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Processo nº 587/2010
Data do Acórdão: 20JUN2013


Assuntos:

Ineptidão da petição inicial


SUMÁRIO

Se a providência que o autor solicite ao Tribunal não estiver em contradição com as razões de direito e o fundamento de facto, não se verificará a ineptidão da petição inicial a que se refere o artº 139º/2-b) do CPC.



O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 587/2010


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

Na acção ordinária registada sob o nº CV1-09-0008-CAO e que corre os seus termos no Tribunal Judicial de Base, intentada por A, B e C, devidamente identificados nos autos, contra VENETIAN COTAI, S.A., VENETIAN MACAU, S.A., VENETIAN VIAGENS, LIMITADA, LAS VEGAS SANDS CORP., BANK OF NOVA SCOTIA, foi proferido seguinte despacho julgando procedentes as excepções dilatórias de nulidade de processo, por ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade activa e, em consequência, absolvendo as Rés da instância:
 
 O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
*
Da ineptidão da Petição Inicial e da ilegitimidade dos AA:
A, portador do BIR Nº. XXX,B, portador do BIR Nº. XXX, e C, portador do BIR Nº.:XXX propuseram a presente acção de declaração de nulidade, com processo comum ordinário, contra as sociedades comerciais VENETIAN COTAI, S.A.,VENETIAN MACAU S.A., VENETIAN VIAGENS, LIMITADA, LAS VEGAS SANDS CORP., e BANK OF NOVA SCOTIA.
Com esta acção pretendem que o Tribunal declare a irregistabilidade das seguintes marcas:
Da Primeira R: N/16216, N/16217, N/16218, N/16219, N/16220, N/16221, N/16222, N/16223, N/16224, N/16225, N/16226, N/16227, N/16228, N/16356, N/16357, N/16358, N/16359, N/16362, N/16363, N/16364, N/16365, N/16366, N/16367, N/16368, N/16369, N/16370, N/16371, N/16372, N/16373, N/16374, N/16375, N/16376, N/22186, N/22187, N/22188, N/35838, N/35839;
Da Segunda R.: N/24226, N/24227, N/24228, N/24229, N/24230, N/24231, N/24232, N/24233, N/24234, N/24235, N/24236, N/24237, N/24238, N/24239, N/24240, N/24241;
Da Terceira R.: N/25973, N/25974, N/25975, N/25976, N/25977, N/25978, N/25979, N/25980, N/25981, N/25982, N/25983, N/25984, N/25985, N/25986;
Da Quarta R.: N/16440, N/16441, N/16442, N/16443, N/16444, N/16445, N/16446, N/16447, N/16448, N/16449, N/16450, N/16451, N/16452, N/16453, N/16454, N/16455, N/16456, N/16457, N/16458, N/16459, N/16460, N/16461, N/16462, N/16463, N/16464, N/16465, N/16466, N/16467, N/16468, N/16469, N/16470, N/16471, N/16472, N/16473, N/16474, N/16475, N/16476, N/16477, N/16478, N/16479, N/16480, N/16481, N/16482, N/16483, N/16484, N/16485, N/16486, N/16487, N/16488, N/16489, N/16490, N/21959, N/21960, N/21961, N/21962, N/21963, N/21964, N/21965, N/21966, N/21967, N/21968, N/21969, N/21970, N/21971, N/21972, N/21973, N/21974, N/21975, N/21976, N/21977, N/21978, N/21979, N/21980, N/21981, N/21982, N/21983, N/21984, N/29017, N/31064, N/31065, N/31066, N/31067, N/33313, N/33314, N/33315, N/33316, N/33317, N/35262, N/35808, N/35809, N/35810, N/35811, N/37731, N/37732, N/37733, N/37734, N/37735, N/37736, N/37737, N/37738, N/37739, N/37740, N/37741, N/37742, N/37743, N/37744, N/37745, N/37746, N/37747, N/37748, N/37749, N/37750, N/37751, N/37752, N/37753, N/37754, N/37755, N/37756, N/37757, N/37758, N/37759, N/37760, N/37761, N/37762, N/37763, N/37764, N/37765, N/37766, N/37767, N/37768, N/37769, N/37770, N/37771, N/37772, N/37773, N/37774, N/37775, N/37776, N/37777, N/37778, N/37779, N/37780, N/37781, N/37782, N/37783, N/37784, N/37785, N/37786, N/37787, N/37788, N/37789, N/37790, N/37791, N/37792, N/37793, N/37794, N/37795, N/37796, N/37797, N/37798, N/37799, N/37800, N/37801, N/37802, N/37803, N/37804, N/37805, N/37806, N/37807, N/37808, N/37809, N/37810, N/37811, N/37812, N/37813, N/37814, N/37815, N/37816, N/37947, N/37948, N/37949, N/37950, N/38597, N/38598, N/38599, N/38600, N/40701, N/40702, N/40703, N/40704, N/40705, N/40706, N/40707, N/40708, N/40709 e N/40710.
Pedindo ainda que, caso as marcas em questão já se encontrem definitivamente registadas, seja declarada a sua nulidade, ordenando-se, consequentemente, a publicação dessa decisão em Boletim Oficial.
