Processo nº 275/2013 Data: 12.09.2013
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “coacção sexual”.
Contradição insanável da fundamentação.
Livre apreciação da prova.
Queixa.
Renúncia.
SUMÁRIO
1. Ocorre “contradição insanável da fundamentação” quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
2. O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Há muito que está ultrapassada a regra da “unus testis, testis nullus”, nada impedindo que o Tribunal forme a sua convicção com o depoimento de uma só testemunha.
3. Em sede de recurso não se pode ter em consideração factos (novos) pelo recorrente (apenas) alegados em sede da sua motivação – uma alegada “renúncia da queixa” por parte da ofendida – e que não estejam provados.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 275/2013
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do Colectivo do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguido, com os sinais dos autos, como autor de 1 crime de “coacção sexual”, p. e p. pelo art. 158° do C.P.M., na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, na condição de, no prazo de 6 meses, efectuar o pagamento de MOP$30.000,00 a título de indemnização à ofendida dos autos; (cfr., fls. 152 a 157-v).
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Inconformado, o arguido recorreu.
Em síntese, (e nesta ordem), assaca ao Acórdão recorrido o vício de “contradição insanável da fundamentação”, afirmando também que a ofendida renunciou ao exercício do seu direito de queixa; (cfr., fls. 164 a 168).
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Respondendo, diz o Exmo. Magistrado do Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 172 a 174-V).
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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista, emitiu a Ilustre Procuradora Adjunta o seguinte douto Parecer:
“A, ora arguido dos presentes autos, foi condenado, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de coacção sexual p.° p.° pelo art.° 158 do C.P.M., na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, com suspensão por 3 anos sob condição de pagamento de indemnização à ofendida dentro de seis meses a contar da data de trânsito em julgado da sentença em causa.
Inconformado com a decisão, vem recorrer para o Tribunal de Segunda Instância, invocando vícios do art.°s 400 n.° 2 al. b) do C.P.P.M., bem como a violação do princípio in dúbio pro reo e do disposto do art.° 108 n.° 1 do C.P.M ..
Analisados os autos, entendemos que não se pode reconhecer razão ao recorrente, pois não se vislumbra que o douto Acórdão ora recorrido tenha violado as regras e as normas legais acima mencionadas.
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Dúvidas não temos quanto à interpretação do disposto no art.° 400 n.° 2 al. b) do C.P.P.M., pois que já foi esclarecido repetidamente nas inúmeras e ilustres decisões proferidas do T.S.I. bem como nas doutrinas dos entendidos, permitindo-nos assim a tal respeito, citar a ideia brilhante mais recente no douto acórdão do Proc. n.° 255/2013, de 30/05/2013 do T.S.I. :
"O vício de contradição insanável da fundamentação apenas ocorre quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão."
Concordamos também que, em harmonia com a douta decisão do Processo n.° 677/2012, de 6/9/2012, do T.S.I., é adquirida a convicção sobre os factos objecto do processo pelos julgadores, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova, com conjugação com as regras da experiência, nos termos do art.° 114 do C.P.P.M., independendo da quantidade de prova produzida durante o julgamento.
In casu, o Tribunal a quo evidenciou detalhadamente todos os elementos legalmente previstos pelo art.° 355 do C.P.P.M., nomeadamente toda a matéria referenciada ao objecto do processo, elencando a que resultou "provada", indicando a que resultou "não provada", e, fundamentando adequada e claramente a sua análise analógica, através das provas e dos depoimentos produzidos durante a audiência de julgamento, à luz do princípio da experiência.
Concordamos inteiramente com a digna resposta do M.P. à motivação de recurso, de que não há conflito entre factos provados que a recorrente imputou, pois se verifica a possibilidade analógica do acto de despir as calças da ofendida com as mãos pelo recorrente no momento em que o mesmo apertava o corpo do ofendido com as suas mãos.
Não se vislumbrando nenhuma incompatibilidade entre os factos provados, nem entre estes e os não provados ou a fundamentação probatória e a decisão.
Note-se que, na apreciação da prova, nunca pode o arguido atacar a livre convicção formada, dentro dos limites impostos no art.° 114 do C.P.P.M., pelo tribunal a quo aquando do julgamento de factos.
Por tanto, não vemos que o Acórdão recorrido padeça de qualquer vício, como pretende imputar-lhe o recorrente, uma vez que o Tribunal a quo já se pronunciou sobre toda a matéria objecto do processo com base na qual foram apreciados e reconhecidos os factos provados e não provados, não havendo contradição entre uns e outros, nem entre estes e a fundamentação ou a decisão.
