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Processo nº 950/2012-A
Data do Acórdão: 07NOV2013


Assuntos:

Arguição da nulidade do Acórdão
Simulação
Prova testemunhal
Presunção judicial


SUMÁRIO

Tendo em conta as consequências indesejáveis a que uma interpretação literal e rígida dos artºs 344º e 388º do CC pode conduzir, é de fazer uma interpretação restritiva desses normativos no sentido de que, havendo um começo de prova por escrito acerca do intuito simulatório, são admissíveis a prova testemunhal e presunção judicial, uma vez que o facto a provar já se tornou verosímil.



O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 950/2012-A


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

Notificada do Acórdão deste TSI proferido em 16MAIO2013, a recorrida B veio arguir, mediante o requerimento datado de 03JUN2013, a nulidade do Acórdão por omissão da pronúncia, nos termos seguintes:

  B, Recorrida nos autos à margem referenciados, em que é Recorrente C, notificada do Acórdão proferido por este Venerando Tribunal de Segunda Instãncia (TSI), em 16 de Maio de 2013, vem imputar ao mesmo a violação do disposto no artigo 563.°, n.º 2 e 629.°, n.º 2 e a nulidade prevista na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 571.°, aplicável por força do disposto no n.º 1 do artigo 633.° todos do Código de Processo Civil (CPC), o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
  I. Dispõe o artigo 563.º, n. ° 2 do CPC que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua aprecição, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
  Por sua vez, dispõe o n.º 1 do artigo 629.º do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância:
  a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 599.º, a decisão com base neles proferida;
  b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
  c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
  Dispõe ainda o n.º 2 do referido normativo que no caso a que se refere a segunda parte da alínea a), o Tribunal de Segunda Instância reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham servido de fundamento à decisão de facto impugnada (sublinhado nosso).
  II. Sucede que, o Acórdão proferido por este Venerando Tribunal não se pronunciou sobre a aplicabilidade do disposto no artigo no artigo 388.º do Código Civil nos presentes autos.
  Sendo certo que a aplicabilidade do disposto no referido normativo foi expressamente invocada pela ora Recorrida nos seus articulados, nomeadamente, nos artigos 24.º a 41.º da sua réplica e, bem como, nas sua contra-alegações de recurso, constituindo uma questão essencial para a decisão da causa.
  Ora, o artigo 388.º do Código Civil preceitua o seguinte:
  “1. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 367.º a 373.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
  2. A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.
  3. O disposto nos números anteriores não é aplicável a terceiros.”
  Por sua vez, o artigo 344.º do referido diploma estabelece que as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.
  Do quadro normativo em referência decorre que está vedado aos próprios simuladores provar através de prova testemunhal ou por via de presunção judicial tanto o acordo simulatório como o negócio dissimulado.
  Para que se possa compreender o alcance da referida proibição importa referir que, nos termos do disposto no artigo 232.° do Código Civil, a simulação contratual tem por base três pressupostos essenciais:
  (i) a divergência entre a vontade real e a vontade declarada dos contraentes, aquela integrando o negócio dissimulado e esta o negócio simulado;
  (ii) o acordo ou conluio (pactum simulationis) entre as partes;
  (iii) a intenção de enganar terceiros (animus decipiendi) .
  
  A inadmissibilidade de prova testemunhal ou por presunção judicial recai sobre o negócio dissimulado e o acordo simulatório, quando invocado pelos simuladores, na medida em que estes constituam convenções contrárias e adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou particular que formalize o negócio simulado.
  A razão de ser da inadmissibilidade de prova testemunhal ou por presunção judicial contra ou praeter scriptum estabelecida nos n.º 1 e 2 do artigo 388.° e 344.° do Código Civil, em detrimento do princípio da livre admissibilidade dos meios de prova referido no artigo 558.°, nº 1, do CPC, prende-se com o objectivo de evitar que prevaleçam aqueles meios de prova de reconhecida falibilidade sobre a prova documental, por natureza, mais segura.
  Ou seja, conforme a Recorrida oportunamente alegou, atento o disposto nos supra referidos normativos e, em particular, no disposto no artigo 388.° do Código Civil, está vedado aos próprios simuladores provar através de prova testemunhal ou por via de presunção judicial tanto o acordo simulatório como o negócio dissimulado, pelo que, o depoimento das referidas testemunhas não era por si só suficiente para esse efeito e os documentos 1, 2, 3, 4 e 5 juntos pelo Recorrente com o seu requerimeno de 28 de Março de 2011 e os documentos juntos a fls. 235 a 239 dos autos também não fazem qualquer prova da existência desse acordo simulatório ou da sua pretensa vontade do Recorrente de doar a metade indivisa da fracção autónoma sub judice à 2.ª Ré
  No entanto, como acima se referiu, in casu, o Acórdão proferido por este Venerando Tribunal não teve em atendção o conteúdo das contra-alegações da ora Recorrida, uma vez que não se pronunciou sobre o disposto no referido artigo 388.° do Código Civil.
  Ao não se pronunciar sobre a aplicabilidade do disposto no artigo 388.° do Código Civil, o Acórdão proferido por este Venerando Tribunal violou o disposto no artigo 563.°, n.º 2 e 629.°, n.º 2, ambos do CPC, incorrendo na nulidade de omissão de pronúncia, prevista no artigo 571.°, n. ° 1, alínea d), primeira parte, do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 633.°, n.º 1 do mesmo diploma legal.
  
  Termos em que se requer a V. Exa. se digne julgar procedentes a nulidade arguida pela ora Recorrida nos termos e com os fundamentos supra expostos.


Cumprido o contraditório, apreciemos.

Antes de mais, convém lembrar aqui o que se passou após a prolação da sentença de primeira instância.

