Processo n.º 263/2013 Data do acórdão: 2013-6-27 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– tema probando do processo
– lacuna na investigação do objecto do processo
– art.o 400.o, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal
– erro notório na apreciação da prova
– julgamento da matéria de facto
– art.o 114.o do Código de Processo Penal
– art.º 355.º, n.º 2, do Código de Processo Penal
– tráfico de estupefaciente
– atenuação especial da pena
– redução da pena
– cadastro criminal
– prevenção geral do crime
S U M Á R I O
1. Não tendo o arguido apresentado contestação escrita, todo o tema probando do processo que lhe fosse desfavorável já se encontrou delimitado pelo elenco de factos imputados na acusação, e tendo o tribunal autor do aresto condenatório dado como inteiramente provada essa factualidade, não pode ter havido qualquer lacuna na investigação desse objecto do processo, de maneira que, nessas circunstâncias, não pode ter ocorrido o vício previsto na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP).
2. Se após examinados criticamente todos os elementos referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória, não se vislumbra evidente ao tribunal ad quem que o tribunal a quo, ao ter julgado como provados todos os factos acusados ao arguido, tenha violado alguma regra da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, ou alguma norma jurídica sobre o valor da prova, ou alguma das leges artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, não pode vir o arguido recorrente, a pretexto de erro notório na apreciação da prova alegadamente cometido pelo tribunal a quo, tentar fazer sindicar gratuitamente a livre convicção a que chegou esse tribunal sob aval do art.o 114.o do CPP.
3. O art.o 355.o, n.o 2, do CPP não exige ao tribunal a exposição do iter do seu raciocínio aquando da formação da livre convicção sobre os factos.
4. Não se pode atenuar especialmente a pena do arguido no crime de tráfico de estupefacientes cometido nesta vez, porquanto ele já é um delinquente não primário, com três condenações penais anteriores, uma delas por um crime de resistência, e uma outra inclusivamente por um crime de abandono de sinistrado, tipos legais de crime esses muito censuráveis mesmo vistos em abstracto, e não se provando nenhuma circunstância no acórdão nesta vez recorrido susceptível de relevar em favor dele no sentido de diminuir acentuadamente a ilicitude dos factos cometidos relativos ao tráfico de droga (cfr. o critério material para atenuação especial, ou não, da pena, vertido no art.o 66.o, n.o 1, do Código Penal.
5. E ponderando sobretudo o referido cadastro criminal do arguido, por um lado, e, por outro, as prementes necessidades de prevenção geral do tipo-de-ilícito de tráfico de droga, também não se pode reduzir, em termos gerais, a sua pena de prisão já achada no acórdão recorrido para esse delito.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 263/2013
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 222 a 227v dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-12-0225-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material, na forma consumada, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, na pena de oito anos e dois meses de prisão, de um crime de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o dessa Lei, na pena de dois meses de prisão, e de um crime de detenção indevida de utensílio, p. e p. pelo art.o 15.o da mesma Lei, na pena de dois meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas três penas, finalmente na pena única de oito anos e três meses de prisão, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para imputar a esse acórdão os vícios de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, “contradição insanável da fundamentação” e “erro notório na apreciação da prova” e bem como o excesso na medida da pena, tudo relativamente ao crime de tráfico de estupefacientes, a fim de rogar a sua absolvição desse crime, ou o reenvio do processo para novo julgamento em relação a esse crime, e, subsidiariamente, a atenuação especial, ou, pelo menos, a redução da pena do mesmo crime (cfr. a motivação do recurso apresentada a fls. 234 a 237 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o Ministério Público no sentido de improcedência da argumentação do recorrente (cfr. a resposta de fls. 244 a 250v dos autos).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 257 a 259), pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência já feita nesta Segunda Instância, cumpre agora decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
O Tribunal a quo deu por provada toda a factualidade tal e qual como vinha acusada ao arguido pelo Ministério Público (cfr. o elenco da matéria de facto descrita em chinês como provada nas páginas 5 a 7 do texto do acórdão recorrido, em confronto com o conjunto de factos descritos na acusação deduzida nos autos).
