Processo n.º 28/2013 Data do acórdão: 2013-6-20 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– cúmulo jurídico das penas aplicadas em processos diferentes
– art.o 48.o, n.o 1, do Código Penal
– não suspensão da execução da pena única de prisão
– penas parcelares de prisão inicialmente suspensas
S U M Á R I O
1. O facto de as duas penas parcelares de prisão, que entraram na feitura do cúmulo jurídico pelo tribunal recorrido, terem sido inicialmente aplicadas ao arguido recorrente nos respectivos autos com idêntica concessão do benefício de suspensão da pena não vincula necessariamente esse tribunal em sede da devida ponderação do critério material exigido no art.o 48.o, n.o 1, do vigente Código Penal (CP) para efeitos de concessão, ou não, da suspensão de execução da pena única.
2. Isto porque: a montante, é o próprio art.o 71.o, n.o 1, parte final, do CP que impõe a consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, aquando da determinação da pena única na feitura do cúmulo jurídico; e depois, encontrada concretamente a pena única de prisão, cabe ponderar sobre a verificação do critério material vertido no art.o 48.o, n.o 1, do CP, sendo certo que para este efeito, o mesmo tribunal ora recorrido não pode deixar de considerar, também em conjunto, e inclusivamente, as circunstâncias da prática dos dois crimes em questão pelo arguido, e a sua personalidade nomeadamente posterior à prática desses crimes.
3. No caso dos autos, a personalidade exibida pelo próprio recorrente na audiência realizada antes da tomada de decisão de cúmulo jurídico das penas, através da sua postura de não admissão franca da prática dos factos relativos aos dois crimes em questão, já acarreta um factor negativo à formação de um juízo de prognose favorável à suspensão de execução da sua pena única.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 28/2013
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão de feitura de cúmulo jurídico das penas proferido a fls. 203 a 204v dos autos de Processo Comum Singular n.° CR3-12-0140-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) na parte respeitante à não suspensão da execução da sua pena única, aí achada, de dois anos e onze meses de prisão, como resultante do cúmulo jurídico entre a pena de quatro meses de prisão imposta nesses autos pela prática de um crime de furto simples, e a pena de dois anos e nove meses de prisão aplicada no Processo n.o CR2-09-0347-PCC do 2.o Juízo Criminal do mesmo TJB pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, veio o arguido A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a suspensão de execução da dita pena única de prisão pelo período de quatro anos e seis meses, tendo, para o efeito, imputado ao referido acórdão a violação do disposto no art.o 48.o e seguintes do vigente Código Penal (CP) em matéria de suspensão de execução da pena, e salientado o facto de as duas penas parcelares em causa terem sido inicialmente aplicadas nos respectivos dois processos penais com idêntica concessão do benefício de suspensão da pena (cfr. a motivação do recurso apresentada a fls. 230 a 234 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso respondeu o Ministério Público (a fls. 236 a 238) no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 249 a 250), preconizando também a improcedência do recurso.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes dados, com pertinência à solução do recurso:
No acórdão de feitura de cúmulo jurídico das penas proferido a fls. 203 a 204v dos subjacentes autos de Processo Comum Singular n.° CR3-12-0140-PCS do 3.o Juízo Criminal do TJB, foi achada a pena única de dois anos e onze meses de prisão, como resultante do cúmulo jurídico entre a pena de quatro meses de prisão imposta nesses autos pela prática, pelo arguido ora recorrente A, de um crime de furto simples, e a pena de dois anos e nove meses de prisão aplicada ao mesmo arguido no Processo n.o CR2-09-0347-PCC do 2.o Juízo Criminal do TJB pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.
E o Tribunal Colectivo autor desse acórdão ora recorrido decidiu em não suspender a execução da dita pena única, apesar de as duas penas parcelares em causa terem sido inicialmente aplicadas nos respectivos autos com concessão do benefício de suspensão de execução da pena.
E para fundamentar a sua decisão inclusivamente de não suspensão da pena única, o Tribunal Colectivo ora recorrido chegou a tecer materialmente o seguinte no texto do seu aresto (escrito originalmente em chinês, e aqui traduzido para português pelo ora relator):
– <<[...]
De acordo com o art.o 454.o do Código de Processo Penal foi realizada a audiência.
O arguido prestou declarações na audiência, continuando ele ainda a não admitir francamente a prática dos factos por que vinha condenado. Sobre os factos de abuso sexual, o arguido começou por dizer que os tinha praticado por brincadeira, e depois já disse também que não tinha chegado a praticar os factos em causa; sobre a conduta de furto em supermercado, o arguido declarou que se tratava de um mau entendimento.
O arguido declarou trabalhar presentemente, com vínculo eventual, em estabelecimento de café, com remuneração horária de vinte e cinco patacas, e ter os pais a cargo, e com a 6.a classe do ensino primário como habilitações literárias.
