Processo nº 833/2012
(Autos de recurso contencioso)
Data: 16/Janeiro/2014
Assunto: Interdição de entrada na RAEM
Exercício de poderes discricionários
Erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários
Princípio da proporcionalidade
SUMÁRIO
- É conferido à Administração, no exercício dos seus poderes discricionários, o poder ou a liberdade de escolher, de entre uma série de soluções possíveis, aquela que lhe pareça melhor para o caso concreto, a fim de satisfazer a necessidade e o interesse público legalmente previstos.
- Havendo fortes indícios de prática do crime de ofensa simples à integridade física pelo não-residente, e considerando que a sua estadia em Macau pode causar perigo efectivo para a segurança e ordem públicas da RAEM, a decisão tomada pela Administração que interdita a sua entrada na RAEM escapa à sindicância judicial, se aquela não está viciada de erro grosseiro e manifesto ou total desrazoabilidade.
O Relator,
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Tong Hio Fong
Processo nº 833/2012
(Autos de recurso contencioso)
Data: 16/Janeiro/2014
Recorrente:
- A
Entidade recorrida:
- Secretário para a Segurança
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A, do sexo masculino, titular do passaporte da República Popular da China nº G5XXXXXX3, melhor identificado nos autos, notificado do despacho do Senhor Secretário para a Segurança tomado em 31 de Julho de 2012, que determinou a sua interdição de entrada na RAEM pelo período de 3 anos, vem interpor o presente recurso contencioso de anulação do referido despacho, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
- Com o devido respeito, não aceita o recorrente que a conduta descrita, ainda que com a coloração atribuída pelo acto recorrido, possa configurar perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM. Tal como não se aceita que a conduta é particularmente violenta e lesiva dos interesses de segurança e ordem públicas;
- A conduta imputada ao ora recorrente não pode categorizar-se como 《conduta particularmente》 violenta e, por conseguinte, não configura um 《perigo efectivo》(art.º 12º, n.º 3 da Lei 6/2004) para a segurança e ordem pública, até por ser um mero acto isolado — que não permite a conclusão de que revela um traço inequívoco da personalidade do recorrente, no sentido de tornar expectável a sua repetição, ou sequer meramente provável a sua recorrência;
- A consequência passará necessariamente pela conclusão de que o acto recorrido de interdição de entrada por 3 (três) anos não é proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinaram, incumprindo, portanto, com os parâmetros estabelecidos no n.º 4 do citado art.º 12º da Lei n.º 6/2004;
- Efectivamente, o facto da desistência de queixa por parte do alegado ofendido bem revela que tudo não passou de mera altercação sem maiores consequências, sem alarme social ou desacato de ordem pública;
- Não bastam meras considerações subjectivas, ou conjecturas de ordem psicológica e hipotética, para aplicação da medida de interdição, para mais por um período apreciável de três anos;
- Sem processo judicial transitado não é possível, com segurança, produzirem-se afirmações como sejam que o empregado da loja abeirou-se da mesa do recorrente 《solicito》, ou que o recorrente《sem mais nem menos, pega numa garrafa de cerveja que estava na mesa, e com um golpe parte-a na cabeça do empregado》;
- Nem se invoquem as declarações anteriormente prestadas pelo ora recorrente, as quais não têm o valor legal de confissão e, no limite, poderiam ter sido prestadas de modo a proteger outrem, designadamente a senhora com quem se encontrava na ocasião;
- Perante a dúvida, não resolvida por quaisquer meios probatórios em sede judicial, estava a Administração obrigada a actuar em conformidade com os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, — que são para a Administração vinculativos, como são para o julgador;
- Os invocados princípios estão visceralmente ligados, e constituem aquisições civilizacionais já com larga e vetusta tradição, sendo diversos os corolários do princípio da presunção de inocência, designadamente:
(1) Apenas a sentença judicial tem a faculdade de vencer definitivamente a eficácia da presunção de inocência do acusado,
(2) No momento da sentença apenas existem duas possibilidades ou categorias: culpado ou inocente, não sendo admitido qualquer outro julgamento,
(3) A “culpabilidade” deve ser juridicamente provada, o que implica a aquisição de um grau de certeza,
(4) Ou, em outra perspectiva, que o acusado não tem que provar a sua inocência e não pode ser tratado como um culpado,
(5) A presunção de inocência impede, ainda, a existência de quaisquer “mitos de culpa”, isto é, partes da culpa que não necessitam de ser provadas,
(6) Vale em quaisquer processos, sejam de natureza criminal ou meramente administrativa.