Segundo essa factualidade provada, e na sua essência, com pertinência à solução do recurso a respeito do crime de tráfico de estupefacientes (e ora com tradução feita pelo relator para português):
– em 29 de Março de 2012, às 22:30 horas, no salão de chegada da Porta do Cerco, o pessoal da Polícia Judiciária interceptou o arguido A para investigação, na sequência da qual acabaram por serem descobertos, dentro da mochila trazida por este, 0,417 e 0,214 gramas líquidos de metanfetamina;
– no mesmo dia, às 23:30 horas, o pessoal da Polícia Judiciária foi fazer busca na residência do arguido sita numa fracção autónoma do Bairro da Areia Preta, na sequência da qual acabaram por serem descobertos, aí, 61,312 gramas líquidos de Ketamina contidos numa caixa de ferro de cor azul, 6,027 e 1,611 gramas líquidos de Ketamina contidos numa caixa de ferro de cor cinzenta, e uma garrafa com 70 ml de líquido contentor de Anfetamina, Metanfetamina e N,N-dimetanfetamina;
– todas as substâncias acima referidas foram adquiridas pelo arguido em Zhuhai, destinando-se a substância vulgarmente denominada “Ice” ao seu consumo próprio, e a Ketamina à venda por ele em Macau a outrem;
– o arguido sabia claramente da natureza e características das substâncias estupefacientes acima referidas;
– o arguido adquiriu, deteve e transportou as substâncias estupefacientes referidas, tendo agido livre, voluntária e conscientemente, sabendo claramente que a sua conduta era proibida e punível por lei.
Outrossim, mais apurou o Tribunal a quo que: o arguido já não era delinquente primário, tendo sido condenado no Processo n.o PCC-001-00-4, por um crime de resistência, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por dois anos (pena essa já declarada extinta), no Processo n.o CR2-03-0005-PCC (outrora n.o PCC-007-03-1), por um crime de fuga à responsabilidade, um crime de abandono de sinistrado e duas transgressões estradais, em nove meses de prisão e dez mil patacas de multa, suspensa a execução da prisão por três anos (penas essas já declaradas extintas), e no Processo n.o CR2-11-0085-PCC, por um crime de consumo ilícito de estupefaciente, em dois meses de prisão efectiva (já cumprida); o arguido declarou que antes de estar preso preventivamente, era bate-fichas, com cerca de doze mil patacas de rendimento mensal, com a mãe e uma filha a seu cargo, e a 3.a classe do curso primário como habilitações académicas.
Por outro lado, do exame dos autos, sabe-se que:
– o arguido não chegou a apresentar contestação à acusação.
– o Tribunal a quo autor do acórdão recorrido resumiu a fundamentação probatória dos factos provados nos seguintes termos, originalmente escritos em chinês, nas 14.a e 15.a linhas da página 8 desse texto decisório: “Depois da análise, de modo objectivo e em globalidade, das declarações do arguido e das testemunhas prestadas na audiência de julgamento, em confronto com os meios de prova documental examinados no decurso da audiência, a prova por apreensão de objectos, e outros elementos probatórios, este Tribunal Colectivo reconhece como provados os factos acima referidos”.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, vê-se que o arguido só se reagiu, na sua motivação do recurso, contra a decisão condenatória da Primeira Instância na parte respeitante à verificação do crime de tráfico de estupefacientes, e também à pena imposta a esse delito.
Quanto ao assacado vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, é de improceder o recurso, porquanto não tendo o arguido apresentado contestação à acusação, todo o tema probando do processo que lhe fosse desfavorável já se encontrou assim delimitado pelo elenco de factos aí imputados pelo Ministério Público, e tendo o Tribunal Colectivo autor do aresto recorrido dado como inteiramente provada essa factualidade, não pode ter havido qualquer lacuna na investigação desse mesmo objecto do processo, de maneira que não pode ter ocorrido, in casu, o vício previsto na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do vigente Código de Processo Penal (CPP).
