Processo n.º 379/2013
(Recurso Laboral)
Data : 25/Julho/2013
RECORRENTES :
Recurso Final B
Recurso Subordinado S.T.D.M.
RECORRIDAS : As mesmas
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. B, mais bem identificada nos autos, patrocinada por advogado constituído, propôs contra a Ré, "Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM)", com sede na Avenida do ……, …° andar, Macau, acção para efectivação do direito ao pagamento da compensação pelo dias de descanso semanal anual e feriados obrigatórios, por si não gozados, pedindo a condenação da Ré no pagamento de MOP$538.760,00 e ainda no pagamento de juros vencidos e vincendos desde a notificação para a realização da tentativa de conciliação.
Veio esta, a final, a ser condenada a pagar a quantia de MOP$11.117,50 bem como o montante de juros a contar da notificação da data da sentença.
Da decisão final vem recorrer a parte A., a trabalhadora, alegando basicamente que as gorjetas devem integrar o salário do trabalhador. Conclui as suas alegações de recurso da seguinte forma:
a) Ao abrigo do disposto no art. 25° do RJRT, as gorjetas são parte integrante do salário da recorrente, sob pena de, não o sendo, o salário não ser justo;
b) A sentença recorrida viola o Princípio da Igualdade, pois os direitos dos trabalhadores nas mesma circunstâncias da recorrente têm vindo a ser acauteladas pelos Tribunais da R.A.E.M., existindo sobre a questão jurisprudência assente que considera serem as gorjetas parte integrante dos salário dos trabalhadores da recorrida.
c) Tendo considerado provado que a R., recorrida, pagava à recorrente quantias nas quais se incluíam as gorjetas recebidas e distribuídas aos trabalhadores pela própria, não poderia o Tribunal "a quo", a posteriori e em sede de sentença, decidir que, afinal, tais montantes não integram o seu salário.
Nesta parte, padece a sentença recorrida de nulidade, nos termos do art. 571° n.º 1, al. c) do C.P.C..
Quando assim se não entenda,
d) Ao não considerar as gorjetas parte integrante do salário da recorrente, a sentença recorrida viola o constante do art. 25° do RJRT, o art. 23°, n.º 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o art. 7° do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, entre outros, com a consequente abertura de portas à violação do direito a uma existência decente e minimamente digna, sujeitando os trabalhadores a uma subsistência miserável, indigna, semelhante a uma possível "escravatura moderna".
e) Inexiste qualquer identidade ou paralelismo entre a situação dos trabalhadores dos casinos em Portugal e os de Macau, porque aqueles recebem, desde logo, da entidade patronal um salário justo, i.e., que permite a sua normal subsistência, nunca inferior ao salário mínimo nacional, sendo que, caso as gorjetas não fizessem parte integrante do salário dos trabalhadores de Macau, seria o seu salário miserável e incapaz de prover à sua alimentação, quanto mais às restantes necessidades do ser humano.
f) Também, em Portugal, as gorjetas não são recebidas e distribuídas a bel prazer da entidade patronal, segundo regras e critérios desconhecidos dos trabalhadores, sendo a questão clara e transparentemente regulada por lei.
g) A actual Lei n.º 7/2008 veio, e bem, regular estas situações em que se integra a recorrente, prevendo claramente que o sistema de recebimento de "gorjetas" criado pela R. e a que A. esteve sujeita, não foge do que se vem alegando, sendo certo que as gorjetas são parte integrante do salário dos trabalhadores.
Por outro lado,
h) De acordo com o disposto no art. 17°, n.ºs 1, 3 e 6 do D.L. n.º 24/89/M, a fórmula correcta de cálculo da indemnização da recorrente por trabalho efectivo prestado em dias de descanso semanal é 2 x o valor da remuneração média diária x o número de dias de descanso semanal vencidos e não gozados e não a constante da sentença recorrida.
Termos em que, deverá ser dado provimento ao presente recurso revogando-se a sentença recorrida quanto à não integração das gorjetas no salário da recorrente, devendo ainda computar-se correctamente as indemnizações devidas pelo trabalho prestado em dias de descanso semanal.
