Processo nº 458/2013 Data: 17.10.2013
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “burla (agravada)”.
Erro notório.
Pena.
Atenuação especial.
SUMÁRIO
1. É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
2. A atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa “se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 458/2013
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em audiência Colectiva no T.J.B. respondeu A, com os sinais dos autos, vindo a ser condenada como autora de 2 crimes de “burla”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. a) do C.P.M., na pena parcelar de 3 anos e 9 meses de prisão (cada), e, em cúmulo, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 1614 a 1624).
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Recorrendo do assim decidido, diz (em síntese) a arguida que o Acórdão do T.J.B. padece do vício de “erro notório na apreciação da prova” (ou “contradição insanável”) e “excesso de pena”; (cfr., fls. 1703 a 1715).
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Respondendo, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público pela integral confirmação do Acórdão recorrido; (cfr., fls. 1719 a 1724).
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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista, emitiu a Ilustre Procuradora Adjunta douto Parecer, pugnando pela rejeição do recurso; (cfr., fls. 1742 a 1743).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos seguintes:
“Em 2010, a 1ª arguida A pretendeu usar a sua identidade de residente de Macau e antiga sócia duma agência de emprego para alegar, fraudulentamente, às pessoas do interior da China que pretendessem vir trabalhar para Macau, que poderia procurar-lhes trabalho e obter para eles os títulos de identificação de trabalhador não residente.
No meio de 2010, a 1ª arguida, bem sabendo que não tinha capacidade de obter para terceiros títulos de identificação de trabalhador não residente, alegou ao 2º arguido B a falsa capacidade de recomendar indivíduos do interior da China para trabalhar, na qualidade de trabalhador não residente, nos estabelecimentos de Macau tais como Hotel Wynn e Hotel Crown, desde que cada requerente lhe pagasse RMB$1.500 a 2.500 como taxa de apresentação. Segundo a 1ª arguida, o prazo de pedido seria 3 meses, e o indeferimento do pedido resultaria em restituição da respectiva verba. Os indivíduos a que são concedidos títulos de identificação de trabalhador não residente têm que mais pagar, dentro de três meses, um valor equivalente a rendimentos de dois meses como a comissão.
A fim de obter a confiança do 2º arguido, a 1ª arguida mostrou-lhe uma cópia do registo comercial da “companhia de serviço de recurso humano XX (estrangeiro) (XX(海外)人力資源服務有限公司)” passado pela Conservatória do Registo Comercial e Bens Móveis. Segundo o registo comercial, a 1ª arguida é a sócia da companhia, na verdade, tal companhia deixou de exercer actividades tais como a importação de trabalhadores não residentes e a agência de empregos.
O 2º arguido acreditou na palavra da 1ª arguida, mas pretendia elevar a taxa de apresentação a fim de obter a diferença.
Depois, o 2º arguido começou a divulgar a informação no interior da China, recontando a palavra da 1ª arguida a muitos indivíduos que pretendiam vir trabalhar para Macau. No entanto, o 2º arguido elevou a taxa de apresentação de RMB$1.500 a 2.500 a RMB$3.000 a 6.000, a fim de obter a diferença.
O 2º arguido contou a palavra da 1ª arguida a muitos indivíduos, incluindo as ofendidas C e D, que a acreditaram e a comunicaram aos parentes e amigos que queriam vir trabalhar para Macau. Assim sendo, o 2º arguido angariou, por si ou através de apresentação de outrem, cerca de 300 indivíduos que queriam vir trabalhar para Macau, cobrando-lhes taxa de apresentação no valor cerca de RMB$1.200.000,00.
Os respectivos ofendidos incluem C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O e P, etc.
Tendo recebido o supracitado montante de cerca de RMB$1.200.000,00, o 2º arguido apropriou-se de cerca de RMB$400.000,00 e entregou à 1ª arguida o restante, no valor cerca de RMB$800.000,00.
Decorridos cerca de 3 meses, a 1ª arguida não obteve com sucesso qualquer título de identificação de trabalhador não residente. Perguntadas várias vezes pelo 2º arguido, a 1ª arguida entregou-lhe 3 cópias de falsificados recibos de requerimento de título (comprovados como falsificados pelo CPSP), obtendo a sua confiança com fim dilatório.
Mais decorridos 3 meses, a 1ª arguida ainda não obteve qualquer título de identificação de trabalhador não residente, altura em que os ofendidos descobriram que tinham sido enganados, pelo que chamaram a polícia.