- O acto recorrido está, portanto, ferido de ilegalidade, por violação dos princípios da presunção de inocência (consignado no art.º 29º da Lei Básica) e do in dubio pro reo e, bem assim, das disposições dos n.ºs 3 e 4 do art.º 12º da Lei n.º 6/2004.
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Regularmente citada, pela entidade recorrida foi apresentada a contestação constante de fls. 28 a 34 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, pugnando pelo não provimento do recurso.
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Findo o prazo para alegações, o Ministério Público deu o seguinte parecer:
“Na petição inicial, o recorrente solicitou a anulação do despacho em causa, pelo qual o Exmo. Sr. Secretário para Segurança lhe aplicou a interdição de entrada por período de 3 anos, e por cautela e a título subsidiário, a redução da dita interdição ao limite máximo de 9 meses.
Para fundamentar a invocada violação pelo despacho recorrido do princípio da presunção de inocência, do in dubio pro reo e do da proporcionalidade, o recorrente argumentou que não há in casu decisão judicial transitada em julgado, que declarou a sua culpa.
O n.º 1 do art.º 579º do CPC dispõe: A decisão penal, transitada em julgado, que tenha absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
Por maioria da razão, um despacho proferido pelo magistrado do M.º P.º de arquivar um inquérito por desistência da queixa pelo ofendido do crime de ofensa simples à integridade física nada impede que a Administração vá valorizar a conduta do arguido, conduta que seja subsumível ao referido crime.
De qualquer modo, acompanhamos inteiramente a douta tese de que tanto no poder de recusar a entrada na RAEM, como na ponderação da existência dos indícios de terem praticado de qualquer crime, a lei confere à autoridade o largo poder discricionário; a recusa da entrada na RAEM, sendo uma medida policial com a finalidade de assegurar a paz e a tranquilidade social desta comunidade, não confronta com o princípio da presunção da inocência. (Acórdão do Venerando TSI n.º 759/2007)
Voltado ao caso vertente, logo se vê que não obstante o magistrado do M.º P.º ordenar o arquivamento, por desistência da queixa por ofendido, do Inquérito n.º 1559/2012 (cfr. fls. 15 do P.A.), os dados constantes de fls. 22 a 42 do P.A. demonstram seguramente que o recorrente praticou ofensa simples à integridade física, sem nenhuma razão.
Nestes termos, não pode deixar de falecer o argumento de violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
No douto Acórdão emanado do Processo n.º 127/2012, o venerando TSI sustenta: “Perigo efectivo” e “perigo para a ordem e segurança públicas” constituem conceitos jurídicos indeterminados, os quais podem ser sujeitos a interpretação jurisdicional, sem que, porém, possam ser sindicados na zona de incerteza e de prognose sobre comportamento futuro das pessoas visadas que eles conferem à actuação administrativa, salvo em caso de manifesto e ostensivo erro grosseiro e tosco.
No do Processo n.º 654/2011, o mesmo proclama: Na matéria da discricionariedade, o papel do Tribunal limita-se a sindicar as situações do desvio de poder, da total desrazoabilidade no seu exercício e da violação grosseira do princípio da proporcionalidade.
Por sua vez, inculca o Venerando TUI (cfr. a título exemplificativo, Acórdão no Processo n.º 36/2006): No recurso contencioso, se o acto impugnado for praticado no âmbito de poderes discricionários, o tribunal só pode sindicar o mérito deste tipo de acto quando se verifica o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, ou a violação, de forma intolerável, dos princípios fundamentais do Direito Administrativo.
A leitura atenciosa dos sapientes arestos do TUI e do TSI semeia-nos a ideia de que as resoluções em sentido convergente se formam jurisprudência uniforme e constante. De tudo isto nos dão conta, propositada e proficientemente, os prolatados pelo TUI nos n.º 34/2007, n.º 56/2010, n.º83/2012, e pelo TSI nos n.º 282/2004, n.º 259/2005, n.º 109/2006, n.º 662/2007, n.º 594/2009, n.º 346/2010 e n.º 647/2010.
Por todo o expendido, pugnamos pela improcedência do presente recurso contencioso.”
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O Tribunal é o competente e o processo o próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, e têm interesse processual.
Não existe outras nulidades, excepções nem questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
Resulta provada dos elementos constantes dos autos, designadamente do processo administrativo, a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão da causa:
No dia 16 de Janeiro de 2012, num estabelecimento de sopa de fitas, quando o recorrente estava a discutir com a sua amiga, abeirando-se do mesmo um empregado de mesa daquela loja perguntando-lhe o que queria comer, de repente, o recorrente pegou numa garrafa de cerveja com a qual deu um golpe na cabeça do tal empregado, causando-lhe ferimentos.