Inconformado com a sentença de primeira instância, veio o 1º Réu C impugnar, por via de recurso ordinário, inter alia, a matéria de facto na parte que diz respeito à intenção simulatória subjacente ao contrato de compra e venda celebrado entre ele e 2ª Ré D e à existência de um negócio dissimulado de doação.

Conforme se vê no Acórdão, cuja nulidade ora se arguiu, este TSI reapreciou as provas, testemunhais e documentais, já examinadas e produzidas na primeira instância, e com recurso a presunção judicial, alterou a matéria de facto na parte impugnada, tendo passado a julgar provados os factos demonstrativos da intenção simulatória subjacente ao contrato de compra e venda celebrado entre ele e 2ª Ré D e da existência de um negócio dissimulado de doação.

Vem agora a recorrida B dizer que ao reapreciar as provas testemunhais e recorrer a presunção judicial para alterar a matéria de facto na parte impugnada referente à simulação e à dissimulação, o Acórdão não se pronunciou sobre a aplicabilidade do disposto nos artºs 344º e 388º do CC, o que constitui a nulidade do Acórdão por omissão da pronúncia, a que se refere o artº 571º/1-d) do CPC.

É verdade que a tal questão da admissibilidade de prova testemunhal e da presunção judicial foi suscitada pela recorrida nas suas contra-alegações e este TSI deveria ter, pelo menos, tecer algumas considerações sobre a mesma.

Há portanto efectivamente omissão da pronúncia, geradora da nulidade da sentença.

Procede assim a arguição de nulidade.

Havendo omissão de pronúncia, temos de conhecer agora a questão omitida.

Todavia, conforme iremos demonstrar infra, nem por isso a sorte da presente acção passa a ser outra diferente.

Ora, rezam os artigos 344º e 388º do CC que:

Artigo 344.º
(Presunções judiciais)
As presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.

Artigo 388.º
(Convenções contra o conteúdo de documentos ou além dele)
1. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 367.º a 373.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
2. A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.
3. O disposto nos números anteriores não é aplicável a terceiros.

Tal como podemos ver claramente no nosso Acórdão, cuja nulidade ora se arguiu, este TSI alterou a matéria de facto não se apoiando apenas nas provas testemunhais ou somente com recurso à presunção judicial, mas através da apreciação global dos vários meios de prova, nomeadamente documentais.

Ora, não faltam doutrinas que sustentam uma interpretação restritiva dos artºs 351º e 394º/2 do CC de 1966 (que correspondem aos artºs 344º e 388º do CC de 1999), tendo em conta as consequências indesejáveis a que uma interpretação literal e rígida daqueles normativos pode conduzir.

As tais consequências indesejáveis são justamente aquelas que procurámos evitar quando reproduzimos, no Acórdão cuja nulidade ora se arguiu, uma passagem do Acórdão deste TSI, tirado em 18ABR2013 no processo nº 755/2012.

Dentre as doutrinas, para nós todas defensáveis, que sustentam a interpretação restritiva daqueles normativos, temos a douta posição do Prof. Mota Pinto que escreve:

“Constitui excepção à regra do artº 394º e por isso deve ser permitida a prova por testemunhas no caso de o facto a provar estar já tornado verosímil por um começo de prova por escrito. Também deve ser admitida tal prova testemunhal existindo já prova documental susceptível de formar a convicção da verificação do facto alegado quando se trate de interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental.” – in C.J., 1985, III.

Diz o Acórdão, cuja nulidade ora se arguiu, nas pág. 36 e 37 que:

…… há in casu todo um circunstancialismo, especialmente a manifesta discrepância entre o valor do mercado e o valor declarado do bem vendido e a fraca capacidade financeira da 2ª Ré no momento da celebração de negócio, que se não articula entre si e que se mostra pouco compatível com a verdadeira intenção por parte dos Réus de celebrar realmente um negócio de compra e venda.

Antes pelo contrário, da manifesta discrepância entre o valor do mercado e o valor declarado do bem vendido, da relativa fraca capacidade financeira da 2ª Ré para custear o preço e o imposto no valor total de cerca de MOP$120.000,00 no momento da celebração de negócio, assim como o relacionamento da amizade entre o 1º Réu e a 2ª Ré e a sua família, podemos inferir, por meio de presunção judicial, com a segurança razoável, que estamos perante a simulação de compra e venda e que existe realmente um negócio escondido de doação, tal como defendeu o 1º Réu ab initio.

Pelo que, é de proceder à alteração das respostas dadas a esses três quesitos, e passar a julgá-los provados.

Ora, a discrepância entre o valor do mercado e o valor declarado do bem vendido e a fraca capacidade financeira da 2ª Ré no momento da celebração de negócio são factos provados por meio de prova documental, que traduz justamente uma aparência de prova escrita, isto é, um começo de prova por escrito na terminologia do Prof. Mota Pinto, acerca do intuito simulatório.

Assim, na esteira da doutrina pela Prof. Mota Pinto, é de concluir a prova testemunhal era in casu admissível.

Mutatis mudantis, deve ser igualmente admissível o recurso à presunção judicial, por força da remissão expressa do artº 344º do CC.

Sem mais delongas, resta decidir.

Pelo exposto, acordam:

* Julgar procedente o requerimento da arguição de nulidade por omissão da pronúncia;

* Julgar admissíveis a prova testemunhal e a presunção judicial nos termos acima consignados; e

* Manter o decidido no Acórdão datado de 16MAIO2013, cuja nulidade ora se arguiu, em tudo quanto se não mostra incompatível com o decidido no presente Acórdão.

Sem custas.

Registe e notifique.

RAEM, 07NOV2013


Relator
Lai Kin Hong


Primeiro Juiz-Adjunto
Choi Mou Pan


Segundo Juiz-Adjunto
João A. G. Gil de Oliveira