Para tanto alegam, muito resumidamente, que a partir de 7 de Março de 2005 as 4 primeiras RR., no âmbito da relação de grupo em que estão estruturadas, procederam ao registo de diversas marcas nominativas e mistas (cerca de 500), que têm como elemento componente parte do vocabulário corrente e toponímico de Macau, entre outras, o termo “Cotai”, e que não cumprem os requisitos legais de registabilidade. Acrescentam que algumas dessas marcas se encontram já registadas, mas não o poderiam ter sido, e outras ainda têm o processo de registo em curso, aguardando decisão da DSE, pretendendo que o Tribunal defina quais – das cerca de 260 marcas - as que não são apropriáveis pela via do registo, para assim ser considerado aquando da análise daquelas que ainda não foram registadas ou estão em fase de recurso.
Para justificarem a sua legitimidade e interesse na propositura desta acção os AA alegam que são um grupo de cidadãos de Macau, no pleno gozo dos seus direitos cívicos, concedidos pela Lei Básica da RAEM e nessa qualidade, pretendem zelar pela manutenção do património cultural da RAEM, que compreende necessariamente as suas expressões coloquiais e oficiais, para designação de uma determinada zona da RAEM e que vêem qualquer iniciativa negocial futura que pretendam encetar numa zona de RAEM, imediatamente limitada pelas RR, pelo que, nos termos dos artigos 59.º. do Código de Processo Civil e do artigo 49.º, n.º 2 do RJPI concluem que estão munidos da necessária legitimidade activa e interesse processual .
Na sua contestação conjunta, as RR arguiram, entre outras excepções, a ineptidão da petição inicial e a ilegitimidade dos AA com base nos seguintes fundamentos que aqui se indicam resumidamente:
- os AA pretendem que seja proferida sentença que “declare a irregistabilidade” das marcas das RR. e que “declare a nulidade das marcas supra referidas que já se encontrem definitivamente registadas, todavia, o primeiro pedido não tem consagração legal;
- os AA estão obrigados a recorrer aos procedimentos previstos no RJPI – reclamação, recurso judicial e acção de nulidade ou de anulabilidade - no momento e pressuposto próprios.
- não existe o direito à declaração da “irregistabilidade” de marcas e os tribunais, quer por via de acção, quer por via de recurso, devem pronunciar-se, sobre a validade de um registo de marca já concedido ou sobre a inscrição no registo de uma marca cujo registo foi pedido, todavia, não podem pronunciar-se sobre a “registabilidade” ou “irregistabilidade” de marcas.
- o correspondente pedido formulado pelos AA. é, por conseguinte, ilegal e ininteligível e subjacente à sua actuação está uma cumulação de pedidos ilegal, pois que substancialmente incompatíveis, visto que a estas diferentes situações administrativas dos registos de marcas correspondem meios de impugnação próprios.
- a qualificação feita pelos AA. dos interesses em jogo – interesses difusos – não é correcta.
- os direitos de propriedade industrial não bulem nem com o património cultural nem com o domínio público da RAEM;
- arredada a hipótese da “acção popular”, não têm os AA. Legitimidade nos termos previstos no RJPI e no Código Civil uma vez que “interessado” será, sempre, alguém que vê a sua esfera jurídica afectada por um qualquer acto, neste caso um acto de registo, quer por ser titular de uma marca prioritária que o novo registo imita, quer por um concorrente ter obtido o exclusivo de uma marca que o “interessado” usa, ou pretende usar, no mercado e que deverá manter-se de uso livre, quer por outra razão legítima.
- no que respeita à alegação de concorrência desleal, a ilegitimidade dos AA. resulta também do facto de se não enquadrarem na categoria de lesados à qual a lei reserva o direito de acção, por força do disposto no artigo 170.º do Código Comercial;
Os AA responderam à matéria de excepção invocada pelas RR, defendendo a sua total improcedência, conforme melhor se colhe da sua réplica que, por razões de brevidade de exposição, aqui se dá por integralmente reproduzida,
Cumpre decidir, nos termos previstos nos artigos 429.º, n.º 1, a), 414.º, 413.º, alíneas a) e e) do CPC, se estamos perante a nulidade de todo o processo e se existe ilegitimidade de alguma das partes, nomeadamente, do lado activo.