Após o que fugiu do local.
Tendo sido instaurado inquérito, mas o mesmo acabou por ser arquivado face à desistência de queixa apresentada pelo ofendido.
Por despacho do Sr. Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, de 28/2/2012, foi determinada a interdição de entrada do recorrente na RAEM, pelo período de 3 (três) anos (cfr. fls. 43 do processo administrativo).
Inconformado com o despacho, apresentou recurso hierárquico necessário junto do Sr. Secretário para a Segurança, tendo este proferido, em 31 de Julho de 2012, despacho no sentido de manutenção da interdição de entrada do recorrente na RAEM, pelo período de 3 anos (cfr. fls. 8 e 9 do processo administrativo).
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Alega o recorrente que o acto recorrido está ferido de ilegalidade por violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, bem como do disposto no artigo 12º, nº 3 e 4 da Lei nº 6/2004.
Entende o recorrente que sem havendo um processo judicial transitado não é possível considerar-se assentes os factos imputados ao recorrente, pelo que a Administração estava obrigada a actuar em conformidade com os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.
Vejamos.
Embora sejam a presunção de inocência e in dubio pro reo princípios fundamentais em processo penal, tendo aquele primeiro ainda consagração na Lei Básica, mas a verdade é que não estamos aqui em causa a apreciação da responsabilidade penal do recorrente.
No fundo, não se cura de saber se deve ser aplicada ao recorrente alguma pena ou medida de segurança, enquanto reacção pública ao crime, caso em que teria sempre que ter em linha de conta os referidos princípios norteadores, mas sim estamos no âmbito do exercício da actividade administrativa, em que a Administração terá o cuidado de tomar decisões destinadas a satisfazer interesses públicos.
Enquanto a questão da recusa à entrada na RAEM de não-residentes está ligada a assuntos inseridos no âmbito da actividade administrativa, não se deve falar aqui de violação quer do princípio da presunção de inocência quer do de in dubio pro reo.
Igual entendimento foi perfilhado pelo Acórdão deste TSI, no Processo 759/2007, onde se refere que “a recusa da entrada na RAEM, sendo uma medida policial com a finalidade de assegurar a paz e a tranquilidade social desta comunidade, não confronta com o princípio da presunção da inocência”.
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Sustenta ainda o recorrente que a conduta do recorrente nunca pode ser configurada como um perigo efectivo para a segurança e ordem públicas da RAEM.
Consagra-se alínea 3) do nº 2 do artigo 4º da Lei nº 4/2003 que “pode ser recusada a entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes” – sublinhado nosso.
Por sua vez, a alínea 1) do nº 2 do artigo 12º da Lei nº 6/2004 dispõe que “pode igualmente ser decretada a interdição de entrada preventiva ou sucessivamente, quando os motivos que levam à recusa de entrada, nos termos das alíneas 1) a 3) do nº 2 do artigo 4º da Lei nº 4/2003, justifiquem que essa medida seja prolongada no tempo”.
Entretanto, exige-se no número 3 do mesmo artigo que “a interdição de entrada pelos motivos constantes das alíneas 2) e 3) do nº 2 do artigo 4º da Lei nº 4/2003 deve fundar-se na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM” – sublinhado nosso.
Sobre a questão em causa, o Venerando TUI já teve oportunidade de se pronunciar no Processo 13/2012, onde se refere que “a decisão de decretar a interdição de entrada às pessoas a quem seja revogada a autorização de permanência é discricionária, como também é discricionária a fixação do período de interdição de entrada, já que os conceitos a que a lei subordina o mesmo período concedem uma margem de livre apreciação à Administração (deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam)”.
Assim, segundo aquele douto aresto, o exercício de poderes discricionários não está sujeito a sindicância pelos tribunais, salvo em caso de erro manifesto ou total desrazoabilidade.
No vertente caso, a entidade recorrida interditou a entrada do recorrente na RAEM pelo período de 3 anos, por se entender haver indícios de o mesmo ter praticado crime de ofensa à integridade física contra residente.
Na verdade, não é necessária aqui a condenação do recorrente em pena privativa de liberdade, basta a simples existência de indícios de que o mesmo tenha sido cometido algum crime.
Conforme se decidiu no Acórdão do Venerando TUI, no Processo 9/2000, a questão de “fortes indícios” da prática de crime é um conceito indeterminado que envolve uma tarefa de interpretação por parte da Administração, vinculada à lei e não está em causa a atribuição normativa de qualquer poder discricionário.
