Processo n.º 189/2012 Data do acórdão: 2013-6-20 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– tema probando do processo
– lacuna na investigação do objecto do processo
– art.o 400.o, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal
– erro notório na apreciação da prova
– julgamento da matéria de facto
– art.o 114.o do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. Não tendo o arguido apresentado contestação escrita, todo o tema probando do processo que lhe fosse desfavorável já se encontrou delimitado pelo elenco de factos imputados na acusação, e tendo o tribunal autor da sentença condenatória dado como inteiramente provada essa factualidade, não pode ter havido qualquer lacuna na investigação desse mesmo objecto do processo, de maneira que, nessas circunstâncias, não pode ter ocorrido o vício previsto na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do vigente Código de Processo Penal (CPP).
2. Se após examinados criticamente todos os elementos referidos na fundamentação probatória da sentença condenatória, não se vislumbra evidente ao tribunal ad quem que o tribunal a quo, ao ter julgado como provados todos os factos acusados ao arguido, tenha violado alguma regra da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, ou alguma norma jurídica sobre o valor da prova, ou alguma das leges artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, não pode vir o arguido recorrente, a pretexto de erro notório na apreciação da prova alegadamente cometido pelo tribunal a quo, tentar fazer sindicar gratuitamente a livre convicção a que chegou esse tribunal sob aval do art.o 114.o do CPP.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 189/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): B (B)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 98 a 102 dos autos de Processo Comum Singular n.° CR1-11-0372-PCS do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material de um crime consumado de emprego, p. e p. pelo art.o 16.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, de 2 de Agosto, na pena de quatro meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, sob a condição de prestação, no prazo de dois meses a contar do trânsito em julgado da decisão, de oito mil patacas de contribuição pecuniária a favor da Região Administrativa Especial de Macau, veio o arguido B, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para assacar à referida sentença, material e concretamente, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, e de erro notório na apreciação da prova, como tal previstos nas alíneas a) e c), respectivamente, do n.o 2 do art.o 400.o do vigente Código de Processo Penal (CPP), a fim de pedir a sua absolvição (cfr., com mais detalhes, a motivação de recurso apresentada a fls. 132 a 149 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal a quo no sentido de improcedência da argumentação do recorrente (cfr. a resposta de fls. 151 a 153 dos autos).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 163 a 164), pugnando até pela rejeição do recurso por se lhe mostrar o recurso manifestamente improcedente.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência já feita nesta Segunda Instância, cumpre agora decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
O Tribunal a quo deu por provada toda a factualidade seguinte, tal e qual como vinha acusado o arguido pelo Ministério Público (cfr. o elenco da matéria de facto descrita em chinês como provada nas páginas 2 a 3 do texto da sentença a fls. 98v a 99 dos autos, em confronto com o conjunto de factos descritos também em chinês na acusação pública de fls. 45 a 46, com tradução aqui feita pelo relator para português):
– C, munido do Passaporte Filipino n.o TT04XXXXX, entrou em Macau, e não possuía qualquer documento que legalmente lhe permitisse trabalhar na Região Administrativa Especial de Macau;
– em 6 de Dezembro de 2010, C, através da sua mulher, tomou conhecimento de que o “XXX XXX (XXX XXX)”, sito na Rua de ......, n.o ..., da Taipa, estava a recrutar pessoal trabalhador, e, por isso, dirigiu-se a esse restaurante para esse fim, tendo exibido, na altura, ao patrão B (arguido) um recibo de recepção do pedido de autorização de residência, emitido pelo Serviço de Migração do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP);
– a partir do dia seguinte (7 de Dezembro de 2010), o arguido empregou C para ser padeiro-aprendiz no referido restaurante, sem negociação sobre a remuneração;
– em 9 de Dezembro de 2010, cerca das 12:20 horas da manhã, o pessoal policial do CPSP, aquando da feitura da fiscalização, descobriu que só havia uma pessoa na cozinha, que era C, a aplicar, com faca, manteiga no pão, e na altura, C estava vestido de uniforme de cozinheiro;
– a resposta dada pelo Serviço de Migração do CPSP revela que C nunca obteve a autorização para poder trabalhar em Macau;
– o arguido sabia claramente que para trabalhar em Macau, era indispensável possuir documento especial para este efeito, e ao empregar C, já sabia que este possuía Passaporte Filipino e estava a pedir autorização de residência em Macau, e que este não possuía documento que lhe permitisse trabalhar em Macau, e o arguido empregou-o na mesma, com intuito de obter vantagem ilícita;
– o arguido praticou os actos acima referidos de modo voluntário, livre e consciente, sabendo bem que isso não era permitida por lei e era punível.
Outrossim, o Tribunal a quo deu também como provado o seguinte:
– o arguido é comerciante, com cerca de dez mil patacas de rendimento mensal;
– o arguido é casado, e sem pessoas a cargo;
– o arguido tem por habilitações académicas o 2.o ano de curso superior;
– o arguido negou a prática dos factos acusados;
– o arguido é delinquente primário.