O artigo 139.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil estatui que: é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial, ou seja, a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
Como refere Antunes Varela (in Manuel de Processo Civil, 2.ª Ed. Coimbra Ed. 1985, pág. 243 e ss) “ao propor a acção, o autor formulará a pretensão de tutela jurisdicional que visa obter e exporá as razões de facto e de direito em que a fundamenta”.
A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao pedido e o pedido é meio de tutela jurisdicional pretendido e há oposição entre a causa de pedir e o pedido quando este brigue com aquela, ou seja, a conclusão pretendida, em vez de ser a consequência lógica das premissas, está em oposição com elas; estamos perante um raciocínio viciado e, portanto, estamos perante uma conclusão errada, como escreveu Alberto dos Reis (no Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 1960, pág. 381).
Nesse seguimento, Antunes Varela (citado por Abílio Neto in Código de Processo Civil Anotado 17.ª Ed. Junho 2003, pág. 271) fez a seguinte anotação para que o retrato da figura processual (contradição entre o pedido e causa de pedir) fosse dado em corpo inteiro, só faltou ao Mestre acrescentar que a existência ou a falta do nexo lógico entre o facto concreto (que é a causa de pedir) e a providência judiciária requerida (o pedido) é dada ao julgador através da norma aplicável à pretensão formulada.
Ao proporem esta acção - que identificaram, na Petição Inicial , como sendo uma “Acção de Declaração de Nulidade, com processo comum ordinário” - os AA pretendem que o Tribunal declare irregistáveis as marcas das RR cujo registo ainda não foi concedido e nulas aquelas que já se encontram registadas.
A causa de pedir que serve de fundamento a estes pedidos consiste na alegação de que as marcas das RR, devidamente identificadas na PI, sofrem todas do mesmo vício – falta de capacidade distintiva – em violação do disposto nos artigos 197.º e 199.º do Regime Jurídico da Propriedade Industrial aprovado pelo Decreto-Lei n.º 97/99/M de 13.12 (doravante apenas RJPI); vício que, como os próprios AA admitem, acarreta a nulidade do respectivo título de propriedade industrial, nos termos expressamente previstos no artigo 47.º do RJPI.
Como os AA igualmente reconhecerão, a obtenção de um título de propriedade industrial pressupõe o respectivo registo, nos termos previstos nos artigos 47.º, 48.º e 49.º do RJPI, exigindo-se que a acção tendente à declaração de nulidade ou anulabilidade seja intentada pelo Ministério Público ou por qualquer interessado contra o titular inscrito do direito, ou seja, contra aqueles que conseguiram registar na RAEM um direito de propriedade industrial, no caso, as suas marcas (cfr. artigos 1.º, 5.º, 6.º, n.º 1 e 34.º todos do RJPI).
O próprio artigo 229.º do RJPI especificamente prevê a nulidade do registo da marca.
Ora, na presente acção os AA, com base na causa de pedir supra enunciada - factos consubstanciadores de uma causa geral de nulidade de títulos de propriedade industrial – pretendem que o tribunal declare inexistentes direitos de propriedade industrial ainda não registados.
Salvo melhor opinião, a causa de pedir em que os AA alicerçam a acção está em contradição lógica com esse pedido; das duas umas, ou já existe registo a favor das RR e é possível apreciar se esses títulos estão afectados pela invocada causa de nulidade; ou, não existindo título (entenda-se registo), não existe ainda fundamento para a anulabilidade ou nulidade desse registo e como tal dessa causa de pedir não se poderá extrair a alegada irregistabilidade, que mais não é do que a falta do direito ao registo, provocada pelo vício da nulidade (é da essência do silogismo judiciário que a conclusão se contenha nas premissas e seja emanação lógica das mesmas).
Estamos, pois, salvo melhor juízo, perante uma situação de “ininteligibilidade do pedido como consequência daquela causa de pedir” como qualifica Anselmo de Castro (in Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra Almedina, 1982, II, pág. 224 e ss.).