[…]
Em conformidade com o disposto no art.o 71.o, n.o 1, do Código Penal, ponderando em global os factos criminais praticados pelo arguido e a sua personalidade, e ao mesmo tempo considerando o impacto negativo acarretado pelos actos delituosos penais do arguido à tranquilidade da sociedade de Macau, este Tribunal Colectivo decide em punir o arguido com dois anos e onze meses de prisão única.
*
Nos termos do art.o 48.o do Código Penal, considerando a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior à prática dos crimes e as circunstâncias da prática dos crimes, a simples censura dos factos e a ameaça da prisão não podem realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que este Tribunal Colectivo decide em não suspender a pena.
[…]>>.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, passa-se a decidir da unicamente colocada questão de pretendida suspensão de execução da pena única de prisão.
Pois bem, cabe frisar que o facto de as duas penas parcelares de prisão, que entraram na feitura do cúmulo jurídico em causa, terem sido inicialmente aplicadas ao recorrente nos respectivos autos com idêntica concessão do benefício de suspensão da pena não vincula necessariamente o Tribunal Colectivo autor do acórdão ora recorrido em sede da devida ponderação do critério material exigido no art.o 48.o, n.o 1, do CP para efeitos de concessão, ou não, da suspensão de execução da pena única.
Isto porque: para já, e a montante, é o próprio art.o 71.o, n.o 1, parte final, do CP que impõe a consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, aquando da determinação da pena única na feitura do cúmulo jurídico; e depois, encontrada concretamente assim, pelo Tribunal ora recorrido, a pena única de dois anos e onze meses de prisão, coube-lhe ponderar sobre a verificação do critério material vertido no art.o 48.o, n.o 1, do CP em matéria relativa à suspensão de execução da pena, sendo certo que para este efeito, o mesmo Tribunal não podia deixar de considerar, também em conjunto, e inclusivamente, as circunstâncias da prática dos dois crimes em questão pelo arguido, e a sua personalidade nomeadamente posterior à prática dos mesmos crimes.
Nesse enquadramento jurídico das coisas, e ante os dados já acima coligidos do exame dos autos (e referidos na parte II do presente aresto de recurso), não é de censurar o juízo de valor formulado pelo Tribunal recorrido no seu acórdão de feitura de cúmulo jurídico na parte respeitante à decidida não suspensão de execução da pena única de prisão.
De facto, a personalidade exibida pelo próprio recorrente na audiência realizada antes da tomada de decisão de cúmulo jurídico das penas, através da sua postura de não admissão franca da prática dos factos relativos aos dois crimes em questão, já acarreta um factor negativo à formação de um juízo de prognose favorável à suspensão de execução da sua pena única, pelo que sem mais indagação por ociosa, naufraga a pretensão do recorrente de suspensão de execução da pena única.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente o recurso.
Custas do recurso pelo arguido, com cinco UC de taxa de justiça, e ainda com quatro mil patacas de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso, honorários esses a adiantar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Comunique a presente decisão à parte ofendida.
Macau, 20 de Junho de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo nº 28/2013
(Autos de recurso penal)
Declaração de voto
Não acompanho o douto veredicto que antecede, desde logo porque no Acórdão recorrido não se transcreveu, (como creio que se devia), a factualidade provada nos dois processos em que foi o arguido condenado nas penas cujo cúmulo operou, (podendo assim entender-se que padece de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”; cfr., v.g., os Acs. do S.T.J. de 09.04.1997, Proc. n.° 97P011 e de 19.11.1997, Proc. n.° 97P1160), e também, (e principalmente), dado que ainda que se me mostre de subscrever o entendimento no sentido de que pode o Tribunal que opera o cúmulo de duas penas suspensas na sua execução chegar a uma “pena efectiva” – sendo de legalidade duvidosa que o faça sem antes se pronunciar sobre a revogação das suspensões; neste sentido cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 06.02.2004, Proc. n.° 04P1391 – não me parecer que a situação dos autos justificasse tal decisão.
Com efeito, se no momento da condenação pelo (2°) crime de “furto”, e com conhecimento da anterior condenação do arguido, em pena suspensa na sua execução se chegou à conclusão que justa e adequada era uma pena – de 4 meses de prisão – (também) suspensa na sua execução por 1 ano, custa-me a alcançar as razões para, em sede do cúmulo de duas penas suspensas na sua execução, se optar por uma pena única efectiva, em especial, quando aquela era passível de suspensão por “não ser superior a 3 anos”, sendo o crime de “furto”, (que deu lugar ao cúmulo), um “furto simples”, de algumas garrafas de sumos, no valor de MOP$72.80, (“valor, diminuto”, cfr., art. 196°, al. c) do C.P.M.), e, assim, “(quase) insignificante”.
Daí que, (e ainda que pondo de parte a assinalada “insuficiência”), mais adequada para o caso me parecia a decisão de manutenção da suspensão da execução na pena única, quiçá, por um período de 5 anos, com a imposição ao arguido de “regras de conduta” e “regime de prova” nos termos do art. 50° e 51° do C.P.M..
Macau, aos 20 de Junho 2013
José Maria Dias Azedo
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