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Proc. nº 326/2013
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 04 de Julho de 2013
Descritores:
-Providência cautelar não especificada


SUMÁRIO:

I - Numa providência cautelar não especificada, desde que a requerente mostre a existência de um receio da deflagração de incêndio, como já antes acontecera, em razão da atitude dos requeridos de, num determinado terreno, amontoarem entulho constituído por lixos de diversa natureza, peças de sucata, botijas de gás, etc, , pode ser decretada a providência consistente na remoção desse entulho.

II - Mas, justificando-se, embora, a concessão da providência nesse sentido, já não se justifica que os requeridos devam abandonar desde já o terreno e a construção nela existente, se o próprio direito de propriedade invocado pela requerente está a ser discutido em vários processos judiciais.


Proc. nº 326/2013

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
“Companhia de Desenvolvimento A Limitada”, com sede na Estrada XX, nº XX, XX, Bloco XX. XXº-XX, Taipa, Macau, moveu no TJB providência cautelar não especificada contra B, residente na Estrada XX, nº XX, Macau, portador do BIRM 1XXXXXX(6) e outros (desconhecidos), representados pelo MP, pedindo, entre o mais, que os requeridos sejam impedidos de entrar no terreno identificado na petição e desocupem o espaço, removendo os bens que possuem nele.
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Na oportunidade, foi proferida sentença, que indeferiu a providência.
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É contra essa sentença que ora se insurge a requerente, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
“I. Nas alegações finais da audiência de julgamento, a recorrente pediu verbalmente a inspecção judicial dos factos envolvidos no presente processo. A decisão proferida após a audiência de julgamento não referiu expressamente a realização ou não da inspecção judicial nem indicou os seus fundamentos. Nos termos do artigo 571.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil, o tribunal a quo é obrigado a pronunciar-se sobre o pedido da recorrente, senão, é nula a sentença. A nulidade da sentença pode ser invocada no recurso, pelo que, o tribunal superior deve julgar nula a sentença do tribunal a quo, mandando o reenvio do processo para novo julgamento na parte em que a recorrente pediu a realização da inspecção judicial; caso assim não se entenda,
II. Apesar de as partes do presente processo serem idênticas às do Processo n.º 11/2010, os conteúdos dos dois processos não são iguais nem “basicamente semelhantes”, pelo contrário, pode-se dizer que são dois processos completamente diferentes. No presente processo, o fundamento da requerente não é a lesão aos interesses causada pelo facto de que B dá arrendamento da referida propriedade nem a lesão aos interesses causada pelo facto de que a recorrente foi impedida de entrar no terreno e na construção em causa. O fundamento da requerente no presente processo é as situações de perigo iminente que actualmente existem e a ocorrência de tal perigo iminente causará a lesão dificilmente reparável.
III. No presente processo não só provou-se que B e outras pessoas estão a ocupar o terreno e a construção da requerente e residem na referida construção e acumulam lixos, sucatas mesmo botijas de gás, como também provou-se que alguém queimou lixos no referido terreno e houve incêndios. Face aos incêndios e às botijas de gás, permitem facilmente concluir que existe o perigo de destruição e de desabamento da construção existente no referido terreno.
IV. Razões pelas quais o tribunal superior deve julgar que existem no presente processo os pressupostos previstos no artigo 326.º do Código de Processo Civil, e em consequência, julga que a recorrente obtém vencimento na acção e defere os pedidos da recorrente; caso assim não se entenda,
V. O terreno e a construção devem ser administrados.
VI. Conforme os factos provados, provou-se que as pessoas de origem desconhecida ocupam o referido terreno e a construção aí existente; houve incêndios no referido terreno; as referidas pessoas de origem desconhecida abandonam lixos no referido terreno, o que causa proliferação de mosquitos e bichos e grave problema de higiene, prejudicando gravemente o crescimento das árvores nas proximidades e já trouxe impacto negativo no ambiente ecológico; tais pessoas de origem desconhecida têm uma vida complicada e a mobilidade de população é grande, por isso, provoca problema de segurança; a recorrente foi impedida de entrar na construção, por isso, a recorrente não pode proceder a uma boa administração; a Associação de Beneficência e Assistência Mútua dos Moradores do Bairro da Ilha Verde apresentou, em representação dos moradores que vivem nas proximidades do bairro, queixas a requerente sobre a administração inadequada do terreno, solicitando que a requerente resolva as situações que põem em perigo a segurança do bairro comunitário com a maior urgência possível.