Assiste, pois, inteira razão às RR quando alegam que a lei estabelece os diversos mecanismos que se encontram à disposição dos interessados para impugnarem o registo de marcas que, no seu entender, enfermem de algum vício, ou seja, o processo de reclamação, previsto no artigo 211.º do RJPI, a qual deverá ser apresentada no prazo de 2 meses a contar da publicação do pedido de registo no Boletim Oficial; o recurso judicial, nos termos do disposto no artigo 275.º do RJPI e uma vez concedido o registo de uma marca e decorrido o prazo para interposição de recurso judicial, os interessados terão de interpor uma acção judicial destinada à obtenção de uma sentença que, conforme o vício invocado, declare a nulidade ou anule o registo da marca em causa.
Pese embora, os AA, na Réplica, tentem alterar a natureza da acção que propuseram, qualificando-a como de simples apreciação negativa tendente à declaração em juízo da inexistência do direito de propriedade industrial, a verdade é que a causa de pedir invocada constitui, nos termos da lei, uma causa geral de nulidade dos títulos de propriedade industrial e, a essa qualificação legal não podem as partes, e muito menos o Tribunal, alhear-se. De facto, a todo o direito corresponderá uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo e, no vertente caso, à invocação de uma causa geral de nulidade de um título de propriedade industrial corresponderá a acção prevista no artigo 49.º do RJPI.
Em conclusão, julgamos que a causa de pedir invocada na acção e a tutela jurisdicional pretendida – declaração de irregistabilidade das marcas das RR – estão em contradição lógica o que se traduz, parcialmente, na falta de objecto processual e conduz, nos termos previstos no artigo 139.º, n.º 1 do Código de Processo Civil à nulidade de todo o processo, obstativa do conhecimento do mérito da causa e que acarreta a absolvição das RR da instância.
*
De todo o modo, mesmo que se entenda que a declarada nulidade não afecta todo o processo e permite o conhecimento do pedido de declaração de nulidade das marcas já registadas, não podemos deixar de consignar que, no nosso juízo e ressalvando sempre melhor opinião, os AA também não têm legitimidade e/ou interesse na propositura desta acção.
Senão vejamos.
Os AA para justificarem a sua legitimidade e interesse na propositura desta acção alegam que são um grupo de cidadãos de Macau, no pleno gozo dos seus direitos cívicos, e nessa qualidade, pretendem zelar pela manutenção do património cultural da RAEM, que compreende necessariamente as suas expressões coloquiais e oficiais para designação de uma determinada zona da RAEM e, por outro lado, são interessados porque vêem qualquer iniciativa negocial futura que pretendam encetar na RAEM limitada pelas RR.
Os AA invocam, pois, o artigo 59.º. do Código de Processo Civil e o artigo 49.º, n.º 2 do RJPI para demonstrarem ter legitimidade activa.
Ora, o artigo 59.º do Código de Processo Civil diz respeito à chamada “Acção Popular”, acções que se destinam à tutela de interesses colectivos e difusos, indicando a norma, a título exemplificativo, alguns desses domínios, ou seja, defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural, do domínio público, protecção do consumo de bens e serviços.
Como explica Mariana Sotto Maior (in o Direito de Acção Popular na Cosntituição da República Portuguesa, Procuradoria Geral da República, Gabinete de Documentação e Direito Comparado n.º 75/76, 1998), A necessidade de proteger uma série de interesses plurindividuais, que não são protegidos pelos instrumentos clássicos, fez nascer a noção de interesses difusos, em áreas conexas com a atribuição de direitos económicos, sociais e culturais, sem que com eles se confundam, nomeadamente em matérias relacionadas com o ambiente, consumidores e património cultural.
Segundo argumentam os AA, as expressões utilizadas pelas RR na composição das suas marcas fazem parte do património cultural e do domínio público da RAEM e daí que tenham interesse para propor uma acção tendente à sua defesa.
Parece-nos manifesto que tais topónimos não fazem parte do “património cultural” da RAEM, nem do seu domínio público, independentemente da discussão em torno de serem ou não susceptíveis de protecção enquanto marcas.
