.o do Código Penal
– arguido bêbado
– consciência da actuação
– medida da pena
– prevenção geral do crime
– delinquente não primário
– art.o 44.o, n.o 1, do Código Penal
– substituição da prisão por multa
– art.o 48.o, n.o 1, do Código Penal
– suspensão de execução da pena
– prática de crime no período de pena suspensa
S U M Á R I O
1. Não ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando após examinados criticamente, pelo tribunal ad quem, todos os elementos referidos na fundamentação probatória da sentença condenatória recorrida, não se vislumbra evidente que o tribunal a quo, ao ter julgado como provados os factos acusados ao arguido recorrente, tenha violado alguma regra da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, ou alguma norma jurídica sobre o valor da prova, ou alguma das leges artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto.
2. Mesmo que o arguido tivesse ficado já algo em bêbado no momento de dizer palavras insultuosas aos dois guardas policiais ofendidos, isto não significaria necessariamente que ele não tivesse tido suficiente consciência dessa sua actuação.
3. Na medida da pena do crime de injúria agravada p. e p. pelos art.os 175.o, n.o 1, e 178.o do Código Penal, há que atender também a que são muito prementes as necessidades de prevenção geral deste delito.
4. A despeito de a duração da pena única de prisão por que vinha condenado nesta vez o arguido na sentença ser inferior a seis meses, não se pode decidir pela substituição dessa pena única por multa, posto que é mesmo necessário aplicar pena de prisão para poder prevenir que o arguido, um delinquente já não primário, venha a cometer novo crime no futuro (cfr. o critério material do art.o 44.o, n.o 1, do Código Penal).
5. Tendo o arguido praticado os dois crimes de injúria agravada na plena vigência ainda do período da suspensão de execução da pena única de prisão anteriormente imposta num processo anterior pela prática de dois crimes dolosos, é realmente impossível formar agora um novo juízo de prognose favorável em sede do art.o 48.o, n.o 1, do Código Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 471/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A (XXX)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 26 a 28 dos autos de Processo Sumário n.° CR4-12-0079-PSM do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material de dois crimes consumados de injúria agravada, p. e p. sobretudo pelos art.os 175.o, n.o 1, e 178.o do vigente Código Penal (CP), na pena de dois meses e quinze dias de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de três meses de prisão efectiva, e no pagamento de duas mil patacas de indemnização pecuniária, arbitrada oficiosamente, a favor de cada um dos dois guardas policiais ofendidos, com juros legais desde a data da sentença até integral e efectivo pagamento, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Assacou o arguido à referida decisão judicial o seguinte:
– a montante, o vício de erro notório na apreciação da prova referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do actual Código de Processo Penal (CPP), porquanto ele, como bebeu quase uma garrafa de brandy, ficou bêbado, e, por isso, não soube o que disse na altura dos factos (o que podia ser confirmado sobretudo pela testemunha de defesa B (XXX) então presente no local dos factos), e só voltou a ter consciência clara no dia seguinte, cerca das 09:00 da manhã, pelo que não podia ter ele dito, com consciência, palavras insultuosas aos polícias, ao contrário do afirmado pelo Tribunal a quo na sentença;
– e a jusante, a violação do elemento subjectivo do tipo legal de crime de injúria agravada (com violação, pois, do disposto nos art.os 12.o, 175.o e 178.o do CP), dado que, no seu entender, sendo este crime um crime doloso, não podia o Tribunal a quo o ter condenado, quando ele, devido ao seu estado de bêbado, não podia ter o dolo de injuriar os dois polícias em causa;
– e subsidiariamente arguindo, a violação do disposto nos art.os 16.o e 67.o do CP, devendo ele, por causa da sua actuação sem consciência, merecer, fosse como fosse, a atenuação especial da pena;
– e ainda subsidiariamente falando, o excesso na medida da pena, com violação do disposto nos art.os 40.o e 65.o do CP;
– e ainda subsidiariamente falando, a violação do disposto nos art.os 44.o, n.o 1, e 48.o do CP, em matéria respeitante à substituição da prisão por multa, e à suspensão da execução da pena de prisão.