VII. Tais problemas só podem ser resolvidos através da boa administração do titular do terreno - recorrente.
VIII. Para alcançar uma boa administração e dirimir os perigos iminentes que actualmente enfrentam, devem B e os ocupantes desconhecidos ser repulsados da propriedade da recorrente. Os perigos do incêndio e da explosão acima referidos e outros perigos já provados bastam constituir para a recorrente a ameaça na conservação da construção.
IX. Com tal ameaça, a recorrente está a enfrentar a situação de “fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente”.
X. Conforme o artigo 485.º do Código Civil, a recorrente é obrigada a conservar bem a sua propriedade. Caso existam lesões resultantes dos defeitos na conservação da propriedade, a recorrente deve assumir a responsabilidade civil. A indemnização principal da responsabilidade civil é a reposição. Pelo que, os perigos do incêndio e da explosão acima referidos e outros perigos já provados bastam constituir para a recorrente a ameaça na conservação da construção.
XI. Uma vez surjam tais perigos, a recorrente sofrerá indispensavelmente prejuízos irreparáveis.
XII. Conforme a situação económica do requerido, o requerido não tem capacidade para pagar a indemnização à recorrente nem tem capacidade para pagar a indemnização a terceiro que sofra lesão vital ou patrimonial pela ocorrência do incêndio.
XIII. Nestes termos, deve o tribunal superior julgar que existem no presente processo os pressupostos previstos no artigo 326.º do Código de Processo Civil, e em consequência, revoga a sentença recorrida, julga que a recorrente obtém vencimento na acção e defere os pedidos da requerente.”
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O requerido respondeu ao recurso, concluindo as suas alegações da seguinte maneira:
“a. A recorrente alegou que a sentença recorrida não tratou o seu pedido da diligência probatória de inspecção judicial dos factos invocado na fase das alegações finais da audiência de julgamento, porém, o pedido da recorrente viola manifestamente as regras de instrução previstas no Código de Processo Civil e é intempestivo. Além disso, o referido recurso foi interposto com base nos fundamentos irrazoáveis e existe má-fé, no sentido de confundir a justiça da sentença recorrida, por isso, a sentença recorrida não violou o artigo 571.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil, devendo ser rejeitado o recurso; e
b. Nos factos provados, a sentença recorrida referiu que “os factos do presente processo não preenchem a situação de fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente”, por isso, não preenche os pressupostos previstos no artigo 326.º do Código de Processo Civil. Nestes termos, o não decretamento da providência cautelar é juridicamente justo, devendo ser rejeitado o recurso.
Nestes termos, solicita que o MM.º Juiz rejeite o recurso por improcedência dos fundamentos de facto e de direito das alegações da recorrente e condene a recorrente no pagamento das despesas de justiça e dos honorários ao advogado, bem como solicita que deva o MM.º Juiz proferir a decisão quando a recorrente seja provada como litigante de má-fé.”
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Cumpre decidir.
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II - Os factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
“1. A requerente é a proprietária do imóvel descrito sob o n.º 2506, a fls. 278v do Livro B12. O referido imóvel situa-se na Estrada da Ilha Verde n.º 14 a 17, Macau.
2. Pelo menos desde Abril de 2009, a requerente descobriu que não só B está a ocupar o terreno, como também outras pessoas desconhecida colocam lixos, sucatas, mesmo botijas de gás no referido terreno.
3. Além disso, B angariou muitas pessoas de origem desconhecida a residirem na referida construção e aí acumularem lixos, sucatas mesmo botijas de gás.
4. Tais indivíduos ocupam o terreno em causa e a construção existente no referido terreno, fazendo com que a requerente não possa entrar na construção aí existente nem possa proceder à boa administração de todo o prédio descrito sob o n.º 2506 nem possa exercer os seus direitos.
5. O abandono dos lixos no referido terreno causa proliferação de mosquitos e bichos e cheiros insuportáveis, o que provoca grave problema de higiene.
6. Alguém queimou lixos no referido terreno; houve incêndios no referido terreno.
7. Dado que tais pessoas de origem desconhecida angariadas por B têm vida complicada e a mobilidade da população é grande, isto causa problema da segurança.
