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Processo n.º 210/2013
(Recurso Laboral)

Relator: João Gil de Oliveira
Data : 31/Outubro/2013


ASSUNTOS:

- Renúncia a créditos salariais


SUMÁRIO :
     
Na pendência de uma relação laboral não é válida a declaração do trabalhador que renuncia ao percebimento de determinadas quantias que lhe são devidas por trabalho prestado e que não foram pagas ou que foram insuficientemente pagas, o que viola o princípio da efectividade mínima, segundo o qual a retribuição deve ser concretizada mediante a entrega do seu valor real ao trabalhador.

              O Relator,


           João A. G. Gil de Oliveira


Processo n.º 210/2013
(Recurso Civil)
Data : 31/Outubro/2013

Recorrente : XXX

Recorrida : YYY

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
     1. XXX, autora nos autos à margem indicados, aí mais bem identificada, notificada da sentença do Tribunal Judicial de Base, que julgou improcedente o seu pedido na parte relativa à compensação do trabalho em dias de descanso semanal na sua relação laboral coma ré YYY, Limitada, dela vem recorrer, alegando em síntese conclusiva:
    1. Verça o presente Recurso sobre a parte da decisão onde se entendeu que a declaração assinada pela Autora, ora Recorrente, em pleno decurso da relação laboral configura uma renúncia ou reconhecimento negativo de dívida e, como tal, nada mais lhe será devido a título de compensação pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal.
    2. Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, está a Recorrente em crer que não será correcto entender que a declaração assinada em pleno decurso da relação laboral configure uma "renúncia" ou "declaração negativa de dívida", nos termos da qual nenhuma outra quantia lhe será devida pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, nem terá sido esta linha de orientação seguida pelo Tribunal de Última Instância no Ac. n.º 27/2008, convocado pelo próprio Tribunal a quo.
    3. Com efeito, a situação objecto de apreciação pelo Tribunal a quo era em muito distinta da situação avaliada pelo Tribunal de Última Instância no Ac. n.º 27/2008.
    4. Basta ver que enquanto a Autora/Recorrente assinou a declaração em pleno decurso da relação laboral, a situação apreciada pelo Tribunal de Última Instância respeitava a uma declaração assinada por um trabalhador cerca de um ano após a extinção da respectiva relação de trabalho.
    5. E certo é que esta pequena (grande) diferença será quanto baste para fazer cair por terra o fundamento da Decisão ora posta em crise, por errada aplicação de Direito, maxime dos artigos 5.º, 6.º e 33.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
    6. Ademais, conforme tem vindo a ser unanimemente sublinhado pela doutrina e jurisprudência da RAEM e de Portugal, os créditos laborais do trabalhador apenas se tornam disponíveis, uma vez cessada a relação laboral, pelo que a consequência da assinatura da declaração pela Autora seria a da plena existência do seu direito de crédito contra a Ré.
    7. Isto mesmo tem sido, aliás, sublinhado pelos Tribunais Superiores da RAEM, ao sufragarem que: "a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação"; isto é, que a renúncia a créditos, ou seja remissão, apenas será possível se efectuada após extinção da relação de trabalho.
    8. Trata-se, de resto, da orientação que é seguida por toda a doutrina e jurisprudência da RAEM e de Portugal.
    9. De onde se conclui que, a declaração assinada pela Autora, ora Recorrente, em pleno decurso da relação laboral apenas prova que a mesma recebeu as importâncias naquela descriminadas, mas não prova que nenhumas outras lhe sejam devidas, ainda que ela o declare, nem prova que as importâncias nele referidas são, rigorosamente, do montante que lhe é devido.
    Ao que acresce que,
    10. Confrontando-se o valor constante da declaração assinada pela Autora, ora Recorrente, com o valor reclamado na Petição Inicial é notório que o montante constante da declaração é manifestamente inferior àquele, em clara violação do disposto no art. 6.° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, sabido que em caso algum poderão ser admitidos acordos ou convenções, estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores, dos quais resultam condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da Lei.
    11. De onde se conclui que, contrariamente à posição sufragada pelo Tribunal a quo, não é correcto entender que os créditos laborais da Autora, ora Recorrente, fossem passíveis de renúncia durante a vigência do contrato de trabalho e, como tal, a declaração assinada pela Autora em pleno decurso da sua relação laboral com a Ré, na parte em que declara nenhuma outra quantia lhe ser devida pela Ré é nula, por violação dos artigos 5.°, 6.° e 33.° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
    12. Assim, concluída pela invalidade da declaração assinada pela Autora, ora Recorrente, na parte onde afirma "nada mais ser devido a título de trabalho prestado em dia de descanso semanal", resulta da matéria de facto provada (cfr. quesitos 12, 14, 15, 17, 18 e 19 da base instrutória e doc. 2 junto com a Petição Inicial) os elementos necessários e suficientes à condenação da Ré, pelo próprio Tribunal de Recurso.
    13. Neste sentido, deve a Ré ser condenada a pagar à Autora, ora Recorrente, a quantia de Mop$134,290.00, pela prestação de trabalho em dia de descanso semanal, à qual deverá ser descontada a quantia de Mop$13,958.00, que a Autora já recebeu da Ré, perfazendo assim uma quantia total de Mop$120,332.00, acrescida de juros legais até efectivo e integral pagamento.
    14. Do mesmo modo, porque ficou provado que a Ré nunca conferiu à Autora um outro dia de descanso compensatório em troca do trabalho prestado em dia de descanso semanal (quesito 18), deve a Ré ser condenada a pagar à Autora, ora Recorrente, a quantia de Mop$67,145.00, acrescida de juros legais até efectivo e integral pagamento.
    15. Tudo perfazendo a quantia total de Mop$187,477.00 (cento e oitenta e sete mil quatrocentas e setenta e sete patacas), que deverá ser acrescida de juros legais até efectivo e integral pagamento.
    Nestes termos, pugna pela procedência do presente recurso e pela revogação da decisão recorrida em conformidade com o alegado.
    