  O Património Cultural Intangível (...)abrangendo as expressões culturais e as tradições que um grupo de indivíduos preserva em respeito da sua ancestralidade, para as gerações futuras. São exemplos de património imaterial: os saberes, os modos de fazer, as formas de expressão, celebrações, as festas e danças populares, lendas, músicas, costumes e outras tradições (in,www.pt.wikipédia.org.)
Como bem referem as RR a melhor definição do que seja o “património cultural intangível” há que buscar-se na Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Intangível, adoptada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, na sua 32.ª Sessão, em 3 de Novembro de 2003.
Nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, da Convenção, “Entende-se por «património cultural intangível» as práticas, representações, expressões, conhecimento, técnicas — bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais com estes associados — que as comunidades, os grupos e, em certos casos, os indivíduos reconhecem como fazendo parte do seu património cultural. Tal património cultural intangível, transmitido de geração em geração, é recriado permanentemente pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interacção com a natureza e da sua história, conferindo-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo, assim, para promover o respeito pela diversidade cultural e criatividade humana. Esclarecendo o n.º 2 do mesmo artigo que “O «património cultural intangível», tal como definido no n.º 1 anterior, manifesta-se, nomeadamente, nos domínios seguintes: a) Tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do património cultural intangível; b) Expressões artísticas; c) Práticas sociais, rituais e acontecimentos festivos; d) Conhecimentos e as práticas relativos à natureza e ao universo; e) Técnicas artesanais tradicionais.”
Os nomes de locais ou lugares de Macau, como acontece com “Cotai” e “Strip” não fazem parte do seu património cultural intangível, nem do domínio público, nem constituem qualquer outro interesse difuso ou colectivo que possam ser defendidos pelos ora AA através da acção prevista no artigo 59.º do Código de Processo Civil.
Não olvidamos que, em casos de nulidade absoluta da marca, há quem defenda a possibilidade de se lançar mão de uma acção, que a doutrina qualifica mesmo de “acção popular”, dado que nessas situações estão em causa, muitas das vezes, a defesa do sistema de livre concorrência, protecção de consumidores ou a ordem pública lato sensu; todavia, mesmo nesses casos só terão legitimidade para intentar essa acção os interessados que se considerem prejudicados com o registo dessa marca. Ora, os AA, nesta acção, não revelam de que forma são prejudicados com tais registos... não basta alegar que estão impedidos de exercer uma actividade negocial futura, o que aliás fazem de modo vago e difuso.
De facto, os AA não alegam matéria que permita ao tribunal considerá-los como “interessados” nos termos previstos no artigo 49.º, n.º 2, do RJPI, sendo certo que o douto acórdão que citam no artigo 115.º da sua petição inicial assenta em pressupostos de facto bem distintos dos do presente caso. O interessado, nessa acção, era um vitivinicultor estabelecido, a actuar em termos empresariais, numa determinada região vinícola de Portugal; enquanto que os AA apenas se limitam a alegar que são cidadãos residentes e a actuação das RR impede-os de exercer qualquer iniciativa negocial futura que pretendam encetar.
Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, o interessado para os efeitos do disposto no artigo 49.º, n.º 2, do RJPI terá de ser alguém que nisso demonstre ter um interesse legítimo, ou seja, que se considere prejudicado pelo registo da marca.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (in Código de Processo Civil anotado vol. I 2.ª Ed. Pág. 244) a nulidade pode ser invocada, diz a lei, por qualquer interessado, isto é, pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio (no caso, entenda-se pelo acto).
Aqui chegados, pelas razões supra expostos, julgo procedentes as excepções dilatórias de nulidade do processo, por ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade activa e, em consequência, absolvo as RR da instância.
Custas pelos AA.
Notifique.


