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Processo n.º 338/2013 Data do acórdão: 2013-10-10 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– acidente de viação
– pedido cível de indemnização
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– art.º 400.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal
– reenvio parcial do processo para novo julgamento
S U M Á R I O

Como perante a forma como foi escrita a fundamentação fáctica do acórdão recorrido, a gente fica sem saber se é verídica uma determinada matéria fáctica alegada pelos sujeitos processuais em causa nos respectivos articulados então apresentados para efeitos de instauração e contradição do pedido cível de indemnização enxertado nos subjacentes autos penais, há que reenviar o objecto probando civil do processo, na parte afectada, para novo julgamento, por constatado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos conjugados dos art.os 400.º, n.º 2, alínea a), e 418.º, n.os 1 e 3, do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 338/2013
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
Companhia de Seguros Ásia, Limitada (亞洲保險有限公司)
A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 332 a 339v dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-12-0114-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram absolvidos, por força do princípio de in dubio pro reo, a condutora B (como 1.a arguida) e o instrutor de condução desta C (como 2.o arguido) da acusada prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de ofensa grave à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.o 142.o, n.o 3, do Código Penal (CP), e condenada a civilmente demandada Companhia de Seguros Ásia, Limitada (亞洲保險有限公司) (como seguradora do veículo automóvel ligeiro com número de chapa de matrícula MN-25-XX conduzido pela 1.a arguida sob orientação do 2.o arguido) a pagar ao peão ofendido demandante A um total de MOP$342859,16 (trezentas e quarenta e duas mil, oitocentas e cinquenta e nove patacas e dezasseis avos) para indemnização de 50% de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por este, com juros legais a contar da data desse acórdão até integral pagamento, em virtude de os dois arguidos, também civilmente demandados, deverem, no entender do Tribunal Colectivo autor desse acórdão, assumir solidariamente 50% da responsabilidade civil pelo risco.
Inconformada, veio recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) a demandada seguradora através da motivação apresentada a fls. 349 a 362 dos presentes autos correspondentes, nela assacando ao Tribunal recorrido, material e concretamente, o vício de erro notório na apreciação da prova na parte em que se tinha julgado que o ofendido não tinha violado o dever de atravessar a rua com prudência, consideração essa que, na opinião dessa recorrente, era contrária ao devidamente inferido de uma análise objectiva e realista dos factos dados como provados e de todo o circunstancialismo que tinha envolvido o acidente de viação em causa, porquanto tudo demonstrava que o acidente de viação tinha ocorrido em virtude da conduta precipitada e imprudente do peão (ofendido), por este ter resolvido naquele dia galgar a vedação de metal e iniciar, abruptamente, a travessia daquela estrada, sem ter tomado qualquer precaução, tendo, pois, o peão evidente culpa exclusiva na ocorrência do acidente, daí a impossibilidade de aplicação, ao caso dos autos, do instituto da responsabilidade pelo risco do art.o 496.o do Código Civil (CC), instituto esse que, aliás, foi erradamente aplicado, a nível jurídico falando, pelo Tribunal recorrido (posto que a responsabilidade pelo risco só existiria pelo risco da circulação do veículo e não pela conduta de quem quer fosse), rogando a recorrente, consequentemente, que fosse invalidada a decisão cível tomada naquele acórdão.
Notificado da interposição desse recurso, veio recorrer subordinadamente o peão demandante A mediante a motivação constante de fls. 366 a 371, para pedir:
— a correcção do lapso manifesto de cálculo aritmético da quantia indemnizatória das suas percas salariais por causa do acidente nos já comprovados 84 dias entre o período de 6 de Outubro e 31 de Dezembro de 2008, de (erroneamente) MOP$32400 para (correctamente) MOP$37800;
— a devida consideração da sua taxa total de 50% de invalidez (e não da sua taxa parcelar de 20% de invalidez como foi decidida pelo Tribunal recorrido) no cálculo da quantia indemnizatória das suas percas salariais no subsequente já comprovado período de 366 dias para convalescença (havendo, pois, no entender do recorrente, erro notório, cometido pelo Tribunal recorrido, na apreciação da prova no tocante à indagação da taxa total de 50% de invalidez dele);
— e o aumento da quantia indemnizatória dos danos não patrimoniais para um montante não inferior a MOP$700000.