Sendo de frisar, por outro lado, que tendo o Tribunal a quo dado por materialmente provado que da busca efectuada na residência do arguido resultou descoberto um conjunto de diversas substâncias estupefacientes por ele adquiridas em Zhuhai, destinando-se, de entre as quais, a Ketamina, na quantidade total de 68,95 gramas líquidos (61,312 + 6,027 + 1,611 gramas líquidos), à venda por ele em Macau a outrem, sabendo ele da natureza e características dessas substâncias, e do carácter proibido e da punibilidade da sua conduta por lei, e tendo agido ele de modo livre, voluntário e consciente, tudo isto já dá para sustentar a decisão do Tribunal recorrido que o condenou como autor material de um crime consumado de tráfico de estupefacientes.
E agora do também assacado vício de “erro notório na apreciação da prova”, a razão também não está no lado do recorrente, dado que a propósito desta questão, realiza este Tribunal ad quem que após examinados criticamente todos os elementos referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória ora recorrida, não se vislumbra evidente que o Tribunal a quo, ao ter julgado como provados os factos já acima referenciados na parte II do presente acórdão de recurso, tenha violado alguma regra da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, ou alguma norma jurídica sobre o valor da prova, ou alguma das leges artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, sendo, pois, razoável, o resultado desse julgamento feito em primeira instância, devido à inexistência de qualquer dúvida razoável a funcionar em favor do arguido, pelo que este não pode vir tentar fazer sindicar, gratuitamente, a livre convicção a que chegou o Tribunal a quo sob aval do art.o 114.o do CPP.
Do acima visto e analisado, decorre também a impossibilidade de surgir no caso dos autos, a também esgrimida “contradição insanável da fundamentação” no acórdão recorrido, sendo de chamar atenção do arguido recorrente para o facto de o art.o 355.o, n.o 2, do CPP nem exigir ao Tribunal recorrido a exposição do iter do seu raciocínio aquando da formação da livre convicção sobre os factos.
Do assim concluído, flui naturalmente que não se pode absolver o arguido do imputado crime de tráfico de estupefacientes, nem pode haver lugar ao reenvio do processo para novo julgamento em relação ao crime de tráfico de estupefacientes.
Resta, ainda, aquilatar do mérito da subsidiariamente levantada questão da medida da pena desse delito.
Pretende o arguido que seja especialmente atenuada a sua pena.
Mas, sendo ele já um delinquente não primário, com três condenações penais anteriores, uma delas por um crime de resistência, e uma outra inclusivamente por um crime de abandono de sinistrado, tipos legais de crime esses muito censuráveis mesmo vistos em abstracto, e não se provando nenhuma circunstância no acórdão recorrido susceptível de relevar em favor dele no sentido de diminuir acentuadamente a ilicitude dos factos cometidos relativos ao tráfico de Ketamina, é realmente necessário aplicar a pena correspondente ao crime desse tráfico na sua moldura normal de três a quinze anos de prisão, sem ilusão nenhuma por parte do recorrente (cfr. o critério material para atenuação especial, ou não, da pena, vertido no art.o 66.o, n.o 1, do vigente Código Penal (CP)).
E no concernente à também sempre pretendida redução, em termos gerais, da pena de oito anos e dois meses de prisão já achada no acórdão recorrido para o mesmo crime de tráfico, a razão também não está no lado do recorrente, uma vez que ponderando – nos termos e para os efeitos do disposto nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP – sobretudo o referido cadastro criminal do arguido, por um lado, e, por outro, as prementes necessidades de prevenção geral do tipo-de-ilícito penal em causa, tal pena de prisão concreta decidida no aresto impugnado já não pode admitir mais margem para diminuição.
Dest’arte, e sem mais indagação por ociosa, naufraga o recurso in totum.
IV – DECISÃO
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo arguido, com quinze UC de taxa de justiça, e com quatro mil e quinhentas patacas de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso, a adiantar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 27 de Junho de 2013.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_______________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
(Sem prejuízo do que fiz constar na minha declaração de voto de 21.03.2011, Proc. nº 81/2011)
Processo n.º 263/2013 Pág. 1/12