    2. YYY LIMITADA, R. mais bem identificada nos autos, contra alega:
    O recurso interposto pela A não pode senão improceder.
    Vem a A invocar que a declaração por si subscrita não pode valer como "renúncia" a créditos que lhe fossem devidos por trabalho prestado em dia de descanso semanal, na medida em que remonta a data em que ainda subsistia a relação laboral entre as partes.
    Ora, não obstante os esforços da A, a análise do teor documento em causa (junto com a p.i. como Doc. 4) revela bastante mais que a singela "renúncia" que a A nele diz estar plasmada.
    É um facto que, no respectivo parágrafo 2., a declaração em causa alude a "waive" e "discharge" por parte da A relativamente à R., com o sentido de "renúncia" e "desobrigação" de prestações futuras;
    Porém, há que que analisar o enquadramento de tal "renúncia" na economia geral do documento: justamente porque inserida após a determinação dos montantes devidos à A a título de trabalho em descanso semanal (efectuada no precedente parágrafo 1.), ela refere-se, não aos referidos montantes, mas a outros que a A pretendesse vir a reclamar em decorrência da relação de trabalho mantida com a R..
    Já quanto aos valores a que a A tinha direito a título de trabalho prestado em descanso semanal, cumprirá que, na análise dos termos da declaração em apreço, se use de efectivo rigor e detalhe, em lugar da superficialidade empregue pela A, na tentativa de iludir o real conteúdo do documento.
    Assim, logo no intróito da declaração a A "reconhece e aceita" que o pagamento daqueles valores é efectuado "nos termos legais" (em tradução livre da expressão "lawful", ali utilizada).
    Em seguida, no parágrafo 1. da declaração e na sequência da delimitação do acordo como respeitando aos valores de trabalho em dia de descanso semanal (conforme referido no intróito), a A "reconhece" que o montante "devido" a esse título é de MOP$13.958,00,
    E reconhece ainda que tal quantia lhe foi paga pela R. "satisfazendo", "total e completamente", aquilo a que a A tinha direito a esse título.
    Não está em causa, como se vê, uma renúncia a um direito existente;
    Trata-se, pelo contrário, de uma quantificação desse direito, e de uma declaração de que ele está integralmente realizado.
    Note-se que a A não declara ser credora de um qualquer valor, para em seguida aceitar um valor inferior, "perdoando" o remanescente;
    Note-se também que a A também não declara uma renúncia genérica e indeterminada ao seu direito, sem cuidar de o delimitar;
    Aquilo a que a A e a R. procedem é a um cálculo conjunto da totalidade do montante devido a título de trabalho em descanso semanal, que fixam num determinado quantitativo, dando a primeira quitação à segunda desse exacto valor,
    O que não pode confundir-se com a remissão, de natureza abdicatória, prevista no art. 854º do Código Civil (CC).
    É certo que a A. poderá munir-se de uma torrente de jurisprudência no sentido de que a "cedência", "perdão" ou "renúncia" a créditos laborais não são permitidas enquanto dure a relação de emprego;
    Poderá igualmente citar um rol de ilustres autores, todos propugnando idêntica interpretação;
    O que não poderá fazer - porque o douto Tribunal ad quem o não permitirá - é ficcionar que a declaração que ora se analisa assenta "como uma luva" nas situações julgadas naqueles arestos e dissecadas nestes artigos doutrinários, e não possui, inequivocamente, um sentido distinto, muito mais lato que aqueles simples "perdão" ou "renúncia", e exigindo por isso uma análise mais circunstanciada,
    E da qual inevitavelmente emergirá a conclusão de que a sentença recorrida não merece reparo, por ter reconhecido à declaração sub judicio a eficácia de que deve revestir-se.