Subidos os autos, afirmou, em sede de vista, a Digna Procuradora-Adjunta (a fl. 391) que não tinha legitimidade para emitir parecer, por os recursos estarem circunscritos à matéria meramente civil.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos e realizada a audiência neste TSI, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à solução do recurso:
A. Por acusação pública de fls. 151v a 153, foi imputada à condutora B (como 1.a arguida) do veículo autómovel ligeiro n.o MN-25-XX para instrução de condução, e ao instrutor de condução daquela chamado C (como 2.o arguido), a prática, em 5 de Outubro de 2008, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de ofensa grave à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.o 142.o, n.o 3, do CP, por seguinte matéria acusada (originalmente escrita em chinês e aqui traduzida literalmente para português pelo ora relator, com supressão, sob a forma de "[...]", de algum conteúdo não relevante para a decisão dos presentes autos recursórios):
— <<[…]
  (1.o)
  Em 5 de Outubro de 2008, cerca das 08:20 horas da manhã, a aprendiz de condução de veículo B (1.a arguida), sob orientação do instrutor de condução C (2.o arguido), conduziu o veículo automóvel ligeiro n.o MN-25-XX, seguindo a Estrada Governador Nobre de Carvalho da Taipa em direcção à Estrada do Istmo.
  2.o
  Ao chegar ao troço da estrada perto do Edifício "One Grandtai" (大潭山一號), o pára-choques da parte dianteira esquerda do veículo MN-25-XX embateu no peão A (ofendido) que na altura se encontrava a atravessar aquela estrada da esquerda para a direita, o que fez com que o ofendido tenha sido lançado para o ar e tenha caído depois para o chão, tendo o corpo do ofendido, no decurso disso, embatido no, e destruído, o retrovisor dianteiro esquerdo daquele veículo.
  3.o
  O embate causou directa e necessariamente ao ofendido fracturas ósseas […], o ofendido precisou de ter várias operações cirúrgicas e receber tratamentos de longo período de tempo, o que levou a que ele perdeu, por tempo prolongado, a capacidade para trabalhar e gerir a sua própria pessoa, estando as lesões em causa detalhadamente constantes do parecer médico-legal de fl. 91 dos autos (cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido).
  4.o
  Na altura do acidente, estava a chover, o pavimento estava molhado e escorregadio, e a intensidade do tráfego era normal.
  5.o
  O veículo acima referido era destinado à instrução de condução, com dois volantes e dois travões, sendo o volante e o travão à direita controlados pela 1.a arguida, e o volante e o travão à esquerda controlados pelo 2.o arguido.
  6.o
  O acidente de viação desta vez foi causado por a 1.a arguida não ter regulado bem a velocidade com que conduzia em função das características e da situação da estrada, e das condições climatéricas e do tráfego, tendo, portanto, feito com que o veículo por si conduzido, ao encontrar obstáculo que poderia existir possivelmente à frente em situação normal, não tenha conseguido parado por travão a tempo, tendo assim provocado o embate do veículo no ofendido.
  7.o
  No decurso da condução da 1.a arguida, o 2.o arguido, sendo instrutor e ciente do seu dever de assegurar a não violação do dever de condução prudente pelo instruendo, e de intervir a tempo antes de surgir situação de perigo ou perigo previsível, nomeadamente através do controlo do seu volante para afastar o perigo ou da aplicação a tempo e urgente do travão, causou, porém, o acidente de viação desta vez devido à sua negligência.
  8.o
  Os dois arguidos praticaram os actos acima referidos de forma consciente, sabendo que a conduta deles era violadora da lei e susceptível de punição legal.>>
B. Ulteriormente, foi enxertado o pedido cível de indemnização pelo peão lesado A a fls. 215 a 224, nele repetindo materialmente – sobretudo nos art.os 3.º, 8.º a 10.º e 33.º a 35.º desse petitório – em tudo que tivesse a ver com a descrição da ocorrência do acidente de viação, a matéria de facto já vertida na acusação pública, apesar de ter alegado, principalmente no art.o 5.o do mesmo petitório (e depois também nos subsequentes art.os 11.o e 24.o aquando da alegação de danos patrimoniais e não patrimoniais), que o acidente de viação lhe tinha causado uma taxa total de 50% de invalidez, resultante da soma da taxa de 20% de invalidez referida no art.o 49.o b) do Capítulo XV da Tabela de incapacidades por acidentes de trabalho em Macau, com a taxa de 30% de invalidez referida no art.o 53.o b) do Capítulo XVI da mesma Tabela.