Inconformados vieram os Autores interpor recurso desse despacho para este Tribunal de Segunda instância, concluindo e pedindo:

1. A sentença Recorrida julgou procedentes as excepções dilatórias de nulidade do processo, por ineptidão da petição inicial e por ilegitimidade activa dos Autores, absolvendo em consequência as Rés da instância;
2. A causa de pedir encontra-se perfeitamente identificada ao longo da petição inicial, assentando fundamentalmente na falta de características essenciais das marcas;
3. Os Autores pedem, nomeadamente, a declaração de nulidade de marcas que já se encontram registadas, em conformidade com o art.49° nº1 do RJPI;
4. Não existe ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir nem tão pouco contradição entre o pedido e a causa de pedir, nos termos previstos nas alíneas a) e b) do nº2 do art.139 do Código de Processo Civil;
5. De qualquer forma, a existir razões para considerar a petição inepta, o Tribunal sempre teria que convidar os Autores a aperfeiçoar a sua petição inicial, antes de proferir sentença;
6. A legitimidade dos Autores assenta no facto de serem pessoas interessadas na defesa do património cultural e do domínio público, na medida em que as marcas "Macau Strip" e "Cotai Strip" são compostas por expressões de conteúdo genérico referentes a zonas do território da RAEM, insusceptíveis de registo;
7. A Convenção em nada mitiga a consideração das denominações históricas de zonas da RAEM como património cultural intangível;
8. A ilegalidade das decisões da DSE só pode ser atacada através de uma acção judicial proposta por qualquer interessado, conforme o disposto no art. 49° do RJPI;
9. Os Autores encontram-se munidos da necessária legitimidade e interesse para pugnarem pela nulidade das marcas nos presentes autos.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve considerar-se que a sentença recorrida fez uma deficiente interpretação dos artigos 139°, 389° nº1 e 59° do Código Processo Civil e ainda dos arts.47° e 49° n°.2 do Regime Jurídico da Propriedade Intelectual, pelo que deverá ser revogada a sentença recorrida, baixando os autos ao Tribunal Judicial de Base para que conheça do mérito da causa por serem os AA. parte legítima e não enfermar a petição de qualquer vício.
Alternativamente, devem os AA ser considerados parte legítima nos presentes autos e, caso se considere que a petição é ininteligível (o que apenas se admite por cautela de patrocínio), devem os autos baixar ao Tribunal Judicial de Base para que convide os AA. a aperfeiçoarem a petição inicial, prosseguindo os autos os seus ulteriores termos.