8. Foram ligados vários fios eléctricos à construção existente no referido terreno.
9. Pelas situações acima referidas, a Associação de Beneficência e Assistência Mútua dos Moradores do Bairro da Ilha Verde, em representação dos moradores que vivem nas proximidades do bairro, apresentou queixas à requerente sobre a administração inadequada do terreno, solicitando que a requerente dirima as situações que prejudicam a segurança do bairro comunitário com a maior urgência possível.
10. Por causa disso, a requerente pediu ajuda ao Corpo de Polícia de Segurança Pública e à Polícia Judiciária, no sentido de procurar soluções para o caso.
11. Cada vez em que a requerente pediu ajuda aos órgãos acima referidos para aplicar medidas adequadas, B e outras pessoas desconhecidas que ocupam no referido terreno recusaram a entrada da requerente ou dos funcionários dos órgãos públicos na construção remodelada por B existente no referido terreno e impediram o tratamento das aludidas situações, com o fundamento em que as acções judiciais que envolvem o referido terreno ainda se encontram pendentes, pelo que, as situações acima referidas mantêm-se até agora.
12. Os elementos constantes do referido documento revelam que há 4 acções cíveis que impugnam o acto de transacção pelo qual a requerente passou a ser a proprietária, incluindo:
1. Acção declarativa de nulidade intentada pela Companhia de Investimento Internacional C, Ltd. (C國際投資有限公司) em 1 de Junho de 2009;
2. Acção declarativa de nulidade intentada por João Filomeno de Souza e Sales em 17 de Novembro de 2009;
3. Acção declarativa de nulidade intentada por D em 8 de Janeiro de 2010;
4. Acção declarativa de nulidade intentada pela Companhia de Investimento Internacional E em 2 de Fevereiro de 2010.
13. Conforme a cláusula 3 do “Contrato-Promessa de Compra e Venda” celebrado entre a requerente e a ex-proprietária do referido terreno Empresa de Fomento e Investimento F (Macau), Limitada (F(澳門)實業發展有限公司) em 18 de Janeiro de 2007, o referido terreno foi vendido “no estado de ocupação” e o referido contrato foi assinado pelo Sr. G, simultaneamente na qualidade de representante legal da requerente, e pelo procurador da Empresa de Fomento e Investimento F (Macau), Limitada (F(澳門)實業發展有限公司).
14. O gerente-geral da Empresa de Fomento e Investimento F (Macau), Limitada (F(澳門)實業發展有限公司), H, também sabe perfeitamente isso, nomeadamente tal gerente-geral deu pessoalmente o poder de administração do referido terreno ao requerido em 2005.
15. Em 2005, quando o requerido começou a administrar o imóvel em questão em 2005, a ex-proprietária - Empresa de Fomento e Investimento F (Macau), Limitada (F(澳門)實業發展有限公司) prometeu que só ia pagar as despesas de administração quando procederia à construção de prédio ou à venda no futuro.
16. O 1.º requerido apresentou ao Tribunal Judicial de Base um pedido reconvencional através do processo n.º CV3-11-0065-CAO.
17. Ao abrigo da cláusula 4.a do Contrato-Promessa de Compra e Venda assinado pela requerente e a ex-proprietária do terreno, Empresa de Fomento e Investimento F (Macau), Limitada (F(澳門)實業發展有限公司) em 18 de Janeiro de 2007, após a celebração do contrato, todos os direitos, interesses e deveres do terreno acima referido (incluindo as acções já proposta ou a propor e o pedido de troca do terreno) são do 2.º outorgante.
18. Para o desenvolvimento do terreno em causa, G, sócio maioritário da requerente, celebrou com a ex-titular do terreno em causa um “contrato para colaboração na exploração de imóveis”, no qual se prevê a criação da “Companhia de Desenvolvimento I, Limitada” (I發展有限公司), no sentido de executar o referido acordo de colaboração
19. Antes de celebrar o aludido “Contrato-Promessa de Compra e Venda” entre a requerente e a Empresa de Fomento e Investimento F (Macau), Limitada (F(澳門)實業發展有限公司), a “Companhia de Desenvolvimento I, Limitada” (I發展有限公司) convocou uma assembleia de sócios em 17 de Novembro de 2006.