C. Em contestação civil subsequentemente apresentada a fls. 263 a 267, começou por afirmar a demandada Companhia de Seguros Ásia, Limitada (亞洲保險有限公司) que não aceitava a descrição do acidente efectuada pelo requerente do pedido cível, por a mesma não corresponder ao modo como, efectivamente, tinha ocorrido o acidente, e alegou depois, expressamente, que "ao chegar perto do edif. "One Grantai", o requerente decidiu subitamente, provavelmente porque estava a chover, atravessar a correr a estrada da esquerda para a direita", que "Fê-lo atravessando as grades de metal existentes no local que proibem, exactamente, a passagem de peões para a estrada", que "... atravessou com tão grande falta de atenção que foi embater no espelho retrovisor lateral esquerdo do veículo automóvel" e que "... foi ... o peão que embateu no veículo" (cfr. os art.os 6.o, 7.o, 8.º e 10.o dessa contestação, respectivamente, e também semelhantemente, os art.os 4.º a 7.º e 12.º das contestações dos dois arguidos a fls. 294 e 296 dos autos), para sustentar que o embate tinha ocorrido por total responsabilidade do ofendido.
D. Por acordão de fls. 332 a 339v ora recorrido, originalmente lavrado em chinês, o Tribunal Colectivo julgou a matéria de facto de modo seguinte (e com tradução literal para português aqui feita pelo ora relator, com supressão, sob a forma de "[...]", de algum conteúdo não relevante para a decisão dos presentes autos recursórios):
— <<[...]
  II. Factos
  Os seguintes factos da acusação ficaram provados:
  Em 5 de Outubro de 2008, cerca das 08:20 horas da manhã, a aprendiz de condução de veículo B (1.a arguida), sob orientação do instrutor de condução C (2.o arguido), conduziu o veículo automóvel ligeiro n.o MN-25-XX, seguindo a Estrada Governador Nobre de Carvalho da Taipa em direcção à Estrada do Istmo.
  Ao chegar ao troço da estrada perto do Edifício "One Grandtai", o espelho retrovisor dianteiro esquerdo do veículo MN-25-XX embateu no peão A (ofendido) que na altura se encontrava a atravessar aquela estrada da esquerda para a direita, o que causou a queda do ofendido para o chão, o qual ficou ferido.
  O embate causou directa e necessariamente ao ofendido fracturas ósseas […], o ofendido precisou de ter várias operações cirúrgicas e receber tratamentos de longo período de tempo, o que levou a que ele perdeu, por tempo prolongado, a capacidade para trabalhar e gerir a sua própria pessoa, estando as lesões em causa detalhadamente constantes do parecer médico-legal de fl. 91 dos autos (cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido).
  Na altura do acidente, estava a chover, o pavimento estava molhado e escorregadio, e a intensidade do tráfego era normal.
  O veículo acima referido era destinado à instrução de condução, com dois volantes e dois travões, sendo o volante e o travão à direita controlados pela 1.a arguida, e o volante e o travão à esquerda controlados pelo 2.o arguido.
  *
  Os seguintes factos do pedido cível de indemnização e das contestações ficaram provados:
  Desde a ocorrência do acidente de viação (em 5 de Outubro de 2008), o ofendido precisou de descansar no hospital e em casa por causa do acidente de viação.
  As lesões sofridas no acidente de viação levaram a que ofendido necessitou de 450 dias para convalescença, e geraram-lhe 20% de taxa de invalidez, conforme o art.o 49.o b) do Capítulo XV da Tabela de […].
  Antes da ocorrência do acidente, o ofendido trabalhava na Companhia de […], com MOP$450 de salário por dia.
  O ofendido (com 55 anos de idade em 5 de Outubro de 2008) podia trabalhar até 60 anos.
  De 6 de Outubro a 31 de Dezembro de 2008, num total de 84 dias, o ofendido teve, ao total, MOP$32400 de percas salariais.
  Ao ofendido foi autorizado permanecer em Macau para trabalhar até 31 de Dezembro de 2008.
  Desde 1 de Janeiro de 2009, o ofendido precisou ainda de 366 dias (450 dias menos 84 dias) para convalescença, sem possibilidade para trabalhar.
  Desde o termo do acima referido período de convalescença até 14 de Janeiro de 2013 (com perfeição dos 60 anos de idade do ofendido), o ofendido pôde ainda trabalhar por um total de 3 anos e 15 dias, período em que perdeu um total de 20% do rendimento do trabalho.