Por outro lado, do exame dos autos, sabe-se que:
– o arguido, depois de notificado pessoalmente da acusação, não apresentou contestação escrita no prazo de dez dias (cfr. o processado a fls. 47 a 49, a contrario sensu);
– na acta (de fls. 88 a 89 dos autos) da audiência de julgamento realizada em primeira instância, consta que: foram lidas, a pedido do Ministério Público, as declarações então prestadas pelo arguido aquando do interrogatório pelo Ministério Público, na parte que conflituassem com as declarações prestadas pelo arguido na audiência de julgamento; e foram lidas também as declarações prestadas pela testemunha C para memória futura.
A M.ma Juíza autora da sentença condenatória ora recorrida chegou a resumir a sua detalhada fundamentação probatória dos factos provados nos seguintes termos, originalmente escritos em chinês, no 4.o parágrafo da página 5 desse texto decisório (a fl. 100 dos autos):
– “Este Tribunal, depois de feita a análise, de modo objectivo e em globalidade, das declarações do arguido e de diversas testemunhas, prestadas e lidas na audiência de julgamento, em confronto com os meios de prova documental examinados no decurso da audiência e outros elementos probatórios, formou a livre convicção sobre a prova. Embora o arguido tenha negado o acusado, este Tribunal, atendendo a outros elementos probatórios, nomeadamente perante a contradição entre o arguido e o indivíduo envolvido no caso acerca do número grande ou pequeno de clientes na altura, e ante o depoimento, mais razoável, da testemunha policial, a data revelada no recibo de recepção do pedido de autorização de residência (e inclusivamente a data do pedido do certificado de registo criminal), em conjugação com o senso comum e as regras da experiência (tais como: o tempo normalmente necessário para a autorização do pedido de residência, o tempo de ocorrência dos factos, o fluxo de pessoas em restaurante, o vestido do indivíduo envolvido no caso e o horário de trabalho, etc.), entende que tudo isto basta para reconhecer como provados os factos acima referidos”.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, vê-se que o arguido acabou por colocar material e concretamente duas questões seguintes, como objecto do seu recurso:
– 1.a) a alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
– e 2.a) o assacado erro notório na apreciação da prova.
Pois bem, quanto à primeira questão, é de improceder o recurso, porquanto não tendo o arguido apresentado contestação escrita no prazo legal de dez dias contado da notificação da acusação, todo o tema probando do processo que lhe fosse desfavorável já se encontrou assim delimitado pelo elenco de factos aí imputados pelo Ministério Público, e tendo a M.ma Juíza autora da sentença recorrida dado como inteiramente provada essa factualidade, não pode ter havido qualquer lacuna na investigação desse mesmo objecto do processo, de maneira que não pode ter ocorrido, in casu, o vício previsto na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Sendo de frisar, por outro lado, que tendo o Tribunal a quo dado por materialmente provado que o restaurante dos autos estava a recrutar pessoal trabalhador, que o senhor C se dirigiu em 6 de Dezembro de 2010 a esse restaurante para o efeito, e que o arguido, apesar de saber que C possuía Passaporte Filipino e um recibo de recepção do pedido de autorização de residência emitido pelo Serviço de Migração do CPSP, empregou, na mesma, de modo voluntário, livre e consciente, esse mesmo senhor já desde o dia seguinte, para ser padeiro-aprendiz no restaurante, sabendo o próprio arguido que essa conduta sua era proibida e punível por lei, isto tudo já dá para sustentar a decisão condenatória penal emitida na sentença recorrida, ainda que o arguido não tenha negociado ainda com tal senhor envolvido no caso sobre a remuneração (é que a não negociação ainda da remuneração não afasta a existência da retribuição como um dos requisitos essenciais, juscivilmente falando, caracterizadores da relação de trabalho por conta alheia nos termos definidos no art.º 1079.º, n.º 1, do vigente Código Civil, nem afasta a hipótese de ser negociada a remuneração em data posterior).
E agora do também assacado vício de erro notório na apreciação da prova, a razão também não está no lado do recorrente, dado que a propósito desta questão, realiza este Tribunal ad quem que após examinados criticamente todos os elementos referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória ora recorrida, não se vislumbra evidente que a M.ma Juíza a quo, ao ter julgado como provados os factos já acima referenciados na parte II do presente acórdão de recurso, tenha violado alguma regra da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, ou alguma norma jurídica sobre o valor da prova, ou alguma das leges artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, sendo, pois, razoável, e aliás mui convincente, o resultado desse julgamento feito em primeira instância, pelo que não pode vir o arguido tentar fazer sindicar gratuitamente a livre convicção a que chegou a M.ma Juíza a quo sob aval do art.o 114.o do CPP.
Do assim concluído, flui naturalmente que não se pode absolver o arguido do crime imputado, porque não há qualquer dúvida razoável no caso concreto a impor essa almejada absolvição.
Dest’arte, e sem mais indagação por ociosa, naufraga o recurso in totum.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo arguido, com dez UC de taxa de justiça.
Comunique ao Corpo de Polícia de Segurança Pública.
Macau, 20 de Junho de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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