    Ainda que assim não se entendesse, a tudo o que vem de ser dito acresce ainda que, como decorre do elenco factual dado por provado, a declaração em causa foi subscrita pela A. em 19.12.2006, ao passo que esta cessou funções ao serviço da R. apenas uma semana mais tarde, em 26.12.2006.
    Ora, aquela declaração foi redigida e assinada pela A. e pela R. tendo já em vista, justamente, a iminente cessação da relação laboral entre as partes.
    Note-se, nesta matéria, que o teor geral da declaração dispõe sobre temas relacionados com a cessação da relação de trabalho e a regulação dos direitos e deveres das partes após tal cessação,
    Cumprindo ressaltar, por exemplo, as alusões, nos parágrafos 2. e 6., a essa cessação, e ainda, no parágrafo 4., ao "pagamento final".
    Por outras palavras: em 19.12.2006, tanto a A como a R haviam decidido cessar o contrato de trabalho que as ligava e sabiam que ele iria terminar a breve trecho, o que sucedeu formalmente tão só uma semana mais tarde;
    E foi precisamente no contexto da preparação do término da relação laboral, e do competente apuramento dos montantes que fossem devidos à A, que foi calculado o valor de MOP$13.958,00 como aquele que, em face do trabalho efectivamente prestado pela A em dia de descanso semanal, lhe era devido pela R,
    Valor esse que, não é demais sublinhá-lo, foi expressamente aceite pela A como sendo aquele a que tinha direito - o que, como se disse, não deverá ser confundido com qualquer "perdão" de um putativo valor superior que fosse devido àquele título.
    Ora, no quadro da discussão sobre a admissibilidade da renúncia a créditos laborais na pendência da relação de emprego, é pacífico que a proibição de tal renúncia nessa circunstância se funda na protecção do trabalhador enquanto parte mais frágil da relação laboral, conferindo-lhe assim uma tutela acrescida face ao ascendente funcional e económico de que o empregador normalmente dispõe.
    Sucede que, como se disse, na concreta circunstância em que ocorreu a subscrição da declaração pela A. e pela R, já aquela sabia que, em escassos dias, deixaria de prestar a sua actividade para a R, ficando livre de qualquer relação de dependência perante a mesma.
    Por outras palavras, ao reconhecer o valor de MOP$13.598,00 como sendo aquele que lhe era devido a título de trabalho prestado em dia de descanso semanal, a A estava já liberta de qualquer espartilho que lhe pudesse ser causado pela sujeição ao empregador, na medida em que este não disporia mais de qualquer ascendente sobre a mesma.
    De tudo isto resulta que, não obstante a declaração em causa tenha sido assinada pela A. uma semana antes da cessação formal da relação de trabalho, o enquadramento fáctico daquela declaração era na verdade em tudo idêntico ao que seria caso a referida relação tivesse já cessado.
    Nos termos do art. 326º do CC, "É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".
    O fim económico e social do direito a a invocar a nulidade de uma declaração de "renúncia" a créditos laborais efectuada na pendência da relação de emprego (admitindo-se, sem conceder, que é disso que se trata in casu) é a já referida protecção do trabalhador enquanto parte mais fraca da aludida relação, salvaguardando-o de eventuais pressões ou represálias do empregador, mediante as quais pudesse levar o trabalhador indevidamente a prescindir de direitos que lhe assistissem.
    Não sendo essa a situação da A. - porque, como se disse, nenhuma pressão ou represália a R. poderia já exercer sobre ela, a escassos dias do já previsto e acordado término da relação laboral -, afigura-se que aquela exerce o seu putativo direito a arguir tal nulidade em manifesto excesso do seu fim económico e social, e logo de forma abusiva,
    O que do mesmo modo deverá determinar a improcedência de tal arguição, conduzindo à manutenção da decisão a quo.
    Nestes termos defende a manutenção do decidido.

3. Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    Vem provada a factualidade seguinte:
“Entre 15 de Outubro de 1993 a 26 de Dezembro de 2006, a Autora prestou para a Ré funções de “guarda de segurança”. (A)
Trabalhando sobre as ordens, direcção, instruções e fiscalização da Ré. (B)
A Ré sempre fixou o local e horário de trabalho da Autora de acordo com as exclusivas necessidades. (C)
Em 19 de Dezembro de 2006, em pleno decurso da relação de trabalho que ao tempo unia a Autora à Ré, por proposta da Ré, a Autora assinou um documento de onde consta que aceitava receber da Ré a quantia de MOP 13.958,00, a título de compensação pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal. (D)
Tal quantia foi, efectivamente recebida pela Autora. (E)
A Ré, é empresa que se dedica à prestação de serviços de segurança, incluindo a segurança e vigilância por meio de guardas de segurança e de sistemas de vigilância. (F)
Em 15 de Outubro de 1993, a Ré celebrou com a Autora um contrato de trabalho. (G)
Do contrato de trabalho assinado entre a Ré e a Autora, e assinado em 15 de Outubro de 1993, resulta que como contrapartida da actividade prestada, a Ré obrigou-se a pagar à Autora, a quantia de MOP 1.800,00 (mil e oitocentas patacas) – para um conjunto de 215 horas de trabalho, acrescidas de horas extras a MOP 10,00 por hora. (3º)
Por cada dia de trabalho efectivamente prestado pela Autora à Ré, a Autora auferiu em média os montantes diários assim descriminados:
Ano de 1993 – MOP 88,00
Ano de 1994 – MOP 88,00
Ano de 1995 – MOP 88,00
Ano de 1996 – MOP 88,00
Ano de 1997 – MOP 88,00
Ano de 1998 – MOP 88,00
Ano de 1999 – MOP 88,00
Ano de 2000 – MOP 134,41
Ano de 2001 – MOP 148,58
Ano de 2002 – MOP 163,07
Ano de 2003 – MOP 164,36
Ano de 2004 – MOP 160,96
Ano de 2005 – MOP 146,32
Ano de 2006 – MOP 148,71. (11º)
Sem prejuízo das respostas dadas aos quesitos 13.º a 16.º, desde o início da relação de trabalho entre a Autora e a Ré, a A. nunca gozou de qualquer dia de descanso semanal, anual e ou de feriado obrigatório remunerado, excepto dia um de Janeiro de 2002 e um de Outubro de 2006. (12.º, 20.º, 21.º, 22.º)
A A. pode gozar de dias de “dispensa”, sempre e previamente autorizados pela Ré. (13º)
Os dias de dispensa ao trabalho, nunca foram pela Ré remunerados. (14º)
Salvo os dias de “dispensa” – autorizados pela Ré e não remunerados – a Autora trabalhou para a Ré, ao longo de toda a relação de trabalho, todos os dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios (excepto dia um de Janeiro de 2002 e um de Outubro de 2006) como se dias de trabalho normal se tratassem, com o salário correspondente a um dia, em singelo. (15.º, 17.º, 19.º)
Entre 1 de Julho de 1999 a 26 de Dezembro de 2006, a Autora foi dispensada ao trabalho, sem ter auferido qualquer remuneração, nos seguintes dias:
Jul-99 17,18
Mar-00 24 a 31
Apr-00 1 a 19
Ag-00 13
Set-00 22,23,24
Nov-00 18
Feb-01 12
Abr-01 16
Jun-01 1 a 4
Jul-01 9 a 12
Ag-01 6 a 9
Set-01 13 a 16
Dez-01 21 a 31
Jan-02 1 a 6
Mar-02 14,21
Abr-02 2,11
Maio-02 8,15
Feb-03 8
Jun-03 15,16
Nov-03 4
Jan-04 19
Abr-04 1 a 11,13 a 15
Maio-04 23,29
Jun-04 5
Ago-04 4
Out-04 17,18
Nov-04 13
Dez-04 6
Jan-05 2,3,4,22
Feb-05 26
Mar-05 7,29
Abr-05 11,12,23
Maio-05 2 a 31
Jun-05 1,2
Jul-05 3
Nov-05 5
Dez-05 3
Feb-06 15
Mar-06 18 a 23
Abr-06 16, 17
Maio-06 4
Set-06 11 a 30
Out-06 1 a 31
Nov-06 1 a 15
Dez-06 16 a 21. (16º)
Nunca a Ré conferiu à Autora, em troca do trabalho prestado em dia de descanso semanal um qualquer outro dia de descanso compensatório. (18º)”
    