  Segundo as oportunidades de emprego do ofendido no Interior da China e em Macau e o nível de rendimento de trabalho em Macau, fixa-se o nível salarial do ofendido dentro desse período em MOP$150.
  Nesse referido período de tempo, as percas salariais do ofendido foram de MOP$54900 ($150/dia x 366 dias) e de MOP$33300 (MOP$150 x (365 dias x 3 anos + 15 dias) x 20%), ou seja, de MOP$88200.
  O ofendido, no período de 6 de Outubro de 2008 a 14 de Janeiro de 2013, teve MOP$120600 de percas salariais.
  No período do acidente, o ofendido estava tratado no Hospital Kiang Wu, com MOP$46922 de despesas de tratamento médico.
  Depois de regressado ao Interior da China, o ofendido, por causa do acidente de viação, precisou ainda de receber tratamento, e gastou RMB$14327,81 em consultas médicas externas, equivalentes a MOP$18196,31 à taxa de conversão cambial de 1,27.
  O acidente de viação referido causou ao corpo do ofendido grave lesão.
  O referido acidente afectou o hábito do ofendido na vida quotidiana e fez perder parte da sua capacidade para trabalho, por exemplo: […].
  Quando anda, tem frequentes dores […].
  A lesão do ofendido levou a que ele precisou de receber tratamento fisicoterapêutico, e vai determinar-lhe doença de tempo prolongado com sequelas […]. Às vezes, ao ofendido, por causa das dores da lesão, é difícil adormecer, com insónia.
  O ofendido, durante o período de tratamento, devido à gravidade das lesões, sofre dores a nível psicológico […].
  Mediante a apólice de seguro n.o 00071488, […] o montante máximo de indemnização por cada acidente de viação é de um milhão de patacas.
  *
  Mais se provou o seguinte:
  De acordo com os certificados de registo criminal, os dois arguidos não têm antecedentes criminais.
  A 1.a arguida declarou trabalhar como emprega em casino, com MOP$24000 de rendimento mensal, com três filhas a cargo, e com o 3.o ano do curso secundário complementar como habilitações académicas.
  O 2.o arguido declarou trabalhar como instrutor de condução de veículos, com MOP$18000 de rendimento mensal, com um filho a cargo, e com o curso secundário completo com habilitações académicas.
  *
  Dentro de 50 metros do local do acidente de viação, inexiste passagem para peões.
  *
  Factos não provados:
  Os restantes factos relevantes constantes da acusação, das contestações penais, do pedido cível de indemnização e da contestação civil que sejam incompatíveis com os factos provados acima referidos, em especial:
  — O acidente de viação desta vez foi causado por a 1.a arguida não ter regulado bem a velocidade com que conduzia em função das características e da situação da estrada, e das condições climatéricas e do tráfego, tendo, portanto, feito com que o veículo por si conduzido, ao encontrar obstáculo que poderia existir possivelmente à frente em situação normal, não tenha conseguido parado por travão a tempo, tendo assim provocado o embate do veículo no ofendido.
  — No decurso da condução da 1.a arguida, o 2.o arguido, sendo instrutor e ciente do seu dever de assegurar a não violação do dever de condução prudente pelo instruendo, e de intervir a tempo antes de surgir situação de perigo ou perigo previsível, nomeadamente através do controlo do seu volante para afastar o perigo ou da aplicação a tempo e urgente do travão, causou, porém, o acidente de viação desta vez devido à sua negligência.
  — Os dois arguidos praticaram os actos acima referidos de forma consciente, sabendo que a conduta deles era violadora da lei e susceptível de punição legal.
  — O veículo da 1.a arguida e do 2.o arguido andava à velocidade de 10 a 15 quilómetros por hora, e andava e parava em função do fluxo de circulação de veículos.
  — O ofendido, ao atravessar a estrada, teve o seu corpo a embater no espelho retrovisor lateral esquerdo do veículo MN-25-XX conduzido pela 1.a arguida, e portanto caiu no chão por perda de equilíbrio.
  — As lesões provocadas pelo incidente ao ofendido tiveram por causa principal o acto imprudente do ofendido.
  — As lesões sofridas do acidente levaram a que o ofendido perdeu toda a capacidade para trabalho.
  — As despesas de deslocações […], de alojamento e de correio, tudo em RMB$908,80, equivalentes a MOP$1154,17 à taxa de conversão cambial de 1,27, e as despesas de táxi em Macau em MOP$318,50, portanto, ao total de MOP$1472,67, pagas pelo ofendido, são danos provocados directa e necessariamente pelo acidente de viação.
