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Processo nº 456/2013 Data: 18.07.2013
(Autos de pedido de escusa)

Assunto : Pedido de escusa.



SUMÁRIO

1. A imparcialidade, como exigência específica de toda e qualquer decisão judicial, define-se, por via de regra, com a ausência de qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas que possam vir a ser afectadas pela decisão.

2. Porém, a verdade é que a imparcialidade do Juiz (e do Tribunal), não se apresenta sob uma noção unitária, reflectindo antes dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.
A perspectiva subjectiva, tem a ver com a posição pessoal pelo Juiz assumida, e presume-se até prova em contrário.

Por sua vez, na abordagem objectiva, em que são relevantes as aparências, intervem, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional, mas também todas as posições com relevância externa, que de um ponto de vista dos destinatários da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio quanto ao risco da existência de algum elemento ou preconceito que possa ser considerado em seu desfavor.
3. Apresenta-se assim a imparcialidade objectiva como um conceito construído sobre as “aparências”, e para não se cair numa “tirania das aparências”, impõe-se que os fundamentos ou motivos invocados sejam, em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, ponderando-se sempre que “não basta ser, há que parecer”.

4. O fim do processo de suspeição consiste em determinar, não se o juiz se encontra realmente impedido de se comportar com imparcialidade, mas se existe perigo de a sua intervenção ser encarada com desconfiança e suspeição pela comunidade.


O relator,

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Processo nº 456/2013
(Autos de pedido de escusa)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:




Relatório

1. A Exma Juíz do 1° Juízo de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Base deduziu pedido de escusa de intervir nos Autos de Inquérito nº 6745/2010 (NIC) que lhe foram distribuídos para efeitos de 1° interrogatório judicial aos arguidos, identificados nos autos.

No seu pedido, alegou, essencialmente, que conhece dois dos três arguidos dos autos há vários anos, (cerca de dez), com quem mantém relações de convívio e amizade, nomeadamente, com partilha de refeições em locais públicos, e que tal circunstancialismo seria apto a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade; (cfr., fls. 2 a 4).

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Em sede de vista, emitiu o Exmº Representante do Ministério Público douto Parecer nada opondo à concessão da peticionada escusa; (cfr. fls. 7-v).

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Colhidos os vistos legais dos Mmºs Juízes-Adjuntos, vieram os autos à conferência.

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Sendo este T.S.I. o competente para apreciar o pedido deduzido, (cfr., art. 34° do C.P.P.M., e, v.g., os Acs. do Vdo T.U.I. de 24.04.2002, Proc. n.° 5/2002 e de 17.05.2006, Proc. n.° 18/2006), e nada parecendo obstar, passa-se a decidir.

Fundamentação

2. Sob a epígrafe “Recusas e escusas”, preceitua o artº 32º do C.P.P.M. que:
“1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pela parte civil.
3. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições referidas no n.º 1.
4. Os actos processuais praticados por juiz recusado ou escusado até ao momento em que a recusa ou a escusa forem solicitadas só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os praticados posteriormente só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a decisão do processo”; (sub. nosso).

Atento o assim estatuído, desde logo se vê que não basta um (ainda que grande) “desconforto” ou “inconveniência” para se afastar um Magistrado de determinado processo que em conformidade com as normas legais aplicáveis lhe foi distribuído.

De facto, o princípio do Juiz natural pressupõe, em prol do respeito pelos direitos dos arguidos, que na causa intervirá o Juiz que o deve ser, segundo as regras de competência legalmente estebelecidadas para o efeito, implicando que o mesmo só deva ser afastado quando outros princípios ou regras, porventura, de maior ou igual dignidade, o ponham em causa, como sucede, v.g., quando não ofereça garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função.

Com efeito, o dito princípio do juiz natural não foi estabelecido em função do poder de punir, mas (somente) para protecção da liberdade e do direito de defesa do arguido.

Assim postas as coisas, vejamos se o circunstancialismo invocado justifica a peticionada escusa.

A imparcialidade, como exigência específica de toda e qualquer decisão judicial, define-se, por via de regra, com a ausência de qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas que possam vir a ser afectadas pela decisão.

Tem-se entendido que os actos geradores de desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz hão-de ser de tal modo suspeitos que a generalidade da opinião pública sinta que o Juiz em causa, está tomado de preconceito relativamente à decisão, ou que, de algum modo, antecipou o seu sentido.

Porém, a verdade é que a imparcialidade do Juiz (e do Tribunal), não se apresenta sob uma noção unitária, reflectindo antes dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.
A perspectiva subjectiva, tem a ver com a posição pessoal pelo Juiz assumida, e presume-se até prova em contrário.

Por sua vez, na abordagem objectiva, em que são relevantes as aparências, intervem, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional, mas também todas as posições com relevância externa, que de um ponto de vista dos destinatários da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio quanto ao risco da existência de algum elemento ou preconceito que possa ser considerado em seu desfavor.

Apresenta-se assim a imparcialidade objectiva como um conceito construído sobre as “aparências”, e para não se cair numa “tirania das aparências”, impõe-se que os fundamentos ou motivos invocados sejam, em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, ponderando-se sempre que “não basta ser, há que parecer”.

Como afirma o Prof. Figueiredo Dias: “o fim do processo de suspeição consiste em determinar, não se o juiz se encontra realmente impedido de se comportar com imparcialidade, mas se existe perigo de a sua intervenção ser encarada com desconfiança e suspeição pela comunidade”; (in, “Dtº Proc. Penal”, Vol. I, pág. 319).

Na verdade, importa usar de uma certa flexibilidade (ou de um menor rigorismo) sempre que se pondere sobre a razoabilidade de um pedido de escusa, uma vez que o juízo a respeito dessa razoabilidade - ao invés do que sucede na recusa - implica, forçosa e fundamentalmente, com as inerentes dificuldades e delicadeza, a valorização de uma atitude subjectiva assumida pelo magistrado escusante, atitude esta cuja razão de ser é de custosa sindicância por parte de quem tenha de fazer aquela ponderação e emitir aquele juízo.

Dest’arte, mostra-se-nos óbvio que os elementos objectivos (probatórios da sentida necessidade do que se pede) hajam apenas de conter ou possuir um mínimo de relevância, o mínimo que baste à concessão da escusa, sendo antes de realçar que o que, geralmente e por forma decisiva, avulta e deve prevalecer e contar, será justamente evitar-se que uma não concessão de escusa venha a radicar e gerar uma futura e eventual recusa, com todos os inconvenientes que daí possam advir, quer para a imagem da Justiça, quer para o prestígio dos Tribunais.

Como também escreveu o Prof. Cavaleiro de Ferreira:

“Não se trata de confessar uma fraqueza, a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça contra eventuais interesses próprios, mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da suspeição..." (in, “Curso de Processo Penal”, I, 237-239)”.

Assim, em face do que até aqui se expôs, julga-se que o circunstancialismo invocado pela Exma Juíza requerente justifica a pretendida escusa.

Com efeito, para além de se nos mostrar verificada a vertente subjectiva com base no próprio pedido em apreciação, cremos que a “relação” que existe entre a Exma Juiza requerente e os arguidos (para além da fase processual em questão), constitui (em) motivo(s) bastante(s) para que, em conformidade com a perspectiva objectiva, e não apenas pelo lado dos destinatários da decisão, mas também do público, possa ser entendida como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça.

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Decisão

3. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, concede-se a peticionada escusa.

Sem tributação.

Macau, aos 18 de Julho de 2013


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José Maria Dias Azedo
(Relator)

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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)



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