    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa apenas por saber se a declaração assinada pelo trabalhador relativa aos créditos salariais devidos por trabalho em dias de descanso semanal é válida e extintiva dos créditos laborais resultantes da prestação de trabalho em dia de descanso semanal ou se, pelo contrário, tal "renúncia" apenas seria válida após a extinção da referida relação de trabalho, tendo em conta os artigos 5.°, 6.° e 33.° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
    
    2. Discorda a recorrente do entendimento do Tribunal a quo que concluiu que, uma vez recebida a quantia constante da declaração assinada pela autora, nenhuma outra lhe seria devida a título de trabalho prestado em dia de descanso semanal, pois que os créditos laborais do trabalhador apenas se tornam disponíveis, cessada que se mostre a relação laboral, isso mesmo se consagrando, ao tempo da assinatura da declaração.
    Estriba-se no artigo 33.° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, nos termos do qual se dispõe que:
    "O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário ( ... )"
    Mais se louva no acórdão n.º 27/2008 do Tribunal de Última Instância.
    
    3. Contrapõe o recorrida, YYY, dizendo haver que enquadrar tal "renúncia" na economia geral do documento: justamente porque inserida após a determinação dos montantes devidos à A a título de trabalho em descanso semanal (efectuada no precedente parágrafo 1.), ela refere-se, não aos referidos montantes, mas a outros que a A pretendesse vir a reclamar em decorrência da relação de trabalho mantida com a R.; apela a que se use de rigor e detalhe, em lugar da superficialidade empregue pela A, na tentativa de iludir o real conteúdo do documento, apelando a um reconhecimento de um pagamento nos termos legais, a um reconhecimento do respectivo montante (MOP$13.958,00), a uma satisfação total e completa daquilo a que a A. tinha direito a esse título, não estando em causa a renúncia a um direito existente, acrescendo a tudo isto que a declaração foi redigida e assinada pela A. e pela R. tendo já em vista, justamente, a eminente cessação da relação laboral entre as partes, pois que em 19/12/2006 as partes haviam decidido cessar o contrato de trabalho que as ligava e sabiam que ele iria terminar a breve trecho, o que sucedeu formalmente, tão só uma semana mais tarde.
    