  — As despesas de tratamento de documentos, de transporte e de correio em MOP$373,38 e MOP$88,90, ao total de MOP$462,28, são danos provocados directa e necessariamente pelo acidente de viação.>>
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A demandada seguradora ora recorrente imputou primeiro ao Tribunal a quo o erro notório na apreciação da prova referente à conduta do peão ofendido no atravessamento da estrada em causa.
Para este Tribunal ad quem, e depois de analisado o teor da fundamentação fáctica do acórdão recorrido em confronto com o tema probando composto pela matéria fáctica acusada pelo Ministério Público aos dois arguidos, pela matéria fáctica alegada no pedido civil de indemnização enxertado pelo peão ofendido, pela matéria fáctica alegada nas contestações dos dois arguidos e pela matéria fáctica alegada pela própria seguradora recorrente na sua contestação cível (cfr. todos esses elementos em causa já acima descritos na parte II do presente acórdão de recurso), é de observar que tal objecção da seguradora recorrente tem de ser resolvida em sede da alínea a) do n.º 2 do art.º 400.º do Código de Processo Penal (CPP), e não propriamente na alínea c) desse n.º 2, porquanto o Tribunal Colectivo recorrido nem chegou a responder concretamente se é verdadeira, ou não, a matéria fáctica então alegada sobretudo nos art.os 6.º e 7.º da contestação civil da seguradora, com relevância também para a decisão do pleito civil em causa.
Isto porque, para já, no conjunto de factos especificados pelo Tribunal recorrido concretamente como não provados, não há nenhuma referência a tal versão fáctica invocada segundo a qual, e na sua essência, o peão demandante decidiu subitamente a atravessar a correr a estrada da esquerda para a direita, e o fez atravessando as grades de metal existentes no local separadoras da faixa de rodagem do passeio para peões, e, por outro lado, não sendo essa versão fáctica logicamente incompatível com todos os factos já descritos como provados no mesmo texto judicial decisório, não se pode considerar que a veracidade dessa mesma versão já se encontre abrangida pela seguinte expressão genérica usada pelo Tribunal Colectivo a quo na anunciação de factos não provados: "Os restantes factos relevantes constantes da acusação, das contestações penais, do pedido cível de indemnização e da contestação civil que sejam incompatíveis com os factos provados acima referidos".
Quer dizer, perante a forma como está redigida a fundamentação fáctica do acórdão recorrido, com a agravante de que o 6.º pagrágrafo de factos especificados no acórdão recorrido como concretamente não provados (cfr. a redacção do 2.º parágrafo da página 9 do texto desse acórdão a fl. 336), quando desacompanhado de outros factos concretizadores, não passa de ser uma mera conclusão, e, por isso, não pode ter relevância nenhuma em sede da matéria de facto propriamente dita (neste sentido, cfr. o acórdão deste TSI, de 15 de Dezembro de 2011, no Processo n.º 315/2011), a gente fica sem saber se é verídico, ou não, que o demandante tenha decidido subitamente em atravessar aquela estrada e o tenha feito atravessando as grades de metal existentes no local separadoras da faixa de rodagem do passeio para peões, versão fáctica cuja indagação se mostra também muito relevante para se decidir da esgrimida culpa do demandante pela produção do acidente de viação dos autos.
Termos em que se verifica o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP, no referente à indagação da aludida versão fáctica.
E apesar de se dever considerar que já transitou em julgado a decisão absolutória penal (por falta da sua impugnação a tempo por quem com legitimidade para o efeito), é mister reenviar, nos termos ditados no art.º 418.º, n.os 1 e 3, do CPP, o objecto probando materialmente civil do processo na parte referente à matéria fáctica contida nos art.os 3.º, 8.º a 10.º e 33.º a 35.º do pedido cível, e também contida nos art.os 6.º a 8.º e 10.º da contestação da seguradora e nos art.os 4.º a 7.º e 12.º das contestações dos arguidos (para evitar qualquer eventual contradição entre os factos provados e não provados).
Com isso, já fica prejudicado o conhecimento do restante alegado pela seguradora na motivação do seu recurso.
E agora do recurso do demandante:
Começou este por apontar o vício de erro notório na apreciação da prova na parte respeitante à investigação da taxa total de 50% de invalidez.