20. Conforme a referida acta, G, sócio da requerente, participou na referida assembleia na qualidade de sócio maioritário da “Companhia de Desenvolvimento I, Limitada” (I發展有限公司), e aprovou a seguinte deliberação relacionada com os interesses do requerido
“3. O sócio G concorda em pagar uma compensação um montante de HKD$240.000.000,00 ao sócio J (incluindo o montante de HKD$110.000.000,00 já pago, as despesas de despejo no montante de HKD$20.000.000,00, os honorários ao advogado no montante de $10.000.000,00 e a dívida da Companhia K no montante de $10.000.000,00, os quais são provisoriamente deduzidos) e o restante, no montante de HKD$90.000.000,00, deve ser pago ao sócio J no dia da assinatura do contrato de compra e venda do referido terreno entre G no seu nome próprio e a Empresa de Fomento e Investimento F (Macau), Limitada (F(澳門)實業發展有限公司).”
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III - O Direito
Na 1ª instância, invocou a requerente “Companhia de Desenvolvimento A Limitada” a propriedade de um terreno sito na Estrada Marginal da Ilha Verde que, alegadamente, estaria a ser ocupado pelo requerido e outros, sem qualquer título, nele depositando lixos, sucatas, botijas de gás, além de habitarem uma construção ali existente, provocando proliferação de mosquitos, falta de higiene, e cheiros insuportáveis, além de perigo para a segurança da própria vizinhança.
Na oposição, o requerido suscitou a circunstância de estarem em curso no TJB 4 acções tendentes à declaração de nulidade do negócio translativo da propriedade do prédio para a requerente da providência. Logo, por não estar determinado se a requerente da providência é ou não a proprietária, não estariam preenchidas as condições previstas no art. 326º, nºs 1 e 2, do CPC.
Por outro lado, continuou o requerido, a alegada aquisição feita pela requerente através de contrato de promessa celebrado com a ex-proprietária “Empresa de Fomento e Investimento F (Macau) Limitada”, fora feita no “estado de ocupação” e que ele, requerido, está administrar o prédio desde 2005 com a autorização da anterior proprietária, dando de arrendamento o terreno e cobrando as respectivas rendas. Ou seja, pretende o requerido dizer que a sua presença e as demais pessoas no prédio se verificava já desde tempos anteriores ao momento da celebração do contrato celebrado pela requerente com a anterior proprietária (parecendo querer invocar a inversão do título de posse a que se refere o art. 1190º do CC).
Invocou depois a existência de um “contrato de colaboração” entre G, sócio maioritário da requerente, e a ex-proprietária do terreno em causa no sentido da “exploração de imóveis”, contrato que previa a criação de uma “Companhia de Desenvolvimento I, Limitada”. Que na sequência disso, teve lugar uma assembleia de sócios desta “I” em que foi deliberado que G, sócio da requerente, concordaria, entre outras coisas, pagar uma indemnização ao sócio J e pagar ao requerido as despesas do despejo do prédio no montante de HKD$20.000.000,00 (doc. 4 junto à acção CV3-11-0065-CAO), o que não chegou a ser feito, embora esteja a ser discutido nesse processo em pedido reconvencional.
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A sentença deu por provado que a requerente da providência é a proprietária do terreno e que está impedida de o utilizar. Todavia, entendeu que não estão provados os requisitos da providência estabelecidos no art. 326º do CPC e, assim, julgou o pedido improcedente.
A decisão tomada, por remissão expressa, assentou num segmento do acórdão prolatado nos autos de recurso nº 11/2010, de que fez transcrição.
Para melhor se perceber o “iter” decisório, também aqui se justifica a transcrição do mesmo segmento:
“Trata-se o decretamento da providência cautelar de uma decisão interina destinada a aguardar a definição do direito no processo principal, logrando assim evitar que da indecisão derivem danos irreparáveis para uma das partes, com a verificação dos seus pressupostos legais. São seus pressupostos a instrumentalidade (hipotética – por presuntiva da instauração da lide principal – ou real), o “periculum in mora”, caracterizado pela iminência de grave prejuízo causado pela demora da decisão definitiva e que ponha em risco o direito a acautelar, o “fumus boni júris”, ou a aparência da realidade do direito invocado, a conhecer através de um exame e instrução indiciários (a “summaria cognitio”).
Para o decretamento da providência comum, na apreciação deste exigido fundado receio de prejuízo não basta um juízo de probabilidade, mas sim necessário um juízo de realidade ou de certeza ou pelo menos receio fundado, não bastando, por isso, qualquer simples receio que pode corresponder a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, num exame precipitado das circunstâncias. E este receio fundado pressupõe que o titular do direito se encontra perante meras ameaças actuais.