    4. Trata-se de uma questão que tem sido já muito debatida na Jurisprudência de Macau e permitimo-nos transcrever aqui o que de pertinente se mostra e foi já decidido pelo Venerando TUI no processo n.º 27/2008, de 30/7/2008:
    “Como se disse, a autora deixou de trabalhar para a B em 2002 e, em 2003, tendo recebido desta entidade determinada quantia em dinheiro, emitiu declaração escrita na qual declarou ter recebido determinada quantia da B, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrente do mesmo vínculo laboral.
    Mais declarou a autora que nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com B subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por exigível, por qualquer forma, à mesma empresa.
    Há, assim, e em primeiro lugar que qualificar juridicamente a declaração da autora, na qualidade de ex-trabalhadora da B.
    (…)
    Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
    Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
    Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
    Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela
    seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
    (…)
    Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.
    Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito (art. 6.º do RJRL) são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
    O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
    Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
    Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
    Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
    Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
    Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.“
  
   5. Aderimos ao entendimento acima vertido, pelo que, independentemente da natureza da declaração negocial em presença, o que importa distinguir é se se está perante direitos disponíveis ou não, face a um terminus da relação laboral.
    Se é verdade que a protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral, não é menos certo que, desde logo, o RJRL, no seu art. 1°, pugnando pela "observância dos condicionalismos mínimos" nele estabelecidos, prevê :
    “O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
     E no art. 33º do R.J.R.L.:
    ”O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
    Temos defendido, tal como o TUI, que tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compreendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
    Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, o que não acontece no caso presente.
    Tanto mais que já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
    Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações auferidas por créditos laborais.
    A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
    
    6. Mas diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige - exigência plasmada na lei - que as condições de trabalho sejam humanas e dignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar.
    O princípio do tratamento mais favorável "...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas".1
    Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.
    Nesta conformidade falece eventual invocação do artigo 6º do RJRL ”São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”, tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
    Isto é totalmente aplicável enquanto dura a relação de trabalho.
   É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve Pedro Romano Martinez:
   “Relacionada com a irredutibilidade encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações.
   A possibilidade de renúncia ao direito de perceber o salário ou parte dele pelo trabalhador não parece admissível e apesar de não haver norma expressa que o impeça tem-se admitido que o trabalhador não pode renunciar previamente à sua retribuição, nem a parte dela; ou seja, não será lícita a remissão da dívida do empregador feita por acordo com o trabalhador. Depois de receber, o trabalhador poderá dispor da quantia auferida a título de salário como muito bem entender. Além disso nada impede que no acordo de cessação, haja uma remissão, nos termos da qual o trabalhador renuncia, com aquiescência de empregador, a todos os créditos inclusive o salário”. 2
    Assim se tem entendido em termos de Jurisprudência comparada.3
    Estando perante uma situação, a dos autos, em que não se mostra finda a relação laboral, o trabalhador não pode renunciar previamente à sua retribuição ou a parte dela, o que resulta de razões de ordem pública, na própria subordinação, que impede o trabalhador de ser verdadeiramente livre na sua decisão, na constância da relação laboral e na imprescritibilidade dos créditos remuneratórios, como refere Menezes Cordeiro.4
    Na pendência de uma relação laboral não é válida a declaração do trabalhador que renuncia ao percebimento de determinadas quantias que lhe são devidas por trabalho prestado e que não foram pagas ou que foram insuficientemente pagas, o que viola o princípio da efectividade mínima, segundo o qual a retribuição deve ser concretizada mediante a entrega do seu valor real ao trabalhador.
    
