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Processo nº 695/2013 Data: 14.11.2013
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “detenção ilícita de estupefaciente para consumo”.
“Condução sob influência de estupefacientes”.
Cúmulo jurídico.
Competência.
Tribunal Singular.
Pena.



SUMÁRIO

1. Não padece de nulidade por “incompetência” a decisão do Mmo Juiz (singular) que, em sede de cúmulo jurídico, e de entre uma pena (abstracta) com um limite mínimo de 2 anos e 3 meses de prisão e com um limite máximo de 2 anos e 10 meses de prisão, determina a aplicação de uma pena única de 2 anos e 6 meses de prisão.

2. Na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade - que se manifesta na totalidade dos factos - devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente.

3. O instituto da suspensão da execução da pena – cfr., art. 48° do C.P.M. – assenta numa relação de confiança entre o Tribunal e o condenado. Aquele, convence-se, em juízo de prognose favorável, que o arguido, sentindo a condenação, é capaz de passar a conduzir a sua vida de modo lícito e adequado, acreditando ainda que o mesmo posto perante a censura do facto e ameaça da pena, é capaz de se afastar da criminalidade.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 695/2013
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenado como autor de 1 crime de “detenção ilícita de estupefaciente para consumo”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009 na pena de 2 meses de prisão, e 1 outro de “condução sob influência de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 90°, n.° 2 da Lei n.° 3/2007, na pena de 5 meses de prisão.
Operando, seguidamente, o cúmulo jurídico com uma outra pena de 2 anos e 3 meses que lhe foi aplicada no âmbito do processo CR1-12-0236-PCC, fixou-lhe o Mmo Juiz a pena única de 2 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 161 a 166 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, vem o arguido recorrer, afirmando, em síntese, que o Mmo Juiz do T.J.B. “violou a norma do art. 12° do C.P.P.M. e art. 23°, n.° 6, al. 1) da Lei n.° 9/1999 (L.B.O.J.)”, e que “excessiva é a pena”; (cfr., fls. 175 a 191-v).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 202 a 204-v).