2. A STDM, Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L. defende a bondade do decidido e, contra-alegando, sustenta:
1. As gratificações ou gorjetas recebidas pelos empregados de casino dos clientes não fazem parte do salário;
2. A retribuição ou salário, em sentido jurídico (laboral), encerra quatro elementos essenciais e cumulativos: é uma prestação regular e periódica; em dinheiro ou em espécie; a que o trabalhador tem direito por título contratual e normativo e que corresponde a um dever jurídico da entidade patronal; como contrapartida pelo seu trabalho;
3. No caso dos autos, estando em causa gorjetas comprovadamente oferecidas por clientes de casino, dependendo o seu recebimento do espírito de animus donandi de terceiros, estranhos à relação jurídico-laboral, nunca poderia o trabalhador ter exigido à sua entidade empregadora o seu pagamento, inexistindo aquela oferta por parte dos clientes;
4. A Recorrente sabia que a parte do rendimento respeitante às gorjetas dependia exclusivamente das liberalidades dos clientes de casino, nada podendo exigir à ora Recorrida a esse título caso essa parte do seu rendimento fosse zero;
5. Na Jurisprudência e Doutrina de Portugal, é entendimento maioritário que as gorjetas oferecidas pelos clientes não constituem parte do salário. E, na verdade, a única diferença relevante entre os dois sistemas é a circunstância de as regras / critérios de distribuição das gratificações / gorjetas serem definidas, em Macau, pela entidade empregadora, enquanto em Portugal, esses critérios / regras encontram-se definidas pelo membro do Governo responsável pelo sector do turismo, ouvidos os representantes dos trabalhadores;
6. Também em Portugal os trabalhadores dos casinos estão proibidos de fazerem suas, a título individual, as gorjetas recebidas, devendo depositá-las, após o recebimento, em caixa própria, sendo as ditas gorjetas distribuídas, posteriormente, pelos trabalhadores de acordo com os ditos critérios definidos por via legislativa;
7. Cremos que o facto de a definição dos critérios de distribuição das gorjetas caber, em Macau, à entidade empregadora não altera a natureza não salarial daquelas prestações, até porque, nem quando começou a trabalhar para a ora Recorrida, nem durante toda a relação contratual, a Recorrente alguma vez se interessou por esta questão, aceitando tais critérios sem questionar;
8. Dispõe o artigo 25.º, n.º 1 do RJRT que "Pela prestação dos seus serviços ou actividade laboral, os trabalhadores têm direito a um salário justo.";
9. Salvo o devido respeito por opinião contrária, analisando a certidão de rendimentos da Recorrente, não se pode dizer que à Autora não foi proporcionado um rendimento justo, maxime porque os rendimentos globais auferidos eram claramente superiores à média do rendimento / remuneração auferida por cidadãos de Macau com formação académica e profissional equivalente às suas que não trabalhassem em casino, os quais eram mais que bastantes para prover a uma vida digna e decente da Recorrente e sua família;
10. Deste modo, na esteira do entendimento do mais Alto Tribunal da RAEM, do Douto Tribunal Recorrido e, bem assim, da Doutrina e Jurisprudência maioritárias de Portugal, é também entendimento da Recorrida que: "As gratificações ou gorjetas recebidas pelos empregados de casino dos clientes não fazem parte do salário.";
11. É, pois, forçoso concluir - como fez e bem o Tribunal a quo - que o rendimento dos trabalhadores dos casinos da STDM, proveniente das gorjetas concedidas pelos clientes, não pode ser qualificado como prestação retributiva e, desta forma, ser levado em linha de conta no cálculo de uma eventual indemnização que o ex-trabalhador, pudesse reivindicar da aqui Recorrida pelos dias de descanso semanal, anual e de feriados obrigatórios;
Ainda concluindo,
12. Admitindo a Recorrida, apenas por cautela e por hipótese, que de forma alguma se concede, a obrigação de indemnizar a ora Recorrente tendo em conta o valor das gorjetas oferecidas pelos clientes de casino, devem ser as seguintes as fórmulas aplicáveis para aferir das compensações adicionais eventualmente devidas:
i. Trabalho prestado em dias de descanso semanal:
1. DL 101/84/M: salário diário x 0 (e não x l, porque uma parcela já foi paga);
2. DL 24/89/M: salário diário x 1 (e não x 2, porque uma parcela já foi paga);
3. DL 32/90/M: salário diário x 0 (e não x l, porque uma parcela já foi paga);
ii. Trabalho prestado em dias de descanso anual:
1. DL 101/84/M: salário diário x 0 (e não x l, porque uma parcela já foi paga);
2. DL 24 DL 24/89/M e DL 32/90/M: salário diário x 0 (e não x l ou x 3, porque uma parcela já foi paga e porque a Ré não impediu a Autora de gozar quaisquer dias de descanso);
iii. Trabalho prestado em dia feriado obrigatório:
1. DL 10184/M: salário diário x 0 (e não x l, porque uma parcela já foi paga);
2. DL 24/89/M e DL 32/90/M: DL 24/89/M: salário diário x 1 (e não x 2, porque uma parcela já foi paga);
13. Subsidiariamente, caso se entenda que as fórmulas supra expostas não devem ser as adoptadas para o cálculo de uma eventual indemnização devida à Recorrente, remete-se para as fórmulas adoptadas nos acórdãos do Tribunal de Última Instância, proferidos no âmbito dos Processos n.º 28/2007, 29/2007 e 58/2007, datados de 21 de Setembro de 2007, 22 de Novembro de 2007 e 27 de Fevereiro de 2008, respectivamente.