Daí que é judicialmente revisível.
Tem-se entendido haver fortes indícios da prática de crime quando, de acordo com os elementos probatórios recolhidos em determinada fase processual, se prevê que o agente terá muito provavelmente que ser condenado numa pena ou medida de segurança.
In casu, face aos elementos carreados, a saber o teor do auto de notícia, o relatório do exame directo e o auto de apreensão, todos juntos ao processo administrativo, indicia suficientemente a prática pelo recorrente de um crime de ofensa simples à integridade física, tendo em conta que no dia 16 de Janeiro de 2012, num estabelecimento de sopa de fitas, quando um empregado de mesa abeirou-se do recorrente perguntando-lhe o que queria comer, por estar ele furioso dado que se encontrava a discutir com a sua amiga, pegou de repente numa garrafa de cerveja com a qual deu um golpe na cabeça do tal empregado, causando-lhe ferimentos.
Nestes termos, não há dúvidas quanto à existência de fortes indícios de prática do crime de ofensa à integridade física, não obstante ter o ofendido desistido da queixa contra o recorrente, mas como acima se referiu, não se cura de saber aqui da responsabilidade penal do mesmo.
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Alega ainda o recorrente que não está verificado o chamado “perigo efectivo para a segurança e ordem públicas da RAEM”.
Salvo o devido respeito, julgamos não assistir razão ao recorrente.
No que toca ao sentido da expressão, igualmente o Venerando TUI já teve oportunidade de se pronunciar, no Processo 9/2000, referindo-se “o que está em causa é um juízo de avaliação da sua actividade futura, é a emissão de juízos de valor que contêm elementos subjectivos, muitos deles integrados numa prognose. Esta…é um raciocínio através do qual se avalia a capacidade para uma actividade futura, se imagina a evolução futura de um processo social ou se sopesa a perigosidade de uma situação futura.”
Diz ainda o referido douto aresto que “a intenção da lei é a de conceder uma margem de livre apreciação à Administração, cujo mérito não deve ser sindicado pelo tribunais”.
Nestes termos, não obstante estarmos em causa conceitos indeterminados, mas por conter uma grande indeterminação, a intenção do legislador é conferir uma margem de livre apreciação à Administração, ou seja, são-lhe conferidos poderes de interpretar aqueles conceitos não densificados com recurso a um juízo de prognose, face às especificidades de cada caso concreto, cuja disciplina escapa à fiscalização judicial.
Mas isto não significa que as decisões da Administração tornam-se sempre imunes a qualquer controle judicial, mas a sindicância só aparece em caso de erro grosseiro e manifesto.
Decidiu o TUI, no Processo 6/2000, que “quando o acto resultado do exercício do poder discricionário ou da margem de livre decisão está manifestamente contrário aos princípios jurídicos fundamentais a que as actividades administrativas devem respeito, o tribunal pode anular o acto por este fundamento no uso da competência da fiscalização da legalidade. Fica, assim, garantidos adequadamente os direitos e interesses legais prejudicados através do meio jurisdicional sem detrimento do pleno exercício dos poderes discricionários pela Administração”.
No presente caso, é conferido pela lei à Administração o poder de recusar a entrada de não-residente na RAEM na medida em que se verifica a existência de fortes indícios de aquele ter praticado qualquer crime, cuja sua permanência em Macau pode constituir um perigo para a segurança ou ordem públicas da RAEM.
De acordo com a matéria carreada aos autos, verifica-se a existência de fortes indícios da prática pelo recorrente de actos de agressão contra residente da RAEM.
Por outro lado, devemos notar que o recorrente tem uma personalidade mal formada, designadamente é uma pessoa que se irrita facilmente e bastante violenta.
Sendo a integridade física um bem jurídico iminentemente pessoal, o desvalor que a acção ilícita representa para a sociedade é motivo suficiente para recusar a entrada do recorrente na RAEM.
E também não deixa de ser verdade que essa medida é adequada e necessária para assegurar o normal funcionamento da Região, com vista a manter a paz e a ordem pública, assegurar o bem comum e satisfazer as necessidades colectivas, no fundo, é para evitar qualquer tipo de desestabilização social.
Uma vez ponderado que a sua estadia em Macau pode causar perigo efectivo para a segurança e ordem públicas da RAEM, e não se descortinando que a actuação da Administração está viciada de qualquer erro grosseiro e manifesto, não se vislumbra fundamento nenhum para ver anulado o acto.