Como se tem entendido, a eventual perda do dinheiro nunca se configura um prejuízo irreversível ou dificilmente reparável, e o próprio acto de celebração com terceiros do contrato de arrendamento, podendo embora incorrer para a requerida certo enriquecimento económico, não se demonstra um justificado receio de um prejuízo grave e dificilmente reparável. E consequentemente não se pode dar como assentes o segundo requisito para o decretamento da providência.
No caso está provado apenas que, “no terreno encontram-se armazenados lixos de peças inutilizadas, mormente veículos abandonados, baterias, pneus, causando cheiros insuportáveis e prejuízos ao ambiente. A Requerente tem tentado entrar no terreno para fazer limpeza e remoção de tais veículos abandonados, mas em vão! Porque foi impedida de o fazer”.
Tanto com estes elementos como com os novos factos invocados apenas em sede de recurso (que não se afiguram ser admissíveis), não permitem concluir pela justificação do seu receio de causar prejuízos irreparáveis ou difícil de reparação.
Compreendemos da preocupação da proprietária ora recorrente com o aproveitamento em tempo útil do terreno, mas não se pode servir a providência cautelar de substituição da própria acção, em que continham requisitos distintos.
E no presente caso de providência cautelar, o seu pedido não pode ser procedente, por não deixar verificados todos os requisitos, essencialmente o fundado receio de causar prejuízo irreparável ou difícil de reparação”.
Depois desta transcrição, a 1ª instância considerou que os factos eram basicamente semelhantes e que, portanto, os fundamentos do aresto do TSI eram aplicáveis ao caso em apreço. Consequentemente, por também entender que se não verificavam os requisitos previstos nos arts. 326º e 332º do CPC, indeferiu o pedido.
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Pois bem. O que vem a recorrente pedir ao TSI?
Em primeiro lugar, que se declare a nulidade da sentença em virtude de a 1ª instância não ter decidido expressamente o pedido que ela havia feito nas alegações finais da audiência de discussão e julgamento e que tinha em vista a que o tribunal procedesse a uma inspecção judicial ao local dos factos. Por total omissão de resolução a tal pedido, entende a recorrente que a sentença padece da nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. d), do CPC.
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Vejamos, então, da nulidade.
A recorrente diz ter requerido a realização da inspecção judicial no final da audiência. Ora, a verdade é que a acta da referida audiência não alude a nenhum requerimento nesse sentido. Quid iuris?
A recorrente diz que sim e, por essa razão, argui a nulidade de sentença. Todavia, pensamos que o caso não se pode resolver por esse prisma. A acta é documento autêntico, que faz prova plena dos factos que integram o seu conteúdo, embora a sua força probatória possa ser ilidida através da prova de falsidade, ou através do incidente de rectificação previsto no art. 109º, nº3.
Ora, no caso, uma de quatro coisas pode ter ocorrido.
1ª - Se a acta de fls. 196-197 documentar com fidelidade o que se passou em audiência, então parece ser certo que a recorrente não formulou o referido pedido de inspecção.
2ª - Se, ao invés, a recorrente dirigiu ao tribunal aquela pretensão e o tribunal a não decidiu sequer, então ele deveria imediatamente renovar a pretensão, incitando o Sr. Juiz a decidir aquilo que, por negligência ou esquecimento, lhe escapou. Não o fez, sendo certo que o podia e devia fazer, se considerasse que esta omissão podia influir no exame ou decisão da causa (art. 147º, nº1, do CPC), no momento em que fora cometida, dado que a parte interessada estava nessa ocasião representada pelo seu mandatário presente (art. 151º, nº1, do CPC);
3ª - Se a recorrente pediu a inspecção judicial e o tribunal deferiu a pretensão, então a acta não traduz a verdade. Todavia, nesse pressuposto, também se não compreende que o Sr. Juiz tivesse ordenado que a secretaria lhe fizesse os autos conclusos para decisão, conforme dela consta. De resto, bem podia a parte, logo que desse conta da omissão, suscitar o incidente da rectificação a que alude o art. 109º acima citado. E nem isso fez.