    7. Procura a recorrida convencer de que as circunstâncias da assinatura de tal documento se inserem num contexto de cessação de relação laboral, invocando nomeadamente dois factos:
    - porque inserida após a determinação dos montantes devidos à A a título de trabalho em descanso semanal, tal declaração refere-se, não aos referidos montantes, mas a outros que a A pretendesse vir a reclamar em decorrência da relação de trabalho mantida com a R.;
    - foi precisamente no contexto da preparação do término da relação laboral, e do competente apuramento dos montantes que fossem devidos à A, que foi calculado o valor de MOP$13.958,00 como aquele que, em face do trabalho efectivamente prestado pela A em dia de descanso semanal.
    Não tem razão a recorrida.
    Trata-se de matéria fáctica nova que não foi por si alegada quando expressamente se refere a essa declaração na contestação (artigo 53º e segs.), não sendo curial que o venha agora fazer em sede de alegações.
    Não faz sentido, é processualmente inadmissível vir agora alegar - quoad est demonstrandum - o que as partes visaram , quais os créditos ali pensados e ainda que, não obstante a proximidade da cessação da relação laboral que se tratou de um acerto de contas final.
    É certo que temos nos autos o documento, onde não se deixa de aludir a "waive" e "discharge" por parte da A relativamente à R., com o sentido de "renúncia" e "desobrigação" de prestações futuras e ficamos sem saber - essa matéria afigura-se de vital importância para a tese da Ré - se a trabalhadora em causa, ao assinar tal declaração, já sabia que a mesma ia cessar ou se, pelo contrário, a assinou porque tinha esperança da sua renovação e, ao anuir a tal renúncia, que lhe fosse renovado o contrato.
    
    8. Não se deixa de registar que, na contestação, a ré não deixa de admitir a dívida pela retribuição do trabalho nos dias de descanso semanal, no artigo 31º, ao dizer expressamente que à quantia de MOP 134.290,00 devia ser descontado o montante de MOP 13.958,00, aludido na referida declaração. Não se percebe, pois, a posição da Ré que num passo admite tal dívida, para noutro o impugnar.
    Invoca ainda a natureza quantificadora do montante estabelecido na declaração e a sua conformidade com a lei.
    Não lhe assiste ainda aí razão. A desconformidade com a lei é patente em relação àquilo que, a esse título, seria devido e a quantificação feita não deixa de se traduzir, nessa medida, numa conta errada em desfavor do trabalhador, em relação a uma matéria que, por natureza é irredutível, imprescritível e irrenunciável.
    9. Posto isto, importa daí retirar as necessárias consequências.
    Vem formulado a título de compensação salarial pelo trabalho em dias de descanso semanal o pedido de pagamento do montante de MOP 134.290,00, calculado sob o factor x2, conforme Jurisprudência pacífica deste Tribunal, a que se deve descontar o montante MOP13.958,00 já pago.
    Apenas esse montante e não já a compensação de mais um dia, o que redundaria na aplicação prática do factor x3.
    Remetemo-nos aqui para a abundante Jurisprudência deste Tribunal sobre a matéria.5
    Pelas razões acima expostas, o recurso não deixará de ser julgado parcialmente procedente.
    
    IV - DECISÃO
   Pelas apontadas razões, acordam em conceder parcial provimento ao recurso e, revogando parcialmente a decisão recorrida, condenam a Ré, Sociedade de YYY, Limitada a pagar à autora A., XXX, a quantia de MOP$ 120.332,00 (cento e vinte mil, trezentas e trinta e duas patacas), a título de compensação pelos dias de descanso semanal, mantendo o que no restante decidido foi, acrescida dos juros, na parte ora modificada a partir da presente data, conforme a uniformização de jurisprudência do Processo do TUI n.º 69/2010, até integral pagamento.
    Custas pela recorrente e recorrida na proporção dos respectivos decaimentos em ambas as instâncias.
Macau, 31 de Outubro de 2013,

João A. G. Gil de Oliveira
(Relator)

Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 11.ª edição, pág. 118.
2 - Direito do Trabalho, 2ª ed., 2005 Almedina, 583
3 - Acs. STJ de 20/11/03, proc. 01S4270, de 12/12/01, proc. 01S2271, de 9/10/02, proc. 3661/02
4 - Manual de Dto do Trabalho, Almedina, Reim., 1997, 734
5 - Apenas a título exemplificativo, processos 241/2005, 297/05, 304/05, 234/05, 320/05, 255/05, 296/05, respectivamente de 23/5/06, 23/2/06, 23/2/06, 2/3/06, 2/3/06, 26/1/06, 23/2/06, 330/2005 , 3/2006, 76 /2006, 607/12, 898/12, 15/13, 379/13, 428/13.

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