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Além de ter alegado ao 2º arguido a falsa capacidade de obter para terceiros títulos de identificação de trabalhador não residente, a 1ª arguida mais alegou ao ofendido Q a falsa capacidade de recomendar pessoas do interior da China para trabalhar no estabelecimentos hoteleiros de Macau tais como Hotel Wynn e Hotel Crown, desde que cada requerente lhe pagasse RMB$1.500 a 2.500 como taxa de apresentação. Segundo a 1ª arguida, o prazo de pedido seria 3 meses, e o indeferimento do pedido resultaria em restituição da respectiva verba. Os indivíduos a que são concedidos títulos de identificação de trabalhador não residente têm que mais pagar, dentro de três meses, um valor equivalente a rendimentos de dois meses como a comissão, da qual o ofendido Q pode ter HKD$3.000 como a remuneração.
A fim de obter a confiança do ofendido Q, a 1ª arguida mostrou-lhe uma cópia do registo comercial da “companhia de serviço de recurso humano XX (estrangeiro) (XX(海外)人力資源服務有限公司)” passado pela Conservatória do Registo Comercial e Bens Móveis. Segundo o registo comercial, a 1ª arguida é a sócia da companhia, na verdade, tal companhia deixou de exercer actividades tais como a importação de trabalhadores não residentes e a agência de empregos.
O ofendido Q acreditou na palavra e começou a divulgar a informação no interior da China, recontando a palavra da 1ª arguida a muitos indivíduos que pretendiam vir trabalhar para Macau.
O ofendido Q contou a palavra da 1ª arguida a muitos indivíduos, incluindo as ofendidas R e S, que a acreditaram e a comunicaram aos parentes e amigos que queriam vir trabalhar para Macau. Assim sendo, o ofendido Q angariou, por si ou através de apresentação de outrem, cerca de 1200 indivíduos que queriam vir trabalhar para Macau, cobrando-lhes taxa de apresentação no valor cerca de RMB$1.924.500,00.
Os respectivos ofendidos incluem R, S, T, U, V, W, X, Y, Z, AA, AB, AC, etc.
Tendo recebido o supracitado montante de cerca de RMB$1.924.500,00, o 2º arguido entregou-o à 1ª arguida.
A 1ª arguida passou ao ofendido Q vários recibos, termos de acordo e de compromisso (vd. os recibos a fls. 181 a 206 e 261 a 264 dos autos). A fim de obter a confiança do mesmo, a 1ª arguida também lhe emitiu 3 cheques, dizendo que se não seriam concedidos os títulos de identificação de trabalhador não residente, poderia o mesmo visar os cheques para a restituição do dinheiro.
Em 17 de Janeiro de 2011, a 1ª arguida não obteve nenhum título de identificação de trabalhador não residente nem restituiu a quantia, pelo que o ofendido Q dirigiu-se ao banco para visar os três cheques, mas a conta bancária da 1ª arguida não tem balanço suficiente. Um dos cheques foi de número HA471317, no valor de HKD$417.700,00, e com data de provisão no dia 15 de Janeiro de 2011.
O ofendido Q suspeitou ter sido enganado, pelo que chamou a polícia.
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A 1ª arguida A usou a sua identidade de residente de Macau e antiga sócia duma agência de emprego para alegar falsamente às pessoas do interior da China que pretendessem vir trabalhar para Macau, que poderia procurar-lhes trabalho e obter para eles título de identificação de trabalhador não residente, obtendo a confiança dos ofendidos por meio de engano, com fim de obter dinheiro de valor consideravelmente elevado e benefício ilegítimo por meio fraudulento que causou danos patrimoniais aos ofendidos.
A 1ª arguida, bem sabendo que o balanço na sua conta bancária não foi suficiente, dolosamente emitiu a outrem cheques com valor mais que o balanço, com fim de obter confiança de terceiros, fazendo estes acreditar que a 1ª arguida tinha capacidade de apresentar as pessoas do interior da China para vir trabalhar para Macau e de obter para eles títulos de identificação de trabalhador não residente.
A 1ª arguida agiu de forma livre, voluntária, consciente e dolosa ao praticar a conduta ilícita, bem sabendo que esta é legalmente proibida e punida.
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Provaram-se na petição de indemnização civil os seguintes factos:
A arguida A passou ao requerente de indemnização civil dois cheques, designadamente:
- Cheque n.º HA 471317, no valor de HKD$471.700, sacado sobre a conta n.º 9008770142 do BNU aberta pela arguida A, com data de emissão no dia 15 de Janeiro de 2011;
- Cheque n.º HA 471322, no valor de HKD$273.600, sacado sobre a conta n.º 9008770142 do BNU aberta pela arguida A, com data de emissão no dia 31 de Maio de 2011.
O requerente de indemnização civil instaurou uma acção executiva n.º CV2-0041-CEO com os dois cheques supra referidas como títulos executivos.