4ª - Se a recorrente formulou a pretensão e o tribunal expressamente a indeferiu, então devia a recorrente ditar imediatamente para a acta o respectivo requerimento de recurso (art. 593º, nº3, do CPC). E não o fez.
Estamos, portanto, perante algo que pode ter-se passado de modo diferente daquele que a acta documenta, mas como nenhuma atitude rectificativa ou invalidante foi desencadeada pela recorrente no momento próprio, achamos que só podemos retirar dela o valor de documento autêntico que ela tem, cuja falsidade não foi arguida.
De qualquer modo, somos a considerar que a situação – que nunca seria de nulidade de sentença, mas eventualmente de nulidade processual situada a montante, já que se não trata de atribuir à sentença propriamente dita a falta de conhecimento de questões que devesse apreciar – mesmo com os contornos que a recorrente lhe desenha, não seria motivo para influenciar decisivamente o exame e decisão da causa. É que a inspecção ao local, se teria em vista a constatação pelo tribunal dos factos alegados pela requerente na sua petição inicial, não traria aos autos melhor informação e mais acentuado acervo de factos do que aqueles que o próprio tribunal deu por provados a partir do depoimento das testemunhas e dos demais elementos juntos aos autos, já que fez consignar na matéria assente a ocupação do terreno e a existência de lixo, bichos, maus cheiros, sucata, botijas de gás, etc. Ou seja, não precisou o tribunal de ir ao local para constatar ou confirmar aquilo que tinha já por adquirido pela restante prova feita. Portanto, nem sequer por nulidade processual se deve ter a situação, mesmo que se parta do pressuposto (não demonstrado) da ausência de decisão sobre o assunto.
Improcede, pois, a arguição de nulidade de sentença.
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Depois disso, a recorrente defende que a sentença recorrida não podia ter seguido a solução que foi dada no Proc. nº 11/2010 deste TSI. Realmente, diz a recorrente, agora o que está em apreciação não é a lesão dos interesses causada pelo recorrido de dar de arrendamento o prédio, nem a lesão decorrente do facto de ela ter sido impedida de entrar no terreno. O que está em causa, sublinha, é o perigo iminente de verificação de dano dificilmente reparável, sobretudo de incêndio, mas também de desabamento da própria estrutura da construção existente no terreno.
Ora bem. Naquele processo, a ora recorrente tinha pedido a restituição provisória de posse e, subsidiariamente, o abandono dos requeridos do prédio. Na 1ª instância, foi o pedido principal da providência cautelar improcedente (fls. 106-110), solução que foi sancionada pelo TSI, no seu acórdão de 22/04/2010 (fls. 111-126). E o mesmo aresto, conhecendo do pedido subsidiário, tratando-o como pertencendo ao universo das providências cautelares comuns, julgou-o igualmente improcedente, nos termos do segmento acima transcrito.
É evidente que a sentença sob escrutínio se serviu da solução encontrada pelo TSI quanto a esta segunda pretensão e até podemos dizer que não estará muito longe do acerto. Com efeito, os factos são essencialmente os mesmos e a pretensão concreta não diverge no seu núcleo substancial. Se repararmos bem, não se afastam os factos reais, a identidade das partes, os fundamentos da decisão e a solução tomada. E, portanto, em certa medida, poderíamos dizer que o caso estaria coberto pela força do caso julgado.
Ainda assim, há entre os pressupostos de facto densificadores da causa de pedir manifestada em ambos os processos, duas bem visíveis diferenças.
No 1º caso, não tinham ocorrido os “incêndios” a que alude o facto nº6 da matéria assente, nem os “fios eléctricos” haviam sido ligados à construção existente no terreno (facto 8). Estes factos não fizeram parte da factualidade apurada naqueles autos (ver referido aresto) por lhes serem posteriores, cremos nós. Ora, pensamos que a conjugação de todos os factos (os anteriormente conhecidos e estes dois agora detectados nos presentes autos) é motivo suficiente para revelar o “periculum in mora” extraído do art. 326º do CPC (tb. art. 332º do mesmo CPC), ao contrário do que julgou a 1ª instância. Não um perigo que possa derivar da eventualidade de os requeridos celebrarem com terceiros nova ou diferente afectação do terreno e construção (pois isso não está aqui alegado), mas o perigo de incêndio do local, face à verificação anterior de casos de fogo no local.