Para este Tribunal ad quem, e após analisado o teor da fundamentação fáctica do acórdão recorrido em confronto com o tema probando civil composto pela matéria fáctica alegada no pedido cível e nas contestações dos dois arguidos e da seguradora (cfr. todos esses elementos em causa já acima descritos na parte II do presente acórdão de recurso), é de concluir, igualmente, que tal objecção do demandante recorrente tem de ser resolvida em sede da alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, e não propriamente na alínea c) desse n.o 2, posto que o Tribunal Colectivo recorrido nem tão-pouco chegou a responder concretamente se é verdadeira, ou não, a matéria fáctica então inclusivamente alegada nos art.os 5.o, 11.o e 24.o do pedido cível a propósito da taxa de 30% de invalidez referida no art.o 53.o b) do Capítulo XVI da Tabela de incapacidades por acidentes de trabalho, com relevância para se decidir cabalmente do pedido formulado nesse petitório designadamente a nível de percas salariais e danos não patrimoniais.
Efectivamente, para já, no conjunto de factos especificados pelo Tribunal recorrido como não provados, não se contém nenhuma referência a tal matéria fáctica alegada pelo demandante, e, por outro lado, não sendo essa versão fáctica dele logicamente incompatível com todos os factos já descritos como provados no acórdão recorrido, não se pode considerar que a veracidade dessa mesma versão já se encontre abrangida pela seguinte, aliás já acima referenciada, expressão genérica usada pelo Tribunal Colectivo a quo na anunciação de factos não provados: "Os restantes factos relevantes constantes da acusação, das contestações penais, do pedido cível de indemnização e da contestação civil que sejam incompatíveis com os factos provados acima referidos".
Mais uma vez, e em síntese: Dada a forma como foi escrita a fundamentação fáctica do acórdão recorrido, a gente fica realmente sem saber se é verídica ou não a alegada taxa de 30% de invalidez contemplada no art.o 53.o b) da dita Tabela, taxa de invalidez essa que nem é incompatível com a taxa de 20% de invalidez já tida por provada no acórdão recorrido e como tal referida no art.o 49.o b) da mesma Tabela.
É, pois, necessário reenviar o objecto civil do processo para novo julgamento (nos termos conjugados dos art.os 400.o, n.o 2, alínea a), e 418.o, n.os 1 e 3, do CPP), também no concernente à matéria fáctica alegada pelo demandante nos art.os 5.o, 11.o e 24.o do pedido cível a propósito da taxa de 30% de invalidez do art.o 53.o b) do Capítulo XVI da Tabela de incapacidades por acidentes de trabalho.
Do supra visto, decorre a desnecessidade de abordagem, por estar prejudicada, do remanescente pretendido pelo demandante na sua motivação de recurso, sendo, entretanto, de dar-lhe óbvia razão no tangente à almejada rectificação de um lapso manifesto de cálculo aritmético, contido na redacção do 5.o parágrafo de factos provados do pedido cível de indemnização e das contestações (na página 6 do texto do acórdão recorrido a fl. 334v dos autos), a respeito das suas percas salariais por causa do acidente nos já comprovados 84 dias entre o período de 6 de Outubro e 31 de Dezembro de 2008, no sentido de que onde se lê "MOP$32400", se deve ler correctamente como "MOP$37800".
Por fim, cabe fixar ainda (à luz mormente do art.o 40.o da Lei n.o 13/2012, de 10 de Setembro) os honorários do Ilustre Patrono do demandante, pelo trabalho prestado em prol da presente causa recursória.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em:
— corrigir um lapso manifesto de cálculo aritmético, contido no 5.o parágrafo de factos provados do pedido cível de indemnização e das contestações, na página 6 do acórdão recorrido, no sentido de que onde se lê "MOP$32400", se deve ler correctamente como "MOP$37800",
— reenviar o processo para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base apenas na parte referente à matéria fáctica contida nos art.os 3.o, 8.o a 10.o e 33.º a 35.º do pedido cível, nos art.os 6.º a 8.º e 10.o da contestação da seguradora, nos art.os 4.o a 7.º e 12.º das contestações dos arguidos, e nos art.os 5.o, 11.o e 24.o do pedido cível (a propósito da aí alegada taxa parcelar de 30% de invalidez), com vista à emissão de nova decisão sobre a causa civil.
Sem custas, fixando, porém, em MOP$6.000,00 os honorários a favor do Ilustre Patrono Oficioso do demandante, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 10 de Outubro de 2013.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_________________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)



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