Notificadas as Rés, responderam pugnando pela improcedência do recurso (vide as fls. 383 a 396 dos p. autos).

II

Na presente acção, os Autores pediram que sejam declaradas irregistáveis as marcas, integrantes de elementos nominativos Macau Strip ou Cotai Strip, e que sejam anuladas todas as marcas, integrantes de elementos nominativos Macau Strip ou Cotai Strip, entretanto registadas, com fundamento na insusceptibilidade de protecção desses elementos nominativos que consistem em meros topónimos ou nas denominações geográficas de determinada zona de Macau, nos termos do disposto no artº 47º-b) e 199º/1-b) do RJPI.

Findos os articulados, a Exmª Juiz a quo julgou que a causa de pedir invocada na acção e a tutela jurisdicional pretendida – declaração de irregistabilidade das marcas das Rés – estão em contradição lógica o que se traduz, parcialmente, na falta de objecto processual e conduz, nos termos previstos no artº 139º, nº 1 do Código de Processo Civil à nulidade de todo o processo, obstativa do conhecimento do mérito da causa e que acarreta a absolvição das Rés da instância.

E além disso, na óptica da Exmª Juiz a quo, mesmo que se entenda que a nulidade motivada pela ineptidão da petição inicial não afecte todo o processo, não tendo invocado matéria que permita ao tribunal considera-los como interessados para efeitos do disposto no artº 49º/2 do RJPI, ou seja, prejudicados pelo registo das marcas entretanto registadas, os Autores carecem da legitimidade activa para propor a presente acção.

E portanto, julgou procedentes as excepções dilatórias de nulidade do processo, por ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade activa e, em consequência, absolveu as Rés da instância.

Inconformados os Autores recorreram para este TSI.

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Em face das conclusões na petição dos recursos interpostos por ambas as partes, são em síntese as seguintes questões de direito que delimitam o objecto da nossa apreciação:

1. Da ineptidão da petição inicial; e

2. Da ilegitimidade activa.


1. Da ineptidão da petição inicial

O conceito legal da ineptidão da petição inicial encontra-se consagrado no artº 139º/2 do CPC, à luz do qual se diz inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

A Exmª Juiz a quo julgou inepta a petição inicial com fundamento de que tendo os Autores pretendido que o tribunal declare inexistentes direitos de propriedade industrial ainda não registados, a causa de pedir está em contradição lógica com o pedido.

Portanto, não estão em causa a falta e a ininteligibilidade do pedido, mas apenas a contradição entre elas, a que se refere a alínea b) do artigo citado.

Apesar de incidir sobre o conceito da ineptidão da petição inicial consagrado na redacção do texto legal do CPC de 1939, o certo é que o douto ensinamento do Prof. Alberto dos Reis acerca desta matéria mantém a sua plena actualidade e pertinência, mesmo face à redacção actual do CPC de Macau.

Assim, nada é mais elucidativo do que reproduzir aqui o douto ensinamento a propósito da contradição do pedido com a causa de pedir:

  A petição é inepta, diz a alínea c), quando o pedido estiver em contradição com a causa de pedir. Esta nulidade tem o seu paralelismo no n.º 3.° do artigo 668.°: a sentença é nula quando os fundamentos estiverem em oposição com a decisão.
  Na verdade, a causa de pedir deve estar para com o pedido na mesma relação lógica em que, na sentença, os fundamentos hão-de estar para com a decisão. O pedido tem, como a decisão, o valor e o significado duma conclusão; a causa de pedir, do mesmo modo que os fundamentos de facto da sentença, é a base, o ponto de apoio, uma das premissas em que assenta a conclusão. Isto basta para mostrar que entre a causa de pedir e o pedido deve existir o mesmo nexo lógico que entre as premissas dum silogismo e a sua conclusão.
  A petição inicial, para ser uma peça bem elaborada e construída, deve ter a contextura lógica dum silogismo, deve poder reduzir-se, em esquema, a um raciocínio, com a sua premissa maior (razões de direito), a sua premissa menor (fundamentos de facto) e a sua conclusão (pedido). O autor, ao preparar e organizar a petição, há-de raciocinar como raciocinará mais tarde o juiz, na sentença, para julgar procedente a acção. O esqueleto da petição terá de ser forçosamente um silogismo, sob pena de não poder desempenhar convenientemente a função que lhe é própria. Não quere isto dizer, é claro, que o silogismo apareça explicitamente enunciado no articulado; o que pretendemos significar é que, se a petição não puder transformar-se, em substância, num silogismo, se não tiver sido concebida e elaborada sôbre a base dum silogismo mentalmente formulado, há-de ser fatalmente uma peça infeliz e comprometedora.
  Pois bem. É da essência do silogismo que a conclusão se contenha nas premissas, no sentido de ser o corolário natural e a emanação lógica delas. Se a conclusão, em vez de ser a consequência lógica das premissas, estiver em oposição com elas, teremos, não um silogismo rigorosamente lógico, mas um raciocínio viciado, e portanto uma conclusão errada.
  Compreende-se, por isso, que a lei declare inepta a petição cuja conclusão ou pedido briga com a causa de pedir. Esta é mesmo, a nosso ver, a modalidade mais característica de ineptidão. Se o autor formula um pedido que, longe de ter a sua justificação na causa de pedir, está em flagrante oposição com ela, a inépcia é manifesta. – Alberto Dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2º, pág. 380 a 382.