Ora, tendo estes factos sido efectivamente apurados, expondo uma potencial lesão dos interesses da requerente (ver ainda factos 2º, 3º, 5º, 7º, 9º), então, supondo que esta é proprietária, podemos dizer que os seus direitos e interesses estão ameaçados e que pode advir da manutenção da actual situação um perigo para a sua esfera patrimonial (possibilidade de o incêndio se propagar à construção, por exemplo), já para não falar nos problemas de higiene e segurança que a situação possa ocasionar na vizinhança e, por via disso, na esfera material da recorrente, caso tenha que indemnizar os vizinhos em razão de alguma catástrofe que ali ocorra por causa da sua inacção.
Parece-nos, pois, que este perigo existe. Todavia, se este perigo pode justificar a necessidade de fazer limpar o terreno, já não implica necessariamente que os seus ocupantes (requerido/recorrido e outros) tenham que abandonar o local. O perigo existe, não pela simples circunstância de ali viverem tais pessoas, mas sim por causa da atitude delas de ali despejarem ou consentirem o despejo de objectos de sucata, lixo, etc, provocando o risco de deflagração de incêndio. Quer isto dizer que, limpo o terreno e uma vez que se não repita a atitude de conspurcação, então o perigo de lesão desaparece.
Ou seja, não se mostra necessário que se decrete o abandono definitivo dessas pessoas do local. E se outra razão até não houvesse, sempre se poderia dizer que a evacuação forçada de tais pessoas poderia vir a ser prejudicada pelo facto de o direito de propriedade de que a recorrente se arroga estar em litígio nos tribunais em 4 processos pendentes (facto 12 da sentença recorrida), os quais podem vir a ter um desfecho contrário à sua esfera patrimonial.
Verdade é que o interesse da requerente da providência se pode fundar em direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva já proposta ou a propor (art. 326º, nº2, do CPC). O que significa que este inciso normativo não a podia tolher de se servir do presente meio, mesmo que ainda estejam em cursos aquelas acções destinadas a demonstrar a nulidade do negócio translativo da propriedade do terreno para a sua esfera. De qualquer modo, pensamos ser possível manter intacta a titularidade invocada nos presentes autos, enquanto o direito não for absoluta e definitivamente decidido no processo principal ou em qualquer um daqueles processos referidos no facto nº 12. E isso bastará para que a sua pretensão cautelar obtenha algum ganho, desde já.
Contudo, tão longe quanto pretende a recorrente não deve ir o tribunal, impondo a evacuação do recorrido e demais pessoas do local, não só porque a situação material não é irreversível (o êxito da acção principal poderá acudir categórica e definitivamente à sua esfera, aí sim, com a saída dos ocupantes do terreno sob decisão decretada pelo tribunal), como a manutenção das pessoas até à definição do direito no processo principal não esvazia de utilidade o sentido da providência se a tomarmos, como é o caso concreto, por fundada no receio invocado de danos na propriedade em razão da situação de existência de lixos, sucatas, bichos, etc., com o consequente medo de incêndio, falta de segurança e de higiene. Bastará, portanto, a satisfação desta específica pretensão para que o perigo desapareça por ora, enquanto noutro âmbito judicial se discute a validade do negócio e o direito substantivo da recorrente. Aliás, a eliminação desse perigo para a esfera de interesses privados da recorrente acaba por ter, também, reflexos positivos para o próprio interesse público.
Não se justifica, por outro lado, que se satisfaça a pretensão da requerente no sentido da publicitação da decisão pelo modo por si achado mais adequado, não apenas porque isso pode contender com direitos de personalidade das pessoas envolvidas, mas ainda porque os recorridos estão representados, o primeiro por mandatário judicial, e os restantes desconhecidos, pelo digno Magistrado do MP.
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se consequentemente a decisão nessa parte, e, por via disso, deferindo parcialmente a providência, determina-se que:
1 - O requerido B e demais requeridos, estes representados pelo MP, removam do terreno todo o entulho formado pelo lixo, peças de sucata e botijas de gás ali existentes, no prazo de 60 dias;
2 - Caso o não façam naquele prazo, determina-se que a recorrente, sozinha ou acompanhada dos seus procuradores, e com o auxílio da força pública, se necessário for, ali se desloque para proceder, ela mesma, à limpeza e remoção de todo o entulho que ali encontrar.
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Custas pela recorrente e recorridos em ambas as instâncias em partes iguais.
TSI, 04 / 07 / 2013

_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)