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O recorrente alega ainda que o acto recorrido viola o disposto no artigo 12º, nº 4 da Lei 6/2004, o qual exige que o período de interdição de entrada tenha que ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam.
Trata-se aqui do exercício de poderes discricionários pela entidade recorrida, à qual é conferido pela lei o poder ou a liberdade de escolher, de entre uma série de soluções possíveis, aquela que lhe pareça melhor para o caso concreto, a fim de satisfazer a necessidade e o interesse público legalmente previstos.
No fundo, o fim que aquela lei visou ao conferir à Administração esse poder de autorizar ou recusar a entrada de não-residentes na RAEM era assegurar a tranquilidade social e segurança pública da Região, impedindo a entrada e permanência de pessoas indesejáveis, com vista a proteger os interesses pessoais e patrimoniais quer dos residentes quer dos demais visitantes que cá permanecem.
Estatui-se nos termos do artigo 21º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Administrativo Contencioso que constitui fundamento do recurso, entre outros, o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
Conforme se decidiu no Acórdão deste TSI, no Processo 363/2009, em 19 de Maio de 2011, “A desrazoabilidade a que alude o artigo 21º, 1, d) do CPAC, aliás, adjectivada de total, deve ser entendida de forma a deixar um espaço livre à Administração, salvaguardados os limites próprios do poder discricionário, nomeadamente os limites internos decorrentes dos princípios da imparcialidade, igualdade, justiça, proporcionalidade ou outros vertidos no Código do Procedimento Administrativo, assim se pondo cobro a eventuais abusos.”
Também se referiu no Acórdão deste TSI, Processo 647/2010, que a expressão “total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários pode comportar-se o sentido de uma absurda e desmesurada aplicação do poder discricionário administrativo perante um determinado caso real e concreto. E a decisão desrazoável é aquela cujos efeitos se não acomodam ao dever de proteger o interesse público em causa, aquela que vai para além do que é sensato e lógico tendo em atenção o fim a prosseguir, um acto absurdo ou por vezes irracional”.
No que respeita à questão de violação do princípio da proporcionalidade, dispõe o artigo 5º, nº 2 do Código do Procedimento Administrativo que “as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar” – sublinhado nosso.
Segundo as palavras do Acórdão do Venerando TUI, no Processo 38/2012, “de acordo com este princípio, as limitações de direitos e interesses das pessoas devem revelar-se idóneas e necessárias para garantir os fins visados pelos actos dos poderes públicos”.
Sobre esta matéria, foi já objecto de abordagem pelo Venerando TUI, designadamente nos Acórdãos dos Processos nº 9/2000, 13/2012, 38/2012, transcrevendo-se, a seguir, parte de um desses arestos:
“Não se têm suscitado dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência, que os tribunais podem fiscalizar o respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade. A dúvida está em saber em que medida deverão os tribunais intervir nesta matéria.
David Duarte, referindo-se à proporcionalidade em sentido estrito, “que engloba a técnica do erro manifesto de apreciação, técnica jurisdicional francesa que compreende, em termos avaliativos, para além do erro na qualificação dos factos, a utilização de um critério decisório proporcional que se revela numa decisão desequilibrada entre o contexto e a finalidade. O erro manifesto de apreciação, na vertente de controlo da adequação da decisão aos factos…é, como meio de controlo do conteúdo da decisão, uma dos degraus mais elevados da intervenção do juiz na discricionariedade administrativa. E, por isso, só é utilizável na medida da evidência comum da desproporção”.
Nas mesmas águas navega Maria da Glória F. P. Dias Garcia, defendendo que “em face da fluidez dos princípios (da proporcionalidade, da igualdade, da justiça), só são justiciáveis as decisões que, de um modo intolerável, os violem.”
No caso vertente, está fortemente indiciada a prática pelo recorrente de um crime de ofensa simples à integridade física.
Pese embora a interdição de entrada do recorrente na RAEM lhe possa vir causar efeitos negativos, mas não é menos verdade que a entidade recorrida pretende, com a prática do acto recorrido, prosseguir um interesse público, a saber, de manutenção da boa ordem, segurança e estabilidade social, sendo assim, não podemos concluir que o sacrifício a ele imposto (interdito de entrar por um período de 3 anos) seja manifestamente desproporcionado ao interesse que se pretendia atingir com a prática do acto recorrido.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso contencioso.
Registe e notifique.
Custas pelo recorrente, com 6 U.C. de taxa de justiça.
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Macau, 16 de Janeiro de 2014
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Tong Hio Fong Vitor Manuel Carvalho Coelho
(Relator) (Estive presente)
(Magistrado do M.oP.o)
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Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)
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