Com isso, pediu o recorrente a invalidação da sentença recorrida, com consequente absolvição total dele, e, subsidiariamente, a atenuação da pena de prisão, com simultânea substituição por multa, ou, fosse como fosse, a suspensão de execução da pena de prisão finalmente imposta (cfr., em mais detalhes, o teor da motivação de recurso, apresentada a fls. 63 a 72 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal a quo no sentido de improcedência da argumentação do recorrente (cfr. a resposta de fls. 79 a 84 dos autos).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 106 a 108v), pugnando também pela improcedência do recurso.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência já feita nesta Segunda Instância, cumpre agora decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
O Tribunal a quo deu por provado o seguinte, na sua essência (cfr. o elenco da matéria de facto descrita como provada nas páginas 26 a 26v dos autos):
– em 27 de Abril de 2012, cerca das 03:55 horas, numa operação de fiscalização de veículos, os guardas do Corpo de Polícia de Segurança Pública n.os XXXXX e XXXXX mandaram parar, para efeitos de fiscalização, um veículo automóvel ligeiro com chapa de matrícula n.o MK-XX-XX, em que ficava sentado, na altura, como passageiro o arguido A;
– e quando o guarda policial n.o XXXXX pediu ao arguido a exibição de documento de identificação, este disse a esse guarda policial que: “estás a brincar coisa, fodo a tua mãe, fodo a tua mãe”. Esse guarda policial advertiu então o arguido de que não podia dizer palavras insultuosas, mas o arguido não lhe ligou;
– na sequência disso, o guarda policial n.o XXXXX dirigiu-se ao arguido a advertir-lhe de que não podia dizer palavras insultuosas, e a comunicar que eles estavam a executar funções, mas o arguido saiu do veículo e disse aos dois guardas policiais que: “fodo no teu cu, eu bebi vinho”;
– e depois, o arguido voltou a ficar dentro do veículo. Os guardas policiais voltaram a advertir o arguido de que não podia dizer palavras insultuosas, mas o arguido igualmente não lhes ligou, e continuou a dizer aos dois guardas policiais que: “estás a brincar coisa, fodo a tua mãe, fodo a tua mãe”;
– as palavras acima referidas do arguido fizeram com que os dois guardas policiais tenham ficado a sentir ofendidos na sua honra;
– o arguido sabia que os destinários das suas palavras eram dois guardas fardados a executar funções policiais, e sabia ele do carácter insultuoso das suas palavras, e, mesmo assim, disse tais palavras aos dois guardas policiais, fazendo com que estes tenham ficado insultados;
– o arguido praticou os actos acima referidos de modo consciente, livre e voluntário, sabendo que a conduta desse tipo era proibida e punível por lei;
– o arguido tem o curso primário completo como habilitações académicas;
– o arguido declarou ser comerciante, com trinta a quarenta mil patacas de rendimento mensal, com uma mulher doméstica, e três filhos estudantes a cargo de ambos;
– o arguido já não é delinquente primário: em 14 de Outubro de 2011, foi condenado no Processo Comum Colectivo n.o CR2-09-0084-PCC, com decisão já transitada em julgado em 21 de Novembro de 2011, pela prática de um crime de ofensa à integridade física do art.o 137.o, n.o 1, do CP, e de um crime de dano do art.o 206.o, n.o 1, do CP, em oito e seis meses de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, na pena única de um ano de prisão, suspensa na sua execução por dois anos.
A M.ma Juíza autora da sentença condenatória ora recorrida chegou a tecer nesse texto decisório (originalmente proferido em chinês, com tradução ora feita pelo relator para português) a seguinte fundamentação probatória (a fl. 27 dos autos):
– após feita a audiência de hoje, o Tribunal, após ouvidos as declarações do arguido e os depoimentos de diversas testemunhas, considera, desde já, a propósito da testemunha de defesa, que como esta testemunha não esteve no local dos factos em todo o decurso destes, o seu depoimento só pode servir de referência, e o Tribunal entende que em relação aos depoimentos dos dois guardas policiais, como estes dois chegaram a referir que aquando da ocorrência dos factos, o arguido lhes tinha dito que ele próprio se encontrava no período de pena suspensa e por isso lhes pediu desculpa, é de acreditar que os dois guardas só tomaram conhecimento disso através das próprias palavras ditas pelo arguido, pelo que os depoimentos das duas testemunhas da acusação são credíveis;
– além disso, o Tribunal, antes de iniciar a audiência de julgamento, chegou a pedir nos termos legais ao arguido para que declarasse o seu registo criminal, mas o arguido disse ao Tribunal que não tinha registo criminal, e quando confrontado com o seu registo criminal, já disse o arguido que se tinha esquecido do mesmo. Assim, se o arguido, mais consciente na audiência do que no momento de ocorrência dos factos, nem tivesse conseguido falar disto com clareza, mas já conseguiu dizer aos guardas policiais na altura dos factos que ele estava sob o período de pena suspensa, então, após feita a análise, em globalidade, das declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas e dos elementos dos autos, crê o Tribunal que o arguido, na altura de ocorrência dos factos, embora tenha ficado algo em bêbado, teve ainda suficiente consciência da acção, com discernimento dos seus actos praticados, pelo que o Tribunal reconhece como provados os factos descritos na acusação.
Na acta da audiência de julgamento em primeira instância, ficaram registados, em súmula, os depoimentos das testemunhas ouvidas, tendo ficado consignado o seguinte (a fl. 26) em relação ao depoimento da única testemunha de defesa sr. B: a testemunha falou da situação de o arguido, antes da ocorrência dos factos, ter ingerido bebidas alcoólicas, e afirmou que naquela noite, a pedido do arguido, levou o arguido para a casa deste; a testemunha também descreveu a situação de o arguido, aquando da ocorrência dos factos, ter passos não estáveis; mas a testemunha disse que ele, como tinha chegado a ausentar-se do local dos factos para fazer telefonema, não tinha ficado no local em todo o decurso dos factos.
Na mesma acta (e concretamente a fl. 25), consta também que o arguido negou a prática dos factos a si acusados.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, passa-se a conhecer do recurso do arguido, nos seguintes termos.
Do primeiramente apontado vício de erro notório na apreciação da prova:
A este propósito, realiza este Tribunal ad quem que após examinados criticamente todos os elementos referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória ora recorrida, não se vislumbra evidente que a M.ma Juíza a quo, ao ter julgado como provados os factos já acima referenciados na parte II do presente acórdão de recurso, tenha violado alguma regra da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, ou alguma norma jurídica sobre o valor da prova, ou alguma das leges artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, sendo, pois, razoável, e aliás mui convincente, o resultado desse julgamento feito em primeira instância, pelo que não pode vir o arguido tentar fazer sindicar gratuitamente a livre convicção a que chegou a M.ma Juíza a quo a nível da livre apreciação dos factos, sob aval do art.o 114.o do CPP. Em suma, mesmo que o arguido tivesse ficado já algo em bêbado no momento de dizer palavras insultuosas aos dois guardas policiais ofendidos, isto não significaria necessariamente que ele não tivesse tido suficiente consciência dessa sua actuação. Tem, pois, razão a M.ma Juíza a quo.
Do acima analisado e concluído, decorre naturalmente a improcedência da arguição da violação do elemento subjectivo do tipo legal de crime de injúria agravada. Aliás, em face da matéria de facto já provada em primeira instância, é de concluir, sem dúvida razoável nenhuma, que o arguido agiu com dolo directo na prática dos factos delituosos ora em causa, consistentes em dizer palavras insultuosas aos dois guardas policiais dos autos, no momento de execução, por estes, de funções policiais de fiscalização de veículos.
Pela mesmíssima razão do já concluído dolo directo do arguido na prática de tais factos delituosos, há que cair totalmente por terra, e sem mais indagação por ociosa, a sua tese de aplicabilidade do art.o 16.o do CP.
E no tocante à alegada injusteza cometida pelo Tribunal a quo na medida concreta da pena, a razão também não está no lado do arguido, visto que perante todas as circunstâncias já apuradas em primeira instância, e sob a égide sobretudo dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, 65.o e 71.o, n.os 1 e 2, do CP, as penas parcelares e única de prisão, como tal já encontradas pelo Tribunal recorrido dentro das respectivas molduras penais, são, efectivamente, dentro dos padrões da razoabilidade. Com efeito, nenhum factor atenuativo de relevo existe nos autos a favor do arguido, enquanto já há um factor de ponderação, muito negativo para si em sede da medida da pena, qual seja, o de ele ter praticado os dois crimes de injúria agravada no pleno período da suspensão de execução da pena única de um ano de prisão por que já tinha sido condenado num processo penal anterior por prática de um crime, doloso, de ofensa à integridade física, e de um crime, também doloso, de dano, ao que acresce que são muito prementes as necessidades de prevenção geral do crime de injúria agravada.
E a despeito de a duração da pena única de prisão por que vinha condenado nesta vez o arguido na sentença ora posta em crise ser inferior a seis meses, não se pode decidir pela substituição dessa pena única (de três meses) de prisão por igual tempo de multa, posto que é mesmo necessário aplicar pena de prisão para poder prevenir que o arguido, um delinquente já não primário, venha a cometer novo crime no futuro (cfr. o critério material exigido na parte final do art.o 44.o, n.o 1, do CP, para a substituição da prisão por multa).
Tendo o arguido praticado os dois crimes de injúria agravada na plena vigência ainda do período da suspensão de execução da pena única de um ano de prisão anteriormente imposta num processo anterior por dois crimes doloso, é realmente impossível formar agora um novo juízo de prognose favorável em sede do art.o 48.o, n.o 1, do CP.
Em síntese, naufraga o recurso in totum, por a sentença recorrida não enfermar de nenhuma das ilegalidades esgrimidas pelo arguido.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo arguido, com vinte e quatro UC de taxa de justiça.
Comunique ao Processo Comum Colectivo n.o CR2-09-0084-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, para os efeitos tidos por convenientes.
Comunique aos dois guardas policiais ofendidos.
Macau, 20 de Junho de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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