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Vale pena ilustrar no seguinte a figura correcta do princípio in dúbio pro reo, instruído pelo douto acórdão proferido mais recentes pelo T.S.I. no Proc. n.° 54/2013,. de 07/02/2013, por ser também questão imputada pelo recorrente ao Tribunal a quo:
"Pois bem, tem este T.S.I. entendido que "o princípio "in dúbio pro reo" identifica-se com o da "presunção da inocência do arguido" e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um "non liquet".
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio "in dúbio pro teo", decidir pela sua absolvição"; (cfr., v.g. Ac. de 13.12.2012, Proc. n. ° 926/2012). "
In casu, não se verificando que tenha o Tribunal a quo ficado com dúvidas sobre a matéria de facto, e que, mesmo assim, tenha decidido contra o recorrente, não há violação do princípio in dúbio pro reo, aliás, constatamos que o recorrente não está a querer imputar a violação do aludido princípio, mas sim discordar da aceitação, pelo Tribunal recorrido, da declaração da ofendido como prova principal que sustenta a sua decisão condenatória.
Concluindo que não incorreu em violação do princípio in dúbio pro reo por carecer de situação equívoca que traga favorecimento ao recorrente.
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Em relação à violação do art.° 108 do C.P.M., imputada pelo recorrente, do douto acórdão recorrido, permitimo-nos transcrever o respeitoso entendimento dos Dr.s M. Leal-Henriques e Simas Santos no Anotado do Código Penal de Macau (Macau¬1997), fls. 268 :
" ... considerava como perdão tácito quàlquer acto amistoso, como, por exemplo, comerem e beberem juntos o ofensor e o ofendido ... jogarem juntos, o ofendido apertar familiarmente a mão do ofensor, saudá-lo, conversar com ele, tudo é sinal de que se esqueceu e perdoa a ofensa. A renúncia da queixa está subentendida em tais hipóteses ... «A matéria, entretanto, requerer cauteloso exame, na prática. É que os econtros meramente casuais, motivados por circunstâncias fortuitas, a companhia não provocada ou não estimada, mas tolerada por deveres de educação social, não caracterizam uma renúncia. Aquele aperto de mão, o leve inclinar de cabeça, em cumprimento, dentro de um salão de sociedade, a participação na conversação geral, serão, conforme situações ou ocasiões, actos de pura civilidade, em que não haveria surpreender atitudes ou desígnios que comprometem o exercício do direito de queixa»(A. CARVALHO FILHO, op. cit., pág. 52)."
Também, entendeu o Tribunal de Segunda Instância no Proc. n.° 53/2007, de 03/12/2009 que apesar da demonstração eventual, quer verbal quer escrita, junto da polícia, da desistência de procedimento criminal do ofendido, deve ser dado como vontade final de ofendido o auto de declaração, da insistência de queixa, legalmente assinada pelo ofendido próprio, uma vez que o arguido não conseguiu mostrar prqva concreta relativa à renúncia de queixa do ofendido.
No caso sub judice, mesmo que a ofendida confirme que tinha dito, no telefone, ao recorrente que iria participar à polícia caso o mesmo aconteça novamente no futuro, verifica-se sempre a sua vontade de desejo de procedimento criminal contra o recorrente, quer na Polícia Judiciária (fls. 8), quer ambos no M.P. e no Tribunal (fls. 36v. e 151).
Por não existir nenhuma hipótese do entendimento da existência da renúncia de queixa da ofendida, não há lugar à violação do art.° 108 n.° 1 do C.P.M ..
Pelo exposto, é de concluir rejeitar o recurso do arguido A, pela improcedência manifestada”; (cfr., fls. 180 a 182).
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Cumpre apreciar e decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido, a fls. 153-v a 155, que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o arguido recorrer do Acórdão do T.J.B. com o qual foi condenado como autor de 1 crime de “coacção sexual”, p. e p. pelo art. 158° do C.P.M., na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, na condição de, no prazo de 6 meses, efectuar o pagamento de MOP$30.000,00 a título de indemnização à ofendida dos autos.
E, como se disse, coloca duas questões: “contradição insanável da fundamentação” e “renúncia da queixa da ofendida”.
–– Comecemos pela alegada “contradição”.
Como sabido é, o vício em questão ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão; (cfr., v.g. no Acórdão deste T.S.I. de 13.12.2012, Proc. n° 840/2012).
E, em nossa opinião, é evidente que não existe nenhuma “contradição”.
Vejamos.