Em face de todo o exposto, deverá o recurso apresentado pela recorrente ser considerado improcedente porque infundado e, em consequência, ser mantida em conformidade a sentença recorrida, na parte em que absolveu a aqui recorrida.
3. A STDM, Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L. recorre ainda subordinadamente pugnando pela correcção das fórmulas aplicáveis, dizendo, a final:
1. Sem prejuízo de melhor entendimento e Juízo, deve improceder o recurso principal já interposto pela Autora e aqui Recorrida Subordinada, mantendo-se a douta Sentença recorrida, ainda que esta não tenha aplicado a devida fórmula ao cálculo da compensação por trabalho prestado em dias de descanso anual, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril;
2. A aqui Recorrente Subordinada considera que há erro manifesto na apreciação da prova, nos termos do n.º 1 do artigo 599.º do Código de Processo Civil;
3. O trabalho prestado nos dias de descanso anual era remunerado à razão do triplo do salário de um dia de trabalho efectivo, apenas nos casos de impedimento, pelo empregador, do gozo de dias de descanso do trabalhador, o que não é o caso por não resultar de qualquer facto constante da matéria dada como provada;
4. Nestes termos, não existem factos que possam servir de fundamento para se concluir que a Autora não gozou de dias de descanso anual porque a Ré o impediu, bem pelo contrário;
5. Era à Autora que se impunha a alegação, por um lado, e a prova, pelo outro, de que não gozou de dias de descanso anual porque a Ré o impediu, porquanto trata-se de factos constitutivos do direito que deveria ter invocado e peticionado, nos termos do n.º 1 do artigo 335.º do Código Civil;
6. Porque a Autora não alegou nem provou o impedimento por parte da Ré, entende a aqui Recorrente Subordinada que, nesta parte da decisão, há erro manifesto na apreciação da prova, assim como na subsunção da matéria de facto provada à solução de direito encontrada;
7. Tal matéria nunca foi abordada nos presentes autos em primeira instância e até se pode ter dado o caso de o não gozo de dias de descanso ter ocorrido a pedido do próprio trabalhador; não sabemos, não é matéria assente nem foi quesitada;
8. E na falta de norma expressa para compensar o trabalhador pelo não gozo de dias de descanso anual sem impedimento por parte da entidade patronal entende a Recorrente subordinada que nada mais tem a pagar que não a remuneração já recebida pela Autora, ou seja, um dia de salário, pelo que deve, o que se requer, ser a douta Sentença revogada no que a esta parte diz respeito;
Termos em que se requer a manutenção do doutamente decidido na Primeira Instância quanto à questão do salário e gratificações e, no que respeita ao recurso subordinado ora interposto, a sua procedência, revogando-se a decisão sobre o a forma de cálculo da eventual compensação por trabalho prestado em dias de descanso anual.
4. Oportunamente, foram colhidos os vistos legais.
II - Factos
Vêm provados os factos seguintes:
“1. A Autora começou a trabalhar para a Ré em 30 de Setembro de 1992.
2. Cessou a relação laboral com a Ré em data não anterior a 16/07/2002.
3. A Autora foi admitida como empregada de casino, recebia de dez em dez dias uma remuneração da entidade patronal, como contrapartida da sua actividade laboral.
4. A Autora recebeu da Ré, regular e periodicamente, entre os anos de 1992 e 2002:
a) 1992: 14.825,00;
b) 1993: 107.418,00;
c) 1994: 126.212,00;
d) 1995: 146.278,00;
e) 1996: 160.270,00;
f) 1997: 159.707,00;
g) 1998: 174.435,00.
h) 1999: 135.630,00
i) 2000: 144.008,00
j) 2001: 162.987,00
k) 2002: 88.095,00.
5. A Autora recebia da Ré uma componente quantitativa incerta, mas sempre de valor muito superior à parte fixa.
6. A Autora prestou serviço em horário de turnos, conforme os horários fixados pela entidade patronal.
7. Os turnos eram os seguintes:
1. 1° e 6° turnos, das 07h00, às 11h00 e das 03h00 até às 07h00:
2. 3° e 5° turnos, das 15h00 às 19h00 e das 23h00 às 03h00 (do dia seguinte);
3. 2° e 4° turnos, das 11h00 às 15h00 e das 19h00 às 23h00.
8. A Autora podia pedir licença pessoal, mas na duração da licença não recebia qualquer remuneração, tal como se faltasse ao trabalho.
9. Os dias de descanso que, ao longo da vigência da relação contratual a Autora gozou, não foram remunerados
10. Se a Autora faltasse ao seu turno, perdia a remuneração, e se faltasse sem a autorização da Ré, por isso dia era considerado falta ao horário de trabalho estabelecido pela Ré.
11. A Autora sempre prestou serviço nos dias correspondentes ao descanso semanal e nunca gozou descanso semanal, nem foi compensada com outro dia de descanso.
12. A Autora trabalhou sempre nos seus dias de descanso anual.
13. A Autora nunca gozou descanso anual, na vigência do contrato, nem recebeu compensação salarial pelo facto.
14. Aquando da contratação dos trabalhadores da STDM estes eram, desde logo, informados sobre as suas condições e, nomeadamente, que ao gozo de dias de descanso não corresponderia qualquer remuneração.
15. E que podiam pedir o gozo de dias de descanso, sempre que assim o entendessem, desde que, tal gozo de dias não pusesse um causa o funcionamento da empresa da Ré.
16. As gorjetas oferecidas a cada um dos seus colaboradores pelos seus clientes eram reunidas, contabilizadas e depois distribuídas, por uma comissão paritária com a seguinte composição: um membro do departamento de tesouraria da Ré, uma "floor manager" (gerente do andar) e um ou mais trabalhadores da Ré.
17. Todos os candidatos a trabalhadores da Ré eram esclarecidos que aufeririam um salário diário e uma quota-parte, pré-fixada, de acordo com a categoria profissional de cada trabalhador, do total das gorjetas entregues pelos clientes da Ré
18. A quantia fixa referida em 5) que a Autora auferiu foi de HKD$10.00/dia, desde o início da relação laboral até 30 de Abril de 1995, e de HKD$15.00/dia, desde 1 de Maio de 1995 até à data da cessação da relação laboral
19. Aquando da contratação dos seus trabalhadores a Ré propunha o seguinte:
i. O salário seria pago à razão diária, mas apenas pelos dias em que fosse efectivamente prestado trabalho;
ii. Caso pretendessem gozar de descansos semanal, anual e feriados obrigatórios, esses dias não seriam remunerados.
20. Simultaneamente, a Ré informava que estes partilhariam, com uma quota-parte, do montante global das gorjetas conferidas pelos clientes dos estabelecimentos da Ré.”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto dos presentes recursos (principal e subordinado) passa pela análise das seguintes questões:
- Da natureza jurídica do acordo celebrado entre recorrente e recorrida;
- Do salário justo; determinação da retribuição; as gorjetas auferidas pelos trabalhadores de casino integram ou não o seu salário?
- Do não gozo de dias de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios;
. prova dos factos; prova do impedimento do gozo;
. liberdade contratual; da admissibilidade de renúncia voluntária ao gozo de dias de descanso semanal, anual, feriados obrigatórios;
- Integração da natureza do salário; mensal ou diário;
- Determinação dos montantes compensatórios dos dias de trabalho prestado em dias descanso e festividades.
As diferentes questões foram abordadas em vários e abundantes arestos dos Tribunais de Macau, referindo-se que em praticamente todos eles se conseguiu uma unanimidade de entendimento, tanto na 1ª Instância, como neste Tribunal de Segunda instância.1
Depois disso, sobrevieram algumas decisões do TUI2, que decidiu contrariamente à posição que granjeara unanimidade total numa questão fundamental, qual seja a de saber se as gorjetas dos trabalhadores dos casinos da STDM integravam o salário.
Perante tais decisões daquele Alto Tribunal, essa questão, bem como as outras que se colocavam, foram já tratadas devidamente numa série de acórdãos deste Tribunal de Segunda Instância e nesta secção em particular, aí se explicando, com o devido respeito, as razões do não acatamento da interpretação do TUI, cientes de que a responsabilidade pela uniformização da Jurisprudência não pode depender unicamente do critério de cada julgador, devendo ser implementada pelo legislador.3
Por essa razão, nessa, bem como nas restantes questões, remetemo-nos para a Jurisprudência deste Tribunal de Segunda Instância.
Ressalva-se a inflexão nessa Jurisprudência, a partir de 31/3/2011, v.g. com o processo n.º 780/2007, de 31/3/2011, deste TSI, apenas para os cálculos de algumas compensações relativamente aos descansos não gozados.
2. Posto, isto, passa-se de imediato à abordagem das questões que vêm colocadas no recurso, o que se fará, pelas razões acima aduzidas, em termos sintéticos.
A primeira questão que se deve apreciar é a da caracterização da relação jurídica existente, o que se reconduz, no fundo, a saber se estamos ou não perante um contrato de trabalho entre ambos celebrado.
Em face do artigo 1079.º do Código Civil, artigos 25º e 27º do anterior RJRL - cfr. artigos 1º, 4), 9º, 2), 57º da actual LRT, Lei 7/2008, de 12 de Agosto, em princípio não aplicável aos contratos findos, face à redacção do disposto no art. 93º -, art. 23°, n.º 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 7º do Pacto sobre Direitos Económicos Sociais e Culturais e pela Convenção da OIT n.º 131, direitos que por essa via não deixam de ser tutelados pela própria Lei Básica no seu artigo 40º, decorre, face à factualidade apurada, que parece não restarem quaisquer dúvidas de que nos encontramos perante um verdadeiro e puro contrato de trabalho entre o empregado e a empregadora, em que esta, mediante uma retribuição, sob autoridade, orientações e instruções daquela, começou a trabalhar na área de actividade ligada à exploração de jogos de fortuna ou azar.
Temos assim por certo que o contrato celebrado entre um particular e a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A., para aquele trabalhar naquela área dos casinos, sob direcção efectiva, fiscalização e retribuição por parte desta, deve ser qualificado juridicamente como sendo um genuíno contrato de trabalho remunerado por conta alheia, contrato esse que deve ser remunerado com uma retribuição justa.
3. Fundamentalmente, o que está em causa é saber se as gorjetas integram o salário do trabalhador. Anote-se que o que interessa é a consideração do que seja o salário para efeitos das compensações a contemplar, face ao que reclamado vem nos autos.
O cerne da questão residirá em saber se, face à matéria de facto, melhor apreendida pelas Instâncias, filtrada e burilada através de tantos e tantos outros processos, se ela não predispõe num outro sentido compreensivo mais abrangente da realidade com que deparamos nos casos da STDM e neste em particular.
A questão não pode ser desenquadrada do seu todo, do rendimento efectivo expectável, da prática adoptada e reiterada anos e anos a fio, da natureza específica da exploração e actividade de um casino, da realidade diversa da de outros ordenamentos em termos de Direito comparado.
O carácter de liberalidade e eventualidade das gorjetas é contrariado pelo facto de as mesmas, no caso dos casinos da STDM, serem por esta reunidos, contabilizados e distribuídos e não se diga que o sistema de contabilização e distribuição pela empresa representa o sistema mais justo e que mais beneficia o trabalhador não é argumento decisivo, pois que sempre se pode entender que essa prática se insere no próprio processo contratual entre as partes e que por isso mesmo o trabalhador espera com uma forte probabilidade vir a auferir uma massa de rendimentos, só por via dela anuindo à celebração daquele contrato de trabalho.
É verdade que quanto à perspectiva tributária incidente sobre as gorjetas esse argumento não se mostra decisivo.
Na perspectiva tributária de direito público, o imposto profissional é um imposto parcelar, estruturado cedularmente, mediante o qual se submete a regime específico de incidência, determinação da matéria colectável e taxa os rendimentos decorrentes do trabalho, por conta de outrem ou por conta própria. Englobam-se nesse tipo de rendimento as gratificações ou gorjetas espontânea e livremente entregues, na sequência de uma reiterada prática social, pelos beneficiários de um determinado serviço ou trabalho, e por causa deste, aos que executaram esses serviço ou trabalho.4
Não obstante o princípio da autonomia privada, há que ter em conta, principalmente no que respeita à liberdade de estipulação do conteúdo, determinadas normas que não podem ser afastadas pela vontade das partes, as quais limitam a liberdade contratual, impondo, pelo menos, um conteúdo mínimo imperativo.
As gorjetas dos trabalhadores da STDM, na sua última ratio devem ainda ser vistas como "rendimentos do trabalho", sendo devidos em função, por causa e por ocasião da prestação de trabalho, ainda que não originariamente como correspectividade dessa mesma prestação de trabalho, mas que o passam a ser a partir do momento em que pela prática habitual, montantes e forma de distribuição, com eles o trabalhador passa a contar, estando nós seguros de que sem essa componente o trabalhador não se sujeitaria a trabalhar com um salário que na sua base é um salário de miséria.
Não se deixam de encontrar no Direito Comparado situações em que a gorjeta integra o valor da remuneração, assim acontecendo no Brasil, compreendendo-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago directamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber e considerando-se gorjeta não só a importância espontaneamente dada pelo cliente ao empregado, como também aquela que for cobrada pela empresa ao cliente, como adicional nas contas, a qualquer título, e destinada à distribuição aos empregados.
Salvaguardando a diferença de sistemas, assim acontece igualmente nos EUA.
Assim acontece em Hong Kong, onde ainda recentemente o Court of Final Appeal decidiu ratificar o entendimento do Court of Appeal no sentido de que as gorjetas deviam integrar o salário com argumentos próximos dos acima expendidos.5
Por outro lado, em Portugal, não minimizando a douta doutrina citada pelo TUI, não se deixa de assinalar, como acima se referiu, que a realidade fáctica diverge em ambos os ordenamentos e num ponto que se nos afigura essencial, qual seja o de em Portugal o rendimento mínimo estar garantido por lei.
4. Do não gozo de dias de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios;
. prova dos factos
. liberdade contratual; da admissibilidade de renúncia voluntária ao gozo de dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios.
Provou-se que o trabalhador em questão trabalhou nos dias de descanso semanal, anual e também feriados obrigatórios e não recebeu qualquer acréscimo.
Para que haja erro manifesto na apreciação da prova tem de resultar da alegação da parte recorrente e dos elementos dos autos a probabilidade de existência de erro de julgamento, o que decorre da indicação não só dos pontos considerados incorrectamente julgados, como da indicação dos concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa (cfr. artigo 599º, n.º 1, a) e b) e 629º do CPC).
No que ao ónus da prova respeita só importaria apreciar a questão em caso de falta de prova dos factos alegados pela parte a quem cabia o ónus de provar os factos integrantes do seu direito(cfr. o n.º 1 do art. 335° do CC), de forma a daí retirar as devidas consequências.
5. Da liberdade contratual.
Ao interpretar e aplicar qualquer legislação juslaboralística em sede do processo de realização do Direito, temos que atender necessariamente ao “princípio do favor laboratoris”, princípio que para além de “orientar” o legislador na feitura das normas juslaborais (sendo exemplo paradigmático disto o próprio disposto no art.º 5.º, n.º 1, e no art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril), deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou a solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir.
Do que acima fica exposto decorre que se A. e Ré podiam acordar nos montantes da retribuição (e o problema que se põe nessa sede não é já o do primado da liberdade contratual mas sim o da determinação da vontade das partes quanto à integração dessa retribuição) já o mesmo não acontece quanto ao gozo dos dias de descanso, férias e feriados e sua remuneração.
6. Da errada interpretação e aplicação do n.° 4, do art. 26° do RJRT - da violação do n.° 2 do art. 564º do CPC
E ainda da configuração do salário como mensal.
As características e natureza do trabalho, tal como vem provado, harmonizam-se mais com o considerar que se tratava de um salário mensal, estando a remuneração não já dependente do resultado de trabalho efectivamente produzido, nem, tão-pouco, do período de trabalho efectivamente prestado.
Da redacção do n.º 4 do artigo 26º decorre uma consequência importantíssima na interpretação das normas que atribuem as compensações pelo trabalho prestado nesses dias. É que o n.º 1 do art.º 26.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, atentos os termos empregues na redacção da sua parte final, - os trabalhadores que auferem um salário mensal...não podendo sofrer qualquer dedução pelo facto de não prestação de trabalho nesses períodos (períodos de descanso semanal e anual e feriados obrigatórios) - visa tão-só proteger o trabalhador contra eventual redução do seu salário mensal por parte do seu empregador sob pretexto de não prestação de trabalho nesses períodos e, por isso, já não se destina a determinar o desconto do valor da remuneração normal na compensação/indemnização pecuniária a pagar ao trabalhador no caso de prestação de trabalho em algum desses dias.
Essa posição, no respeitante ao tipo do salário, releva para aplicação do n.º 6 do art.º 17.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, na actual redacção dada pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 32/90/M, de 9 de Julho, já que na hipótese de pagamento do trabalho prestado em dia de descanso semanal, por força do n.º 6, é ao disposto na sua alínea a) que se atende e já não ao determinado na sua alínea b).
7. Da lei aplicável.
Ainda aqui nos remetemos para o desenvolvimento feito nos acórdãos já citados.
Posto isto, assim se entra na análise da correcção da sentença recorrida quanto ao apuramento das compensações devidas pela entidade patronal, por violação dos diferentes tipos de descanso do trabalhador e assim do invocado erro de direito em relação às pertinentes normas reguladoras daquelas compensações.
Neste caso particular acompanhamos as fórmulas adoptadas na Jurisprudência quase unânime deste Tribunal, unanimidade que sofreu até ao momento apenas a excepção da compensação do trabalho prestado em dias de feriados obrigatórios e a inflexão a partir de 31/3/2011, com o processo n.º 780/2007, de 31/3/2011, deste TSI .6
Donde resultam as fórmulas seguintes que aqui se entendem ser as correctas:
No âmbito do
Descansos semanais
Descansos anuais
Feriados Obrigatórios
DL101/84/M
X17
X1
X18
DL24/89/M
X2
X19
X3
8. Os rendimentos deste processo constam da matéria acima dada como provada.
Ano
Salário Médio Diário
1
1992
165
2
1993
299
3
1994
351
4
1995
407
5
1996
446
6
1997
444
7
1998
485
8
1999
377
9
2000
401
10
2001
453
11
2002
245
Há, assim, que refazer os cálculos a partir dos valores integrantes do salário do trabalhador, na certeza de que o objecto principal do recurso é circunscrito pelo próprio recorrente ao conceito de salário, não se pronunciando sobre as fórmulas.
Donde terem de se alterar os factores de cálculo adoptados pelo Mmo Juiz a quo, bem como as fórmulas, na medida em que tenham sido impugnadas pelo próprio recorrente e pela recorrente STDM no recurso subordinado.
9. Trabalho prestado em dia de descanso semanal
Em sede do DESCANSO SEMANAL importa alterar os montantes, face aos valores do salário relevante apurado, alterando-se a fórmula encontrada por vir recurso interposto quanto a essa questão.
Assim, configura-se o seguinte quadro para o DESCANSO SEMANAL
(sob a alçada do Decreto-Lei n.° 24/89/M):
Ano
número de dias
vencidos e não gozados
(A)
remuneração
diária média
em MOP
(B)
Quantia indemnizatória
(A x B x 2)
1992
13
165
4,290
1993
52
299
31,096
1994
52
351
36,504
1995
52
407
42,328
1996
52
446
46,384
1997
52
444
46,176
1998
52
485
50,440
1999
52
377
39,208
2000
52
401
41,704
2001
52
453
47,112
2002
28
245
13,720
Total das quantias
→
398,962
10. Descanso anual
Em sede de DESCANSO ANUAL, importa igualmente recalcular os montantes apurados, adoptando-se a formula X 1, visto o recurso subordinado.
sob a alçada do Decreto-Lei n.°24/89/M
Ano
dias vencidos mas não gozados
nesse ano
(A)
valor da remuneração diária média nesse ano em MOP
(B)
Quantia indemnizatória
em MOP
(A x B x 1)
1992
1,5
165
247.5
1993
6
299
1,794
1994
6
351
2,106
1995
6
407
2,442
1996
6
446
2,676
1997
6
444
2,664
1998
6
485
2,910
1999
6
377
2,262
2000
6
401
2,406
2001
6
453
2,718
2002
3
245
735
Total de todas as quantias →
22,960.50
11. Feriados obrigatórios
Não vem interposto recurso quanto à fórmula adoptada na sentença recorrida, x1, pelo que se mantém tal fórmula.
sob a alçada do Decreto-Lei n.°24/89/M
Ano
dias vencidos mas não gozados
nesse ano
(A)
valor da remuneração diária média nesse ano em MOP
(B)
Quantia indemnizatória
em MOP
(A x B x 1)
1992
1
165
165
1993
6
299
1,794
1994
6
351
2,106
1995
6
407
2,442
1996
6
446
2,676
1997
6
444
2,664
1998
6
485
2,910
1999
6
377
2,262
2000
6
401
2,406
2001
6
453
2,718
2002
5
245
1,225
Total de todas as quantias →
23,368
12. Concluindo,
Os valores encontrados para a compensação dos descansos semanais, anuais e feriados obrigatórios alteram-se em conformidade com os valores constantes dos mapas supra;
Conclui-se assim pela existência dos apontados vícios de interpretação dos factos e do direito.
Tudo visto e ponderado, resta decidir,
IV - DECISÃO
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam os Juízes que compõem o Colectivo deste Tribunal, em conferência, em:
- julgar parcialmente procedentes os recursos da decisão final e subordinado, interpostos pelo trabalhador e empregadora, alterando a sentença proferida e condenando a Ré a pagar ao A. os montantes em conformidade com os valores calculados nos mapas supra;
- em condenar no pagamento dos juros de mora, a contar a partir do momento desta decisão, vista a alteração verificada em relação à liquidação feita em 1ª Instância (cfr. Ac. TUI n.º 69/2010, de 2/3/11).
Custas dos recursos e por via desta decisão, em ambas as instâncias, pelo A. e Ré, na proporção dos respectivos decaimentos.
Macau, 25 de Julho de 2013,
(Relator)
João A. G. Gil de Oliveira (vencido apenas quanto às fórmulas na parte divergente da Jurisprudência dominante deste Tribunal até 31/3/11, de acordo, designadamente, com os Acs n.ºs 330/05, de 11/5/06; 76/06, de 22/6/06 e 295/06, de 5/10/06)
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto) José Cândido de Pinho
1 - Processos 241/2005, 297/05, 304/05, 234/05, 320/05, 255/05, 296/05, respectivamente de 23/5/06, 23/2/06, 23/2/06, 2/3/06, 2/3/06, 26/1/06, 23/2/06, 330/2005 , 3/2006, 76 /2006.
2 - Processos 28/2007, 29/2007, 58/2007, de 21/7/07, 22/11/07 e 27/2708, respectivamente
3 - Cfr. processos, deste TSI, de 19/2/09, 314/2007, 346/2007, 347/2007, 360/2007, 370/2007
4 - Parecer da PGR n.º P001221988, de 18/11/88
5 - Proc. 55/2008, de 19/1/09, betweeen XXX and HK XX Travel Service Limited, in http://www.hklii.org/hk
6 - Vd. douto voto vencido nos Acórdãos 234/2005 e 257/2007, de 2/3/06 e 9/3/06, respectivamente
7 - Na Jurisprudência uniforme deste TSI até 31/3/11 não havia compensação no âmbito do DL101/84/M, de 25 de Agosto
8 - Na Jurisprudência uniforme deste TSI até 31/3/11 não havia compensação no âmbito do DL101/84/M, de 25 de Agosto
9 - Na Jurisprudência uniforme deste TSI até 31/3/11 a fórmula era x2
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379/2013 1/25