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Também se provou:
Segundo o registo criminal, os dois arguidos são delinquentes primários.
São desconhecidas as situações sociais, familiares e económicas dos dois arguidos, tampouco o seu grau de educação.
O assistente Q, ou seja, requerente de indemnização civil, apresentou queixa criminal em 17 de Janeiro de 2011.
Em 16 de Junho de 2011, o mesmo instaurou a supracitada acção executiva n.º CV2-0041-CEO.
O MP deduziu a acusação 4 de Julho de 2011.
Do direito
3. Vem a arguida recorrer do Acórdão quer a condenou como autora de 2 crimes de “burla”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. a) do C.P.M., na pena parcelar de 3 anos e 9 meses de prisão cada, e em cúmulo, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, imputando ao mesmo o vício de “erro notório na apreciação da prova” ou “contradição insanável” e “excesso de pena”.
–– Comecemos assim pelo alegado “erro” (ou “contradição”).
Pois bem, “o erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 30.05.2013, Proc. n.° 293/2013 do ora relator).
No caso, e para justificar o “vício” que imputa à decisão da matéria de facto, diz a recorrente que o Colectivo a quo deu como “não provado” que “o 2º arguido dolosamente elevou a taxa de apresentação aos indivíduos que pretenderam vir trabalhar para Macau, com fim de apropriar-se da diferença e obter assim benefício pecuniário de valor consideravelmente elevado por meio fraudulento que causou danos patrimoniais aos ofendidos”; e que “o 2º arguido agiu de forma livre, voluntária, consciente e dolosa ao praticar a conduta ilícita, bem sabendo que esta é legalmente proibida e punida”, e que esta matéria está em “oposição com a que resultou provada”.
Eis o que se nos oferece dizer.
Desde já, que tal “matéria de facto não provada” apenas diz respeito ao 2° arguido B, nenhuma relevância tendo em relação à responsabilidade da arguida.
E, assim sendo, como efectivamente parece ser, bem se vê que o alegado – e seja ele um “erro” ou “contradição” – mais não é do que uma “falsa questão”, sobre o qual mais não é preciso dizer.
Com efeito, a existir qualquer “incongruência”, a mesma apenas diz respeito à conduta do 2° arguido, certo sendo também que este foi absolvido não tendo havido recurso do assim decidido, pelo que há que dar como definitivamente arrumada a questão.
–– Passemos então para a questão da “pena”.
Diz a recorrente que devia merecer uma atenuação especial da pena e, em cúmulo, ser apenas condenada uma pena de prisão não superior a 3 anos, suspensa na sua execução.
Vejamos.
No que toca à atenuação especial da pena temos vindo a entender que “a atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa “se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 14.04.2011, Proc. n°130/2011 e de 11.07.2013, Proc. n° 357/2013).
In casu, apurado está que a arguida ora recorrente é primária, e que reembolsou H.K.D.$471.700,00 e H.K.D.$273.600,00.
Todavia, não se pode esquecer o número de pessoas prejudicadas com a conduta da arguida, e que com esta, arrecadou a mesma valores que ascendem MOP$3.000.000,00; (R.M.B.$800.000,00 + R.M.B.$1.924.500,00).
Nesta conformidade, e motivos não havendo para alterar o entendimento que temos vindo a adoptar em relação aos pressupostos da “atenuação especial da pena”, há que dizer que, também aqui, improcede o recurso.
Por fim, sendo os crimes pela recorrente cometidos punidos com a pena de 2 a 10 anos de prisão, (cfr., art. 411°, n.° 4, al. a) do C.P.M.), afigura-se-nos que censura também não merecem as penas parcelares de 3 anos e 9 meses de prisão para cada um dos dois crimes de “burla” pela dita recorrente cometidos, o mesmo sucedendo com a pena única de 4 anos e 6 meses de prisão resultantes do cúmulo jurídico efectuado, pois que se nos apresentam como justas e equilibradas e em total sintonia com os comandos ínsitos nos art°s 40°, 65° e 71° do C.P.M..
Dest’arte, e sendo-nos manifestamente improcedente o presente recurso, imperativa é a sua rejeição.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art. 409°, n.° 2, al. a) e 410, n.° 1 do C.P.P.M.).
Pagará o recorrente 6 UCs de taxa de justiça, e como sanção pela rejeição do seu recurso, o equivalente a 4 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 4 do C.P.P.M.).
Honorários ao Exmo. Defensor Oficioso no montante de MOP$2.500,00.
Macau, aos 17 de Outubro de 2013
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 458/2013 Pág. 18
Proc. 458/2013 Pág. 1