Está, essencialmente, provado que:
- no dia 04.08.2006, o arguido dirigiu-se ao “estabelecimento de beleza” da arguida, (onde já tinha antes ido), e alegando que tinha um dedo da sua mão magoado, pediu à ofendida para lhe fazer uma passagem, o que a ofendida recusou;
- perante a insistência do arguido, como este já tinha comparecido antes, e para evitar outros inconvenientes, a ofendida acedeu a fazer a solicitada massagem;
- após tal, e quando a ofendida se preparava para abrir a porta do estabelecimento, o arguido coloca-se à frente da ofendida, abraçando-a com ambas as mãos e, à força, levantou a blusa e roupa interior superior da ofendida, empurrando-a para a cama de massagens, onde a beijou e apalpou o peito;
- a ofendida tentou defender-se, tentando empurrar o arguido, mas como estava abraçada pelo arguido, não o conseguiu afastar, tendo pedido ao arguido para a largar, dizendo que ia gritar por socorro;
- o arguido não ligou, e abriu o fecho das calças da ofendida;
- quando a ofendida estava prestes a gritar, um terceiro chamou pelo arguido do lado de fora da porta do estabelecimento, o que fez o arguido parar e sair do mesmo.
Fundamentando o vício que imputa à decisão recorrida, diz o ora recorrente que a assacada “contradição” existe dado que se se deu como provado que o arguido “abraçou a ofendida com as (duas) mãos”, (de forma a que ela não o conseguiu afastar), como poderia o mesmo praticar outros actos, como puxar a roupa, apalpar e abrir o fecho das calças da ofendida.
Pois bem, é – cremos nós – sabido que o ser humano, (pelo menos, por ora), não consegue estar fisicamente em dois locais distintos ao mesmo tempo, pois que não tem o dom da ubiquidade.
Porém, cremos também ser claro que o que a matéria de facto dada como provada relata é uma “sequência de factos”, que ainda que pouco espaçados no tempo, como é óbvio, não ocorreram (exactamente) “ao mesmo tempo”.
Desnecessárias sendo outras considerações, porque ociosas, continuemos.
Ainda, no que toca à decisão da matéria de facto, e ainda que não apelidando, expressamente, de “erro notório na apreciação da prova”, põe o recorrente em causa a dita decisão, alegando que negou os factos, que ninguém presenciou o sucedido, nomeadamente os agentes que encetaram diligências de investigação e que prestaram depoimento e que a própria ofendida não apresentou queixa de imediato.
Como (também aqui) é evidente, não se pode olvidar, (e parece que o faz o arguido), que a ofendida prestou declarações em audiência de julgamento, e que de acordo com o “princípio de livre apreciação da prova” consagrado no art. 114° do C.P.P.M., nada impede o Tribunal de atribuir credibilidade ao seu depoimento, formando a sua convicção com base no mesmo.
Doutra forma, nunca poderia haver decisão condenatória quando o arguido negasse os factos e as testemunhas não eram presenciais, de nada valendo ao ofendido queixar-se e prestar declarações em audiência de julgamento.
Com efeito, importa ter presente que o “princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer”; (cfr., v.g., o Ac. de 18.07.2013, Proc. n.° 288/2013).
Aliás, há muito que está ultrapassada a regra da “unus testis, testis nullus”, pois que nada impede que o Tribunal forme a sua convicção com o depoimento de uma só testemunha.
–– Por fim, e quanto à “queixa”, diz o arguido que, após o sucedido, telefonou à ofendida e que esta lhe disse: “para a próxima (vez), apresentaria queixa”.
Daí, conclui o arguido que a ofendida “renunciou” ao seu direito de apresentar queixa.
Pois bem, visto está também aqui que, independentemente do demais, evidente é a improcedência do presente recurso.
Com efeito, o ora recorrente para além de se limitar a “controverter” a matéria de facto, encontrando nela “contradições” e “erros” que qualquer homem médio e com mediana capacidade de entender não os vislumbra, invoca também, (para não se dizer outra coisa), “factos não dados como provados”, que, como é óbvio, não podem ser tidos em conta nas circunstâncias dos presentes autos.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art. 409°, n.° 2, al. a) e 410, n.° 1 do C.P.P.M.).
Pagará o recorrente 6 UCs de taxa de justiça, e como sanção pela rejeição do seu recurso, o equivalente a 4 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 4 do C.P.P.M.).
Honorários ao Exm° Defensor no montante de MOP$3.500,00.
Macau, aos 12 de Setembro de 2013
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 275/2013 Pág. 16
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