A Exmª Juiz a quo entende que os Autores pretendem que o Tribunal declare inexistentes direitos de propriedade industrial ainda não registados.

Parece não só essa pretensão.

Pois, conforme se vê na petição inicial, os Autores alegaram como causa de pedir que as marcas registadas e registandas, por conterem os elementos nominativos MACAU STRIP ou COTAI STRIP, não são susceptíveis de protecção por falta de capacidade distintiva nem apropriáveis por qualquer comerciante através do registo como marca ou elemento componente de marca por consistirem apenas nos topónimos ou designações geográficas de determinadas zonas da RAEM.

Ao passo que o pedido, ou seja, a providência que os Autores solicitaram ao Tribunal é declarar a irregistabilidade das marcas contendo com esses elementos nominativos MACAU STRIP ou COTAI STRIP, nos procedimentos administrativos pendentes a correr na DSE, e declarar a nulidade das marcas contendo com os elementos nominativos MACAU STRIP ou COTAI STRIP, que já se encontrem definitivamente registadas.

Ou seja, os Autores estão a pedir providências diferenciadas, consoante se tratam das marcas já registadas ou das ainda registandas.

Em relação às marcas já registadas, pedem a declaração da nulidade, mas em relação às ainda registandas, pedem apenas a declaração da sua irregistabilidade, com efeito de caso julgado.

Compreende-se porque é que os Autores invocaram a expressão irregistabilidade nessa segunda hipótese, pois se as marcas contendo os tais elementos nominativos não merecerem protecção face à lei, as mesmas não podem ser objecto do registo.

E se a marca for insusceptível de registo por falta de capacidade distintiva, a consequência será recusa do registo, quando o pedido não tiver sido definitivamente deferido, ou a impugnabilidade da decisão administrativa que o concede, por via do recurso judicial a que se referem os artºs 275º e s.s. do RJPI, ou a susceptibilidade de ser declarada nula – artºs 47º e s.s. do RJPI.

Ora, quer a recusa do registo de marca pela DSE, quer a decisão judicial que decidir (revogar ou confirmar) a decisão da DSE na concessão ou negação do registo de marca e que declarar nula a marca já definitivamente registada, todas elas têm por fundamento comum a insusceptibilidade de registo da marca em causa, ou seja, a dita irregistabilidade da marca.

Assim, ao contrário do que entendeu a Exmª Juiz a quo, não está a consequência (a invocada irregistabilidade dos tais elementos nominativos) em contradição com a premissa maior (razões de direito, ou seja, a inovada falta da capacidade distintiva dos tais elementos nominativos) e a premissa menor (fundamento de facto, isto é, o facto de os tais elementos nominativos consistirem num mero topónimo de Macau).

Portanto, independentemente da verificação ou não das condições de procedência de ambos os pedidos, ou da adequação do meio processual adoptado, o raciocínio que nos foi trazido na petição inicial é lógico e não há antagonismo entre a causa de pedir e o pedido.

É de revogar portanto o despacho nessa parte que julgou inepta a petição inicial.


2. Da ilegitimidade activa e da falta de interesse de agir

Nessa parte de recurso, o que ficou decidido no despacho recorrido (integralmente transcrito supra) já merece a nossa inteira concordância.

Conforme se vê na Douta decisão ora recorrida nessa parte, foram demonstradas, com raciocínio inteligível e razões sensatas e convincentes, a ilegitimidade activa e a falta de interesse de agir por parte dos Autores, não se nos afigura outra solução melhor do que a de louvar aqui o despacho recorrido nessa parte e, nos termos autorizados pelo artº 631º/5 do CPC, remeter para os Doutos fundamentos invocados nessa parte da decisão recorrida, julgando improcedente essa parte do recurso e confirmando o despacho de indeferimento com fundamento na ilegitimidade activa e na falta de interesse de agir.


Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar parcialmente procedente o recurso, revogando o despacho recorrido na parte que julgou inepta a petição inicial e mantendo a parte que absolveu as Rés da instância com fundamento na procedência da excepção dilatória de ilegitimidade activa.

Custas pelos recorrentes e pelos recorridos, na proporção de 3/4 e 1/4, respectivamente.

Notifique.

RAEM,20JUN2013

Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira