Processo n.º 996/2012 Data do acórdão: 2013-7-25 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– art.º 74.º do Código Penal
– desconto da pena
– medida de coacção de proibição de entrada nos casinos
– pena acessória de proibição de entrada nos casinos
– art.o 15.o da Lei n.o 8/96/M
S U M Á R I O
1. Como após vistos crítica e globalmente todos os elementos probatórios então carreados aos autos, não se vislumbra como evidente ao tribunal ad quem que o tribunal a quo, ao ter julgado a matéria de facto como o fez concretamente no seu acórdão, tenha violado alguma regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou violado alguma norma jurídica cogente sobre o valor da prova, ou violado quaisquer legis artis a observar na tarefa jurisdicional de julgamento de factos, não pode ocorrer o vício de erro notório na apreciação da prova referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
2. O regime de desconto da pena vertido no art.º 74.º do Código Penal tem por objecto somente “a detenção e a prisão preventiva sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado”, pelo que o período de tempo em que o arguido, a título de uma medida de coacção a si imposta nos autos, ficou interditado de entrar nos casinos de Macau, não pode ser descontado no período da pena acessória por que veio a ser condenado nos autos nos termos do art.o 15.o da Lei n.o 8/96/M, de 22 de Julho.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 996/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrentes (arguidos):
A
B
C
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformados com o acórdão proferido a fls. 178 a 184v dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-12-0020-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que os condenou todos, como co-autores materiais, na forma consumada, de dois crimes de usura para jogo, p. e p. pelo art.o 13.º da Lei n.º 8/96/M, de 22 de Julho, conjugado com o art.º 219.º, n.º 1, do vigente Código Penal (CP), na pena de sete meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de nove meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, com proibição de entrada nos estabelecimentos de casino de Macau pelo período de dois anos, vieram o 1.º arguido A, o 2.º arguido B e o 3.º arguido C recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a reforma desse julgado a favor deles, tendo para o efeito concluído a respectiva motivação una (apresentada a fls. 202 a 204 dos presentes autos correspondentes) de moldes essencialmente seguintes:
– os acusados factos respeitantes ao decurso de estipulação de juros deveriam ter sido julgados como não provados, por força do princípio de in dubio pro reo e por apelo às regras da experiência da vida humana, dado que para já não pode relevar o depoimento da testemunha policial quanto à matéria de estipulação de juros (porque esta testemunha de acusação não chegou a presenciar pessoalmente esse decurso de estipulação de juros), e por outro lado, os três arguidos e o ofendido apresentaram versões fácticas antagónicas entre si, não podendo, pois, ter o Tribunal recorrido formado a sua convicção sobre os factos acusados somente com base na versão fáctica declarada pelo ofendido em sede das declarações para memória futura;
– devendo considerar-se assim a inexistência de juros, os três arguidos merecem punição mais leve;
– e como ao arguido A já foi aplicada, em 15 de Fevereiro de 2007, a medida coactiva de proibição de entrada nos casinos, medida essa que terminou em 14 de Setembro de 2007, deveria ser feito o desconto desse período de tempo na duração da sua pena acessória aplicada no acórdão recorrido.
Aos recursos, respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal recorrido no sentido de improcedência da argumentação dos recorrentes (cfr. a resposta de fls. 206 a 207v dos autos).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 217 a 218v), pugnando até pela rejeição dos recursos, por ela tidos como manifestamente improcedentes.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos e realizada a audiência neste TSI, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Segundo a factualidade descrita como provada no acórdão recorrido (originalmente em chinês, com tradução para português aqui feita pelo ora relator), e na sua parte essencial que ora interessa à decisão dos recursos:
– antes de 13 de Fevereiro de 2007, o ofendido já conheceu os três arguidos B, A e C como bate-fichas em casino;
– na altura, por cada conversão de HKD100.000,00 de fichas de dinheiro em fichas de jogo em sala de casino, os três arguidos tinham direito a receber HKD900,00 em numerário e uma senha de comida em HKD50,00, como comissão da troca de fichas de jogo;
– em 13 de Fevereiro de 2007, cerca da zero hora e trinta minutos, numa sala VIP de jogos do Casino Rio de Macau, o ofendido, depois de ter perdido nos jogos todo o capital por si preparado, disse ao arguido B, encontrado dentro desse estabelecimento de casino, que pretendia pedir emprestar dinheiro para jogar;
– o arguido B disse que estava disposto a emprestar dinheiro ao ofendido para jogar, com a condição de que: por cada HKD90.000,00 emprestados, haveria que pagar HKD10.000,00 como juros, e durante os jogos, caberia aos arguidos B e A trocar as fichas de jogo, para ganhar a acima referida comissão por troca de fichas de jogo;
– o ofendido concordou com as referidas condições de empréstimo, e pediu emprestar HKD180.000,00 para jogar;
– em seguida, o arguido B telefonou para o arguido A para levantar HKD180.000,00 em fichas de jogo e para vir à acima referida sala de jogo para o encontro;
– momento depois, o arguido A entregou as referidas fichas de jogo em HKD180.000,00 ao ofendido, e o ofendido começou então a usar essas fichas de jogo para jogar na dita sala VIP de jogos, no decurso do que foram os arguidos B e A quem trocaram fichas para o ofendido;
– depois de perder todo o acima emprestado, o ofendido disse aos arguidos B e A que queria pedir emprestar HKD90.000,00;
– depois da discussão, os arguidos B e A disseram que poderiam emprestar HKD90.000,00 ao ofendido para jogar, com condições iguais às do empréstimo acima referido;
– após a concordância do ofendido, o arguido A entregou HKD90.000,00 em fichas de jogo ao ofendido para jogar, e no decurso de jogos praticados pelo ofendido como uso dessas fichas, foram os arguidos B e A quem trocaram fichas de jogo para o ofendido;
– depois de perder outra vez todo o emprestado, o arguido A telefonou ao arguido C, para pedir a este, que concordou, a cessão do uso de uma conta bancária para efeitos de transferência de dinheiro por parte do ofendido a título de pagamento da dívida;
– portanto, sob instruções dos arguidos B e A, o ofendido telefonou para os familiares no Interior da China para que transferissem RMB255.000,00 para a referida conta a título de pagamento da dívida, e prometeu em pagar, em 25 de Fevereiro de 2007, a remanescente dívida no valor de HKD45.000,00;
– os acima referidos HKD270.000,00 foram capital conjunto dos três arguidos e emprestado ao ofendido para jogar no casino;
– os três arguidos, ao praticarem os actos acima referidos, agiram intencionalmente, e de modo livre, voluntário e consciente;
– os três arguidos, em consenso na vontade e com divisão de tarefas, emprestaram, por duas vezes, capital ao ofendido para jogar, com o fim de obterem, mediante isso, interesses pecuniários para eles próprios e para outrem;
– os três arguidos sabiam claramente que a conduta deles era proibida e punível por lei;
– os três arguidos são delinquentes primários;
– o arguido A declarou estar desempregado há um ano, ter uma filha a seu cargo, e ter o 2.º ano do ensino secundário complementar como habilitações literárias;
– o arguido B declarou ser motorista, com cerca de MOP13.000,00 de rendimento mensal, ter uma filha a seu cargo, e ter por nível de educação o curso secundário complementar completo;
– o arguido B declarou estar desempregado, precisar de sustentar duas filhas, e ter por habilitações literárias o curso secundário elementar completo.
Outrossim, da acta da audiência de julgamento feita perante o Tribunal a quo, consta que os três arguidos negaram a prática dos factos acusados.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Os três recorrentes começaram por apontar, materialmente falando, ao Tribunal recorrido o cometimento de erro notório na apreciação da prova na parte respeitante ao decurso de estipulação de juros de empréstimos.
Contudo, após vistos crítica e globalmente todos os elementos probatórios então carreados aos autos, não se vislumbra como evidente ao presente Tribunal ad quem que o Tribunal a quo, ao ter julgado a matéria de facto como o fez concretamente no seu acórdão, tenha violado alguma regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou violado alguma norma jurídica cogente sobre o valor da prova, ou violado quaisquer legis artis a observar na tarefa jurisdicional de julgamento de factos, pelo que há que decair toda a tese defendida a este respeito na motivação una dos três recorrentes.
Intocada que está a factualidade já assente no acórdão recorrido, é de verificar, dentro da problemática da medida da pena, que atentas sobretudo as prementes exigências de prevenção geral do crime de usura para jogo (punível com pena de prisão até três anos) e a falta de confissão dos factos pelos três arguidos, as penas parcelares e única de prisão fixadas pelo Tribunal recorrido já não admitem mais margem para redução, aos padrões da medida da pena plasmados nos art.os 40.º, n.os 1 e 2, 65.º, n.os 1 e 2, e 71.º, n.os 1 e 2, do CP, mesmo que todos eles sejam delinquentes primários, sendo, por outro lado, de frisar que a pena acessória de proibição de entrada nos estabelecimentos de casino de Macau já se encontrou fixada no acórdão recorrido para os três arguidos no seu limite mínimo legal, dentro da moldura de dois a dez anos prevista no art.º 15.º da Lei n.º 8/96/M, de 22 de Julho.
Por fim, quanto à questão do pretendido desconto do período de interdição de entrada em casinos fixado no acórdão recorrido para o arguido A, a razão não está no lado deste recorrente, posto que o regime de desconto vertido no art.º 74.º do CP tem por objecto somente “a detenção e a prisão preventiva sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado”.
Do exposto, decorre a devida manutenção do julgado feito pela Primeira Instância, sem necessidade de abordagem, por estar precludida pela análise acima feita, de todo o remanescente alegado pelos recorrentes.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento aos recursos dos três arguidos A, B e C.
Custas dos recursos pelos respectivos recorrentes, com seis UC de taxa de justiça individual para os arguidos B e C e oito UC de taxa de justiça para o arguido A, devendo pagar cada um dos recorrentes duas mil e quinhentas patacas de honorários a favor do mesmo Ex.mo Defensor Oficioso.
Comunique ao ofendido.
Macau, 25 de Julho de 2013.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
(seguir declaração)
Processo nº 996/2012
(Autos de recurso penal)
Declaração de voto
Com o douto Acórdão que antecede, julgou-se improcedente o pedido deduzido no sentido de se proceder ao desconto na “pena acessória de interdição de entrada nos casinos”, fixada em 2 anos, da anterior “medida de coacção de proibição de entrada nos casinos”, ao arguido A aplicada em 15.02.2007, e que se manteve até 14.09.2007.
Não subscrevo o assim decidido.
Como tenho vindo a entender, o processo penal tem de ser um “processo equitativo e leal”, (“fair trial”), o que obriga a que o ius puniendi seja exercido com respeito pela pessoa do arguido, assegurando-se-lhe todas as garantias de defesa.
Por sua vez, num processo equitativo e leal, só será compreensível uma “restrição de direitos” como medida de coacção, desde que assente na forte probabilidade da culpa e posterior condenação do arguido.
Nessa conformidade, definindo-se na decisão final condenatória qual a “pena adequada e necessária” ao crime cometido, não se pode olvidar a parte já cumprida, (ainda que tal cumprimento tenha ocorrido antes da dita decisão final).
Com efeito, a “pena”, seja ela principal ou acessória, é – só pode ser – a “justa reacção penal” à conduta do arguido, e, assim, não obstante o art. 74° do C.P.M. prever tão só o “desconto” da “detenção” e “prisão preventiva” sofridas pelo arguido, afigura-se-nos que adequado era considerar o aí enunciado como um “princípio geral”, com aplicação ao caso dos autos, até porque em causa está a mesma “proibição/interdição de entrada nos casinos”.
Aliás, se nos termos do art. 76° do C.P.M., “é descontada, nos termos dos artigos anteriores, qualquer medida processual ou pena que o agente tenha sofrido, pelo mesmo ou pelos mesmos factos, fora de Macau”, motivos não me parecem existir para não se descontar também da pena acessória aplicada ao arguido a (mesma) medida de coacção a que antes esteve sujeito.
Macau, aos 25 de Julho de 2013
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