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Admitido o recurso, vieram os autos a esta Instância, e, em sede de vista juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Em primeiro lugar, não podemos deixar de concordar com a douta posição assumida pela nossa digna colega do Ministério Público na sua resposta dada ao presente recurso, no sentido de considerar que o mesmo recurso não merece de provimento.
Aqui, vamos tentar abordar, de uma forma pouco mais sucinta, as questões suscitadas pelo recorrente.
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Na óptica do recorrente, entende que o tribunal "a quo" violou as regras de competência em razão da matéria, abusando a competência do tribunal colectivo em decidir o cumulo jurídico das penas. Por outro lado, argumenta que o tribunal deveria optar a suspensão de execução da pena em vez de pena efectiva, visto que o -tribunal ainda pode depositar confiança relativamente ao seu comportamento futuro.
Salvo o respeito, discordamos com este entendimento.
Em primeiro lugar, é fácil de constatar que todas as penas parcelares que foram englobadas no cúmulo jurídico não são penas que ultrapassam três anos de prisão.
Acresce que mesmo a moldura penal abstracta do cúmulo jurídico, calculada em termos do art° 71, n° 2 do C.P.M., também não ultrapassa três anos de prisão.
Assim sendo, não se vê como é que pode chamar a intervenção do tribunal colectivo ao presente caso?
Efectivamente, em nenhumas normas invocadas pelo recorrente, quer o art° 12 do C.P.P.M. quer o art° 23 da L.B.O.J. tenha cabimento ou aplicabilidade no caso concreto.
Portanto, o recurso não merece de provimento, nesta parte.
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Em segundo lugar, no que se concerne à questão de suspensão de execução da pena, cumpre-nos dizer o seguinte:
No entendimento do recorrente, achou "estranho" porque é que o tribunal "a quo" não tornasse em conta na sua decisão o facto de que outro tribunal (processo CRl-12-0236-PCC) onde como tribunal que julgou o último facto ilícito do recorrente, aí o tribunal optou pela suspensão de execução da pena.
Ou seja, a questão é saber como tribunal que julgou o último facto, a sua decisão, especialmente na matéria de suspensão de execução da pena, vincula ou não o outro tribunal que efectua finalmente o cúmulo jurídico das todas as penas parcelares.
Com efeito, pensamos que a resposta desta questão já foi dada no art° 71, n° 1 do C.P.M., onde se prescreve que:
"Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente."
Na verdade, como dizia o Prof. Figueiredo Dias na sua obra, "Direito Penal Português - As Consequência Jurídicas Do Crime":
"Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes em efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização). (pag. 291 e v. da citada obra)
Ou seja, funciona no nosso Código o regime da pena conjunta, onde é imprescindível uma avaliação da personalidade global e completa do agente através de todos os factos que integram no cúmulo, só assim é capaz de obter uma pena final também justa e adequada do cúmulo
No caso em apreço, face às sistemáticas violações de comandos legais, bem assim como um relativo curto prazo dentro do qual os três crimes foram cometidos (entre os quais dois deles têm a quase a mesma natureza -condução sob influência de alcóol e sob influência de estupefaciente-), vislumbram-se claramente uma personalidade global com tendência criminosa por parte do recorrente.
Acresce que o tribunal "a quo" como tribunal de última condenação, está-se naturalmente numa melhor posição para fazer tal análise de personalidade do recorrente.
Assim sendo, não vemos nenhum obstáculo legal em impedir o tribunal "a quo" em alterar a suspensão de execução da pena inicialmente concedida numa pena parcelar.
E no que toca à bondade da decisão em aplicar a pena efectiva de prisão, pensamos que a sentença recorrida não merece de censura.
Com efeito, regista-se que no momento de cometimento do crime pelo qual foi condenado nos presentes autos, o recorrente já tinha sido condenado por duas vezes, sendo uma delas por crime de quase mesma natureza.
Do nosso ponto de vista, tal circunstância revela um grau relativamente alto de culpa do recorrente e um defeito na sua personalidade.
Daí que o argumento de aplicabilidade da pena de prisão suspensa na sua execução, não passaria de uma mera esperança do recorrente, mas sem nenhum suporte legal, especialmente não está em consonância com os objectivos de prevenções criminais.
Pois, no caso em apreço, não nós pareça que tivessem verificados quaisquer elementos de facto que se apontam para afirmar, positivamente, a necessidade de suspender a execução da pena.
Bem pelo contrário, tudo aponta para uma imprescindibilidade de aplicação e execução da pena.
Começamos pela finalidade de prevenção especial
Na verdade, há de partir de factos actuais e passados para avaliar e prever a conduta futura do agente do crime, especialmente, no que se toca à personalidade dele. Podemos até dizer que a confiança necessária do tribunal baseia-se inevitavelmente na análise positiva da personalidade do agente.
In casu, o recorrente não é primário, já tinha sido condenado por duas vezes, assim, é suposto que o recorrente já deve saber como pautar a sua conduta com os padrões sociais.
Para nós, a única conclusão racional que nós podemos tirar dos factos globais é o recorrente não está preparado para pautar a sua conduta em conformidade com os padrões sociais. Sendo uma pessoa carecida de ressocialização e não nós pareça que o recorrente possua capacidade suficiente para auto-controlar sob à sombra de mera ameaça de prisão, uma vez o seu passado mostra já a sua fraqueza da personalidade, pelo que já não há justificação nenhuma para que o tribunal "a quo" continue a depositar nele confiança.
Daí que o recorrente não satisfaz minimamente a exigência de prevenção especial.
Face ao exposto, entendemos que o recurso deve ser logo rejeitado por sua manifesta improcedência”; (cfr., fls. 230 a 232).

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 162 a 163, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Resulta do que se deixou relatado que duas são as questões pelo arguido ora recorrente colocadas, certo sendo que não discute o mesmo a decisão de facto do T.J.B., o mesmo sucedendo com a sua qualificação jurídica.

Questiona sim o mesmo recorrente a “competência do Mmo Juiz do T.J.B.” para efectuar o cúmulo jurídico das penas aplicadas nestes autos com a aplicada nos autos registados com a referência CR1-12-0236-PCC, e, subsidiariamente, a “pena”, que considera excessiva.

Vejamos.

–– Comecemos como parece lógico, pela primeira questão.

Diz o recorrente que a decisão em questão viola o art. 12° do C.P.P.M. e art. 23° da Lei n.° 9/1999 (L.B.O.J.).

Ora, prescreve o art. 12° do C.P.P.M.:

“1. Compete ao tribunal colectivo, em matéria penal, julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo Tribunal Superior de Justiça, respeitarem a crimes:

a) Previstos no título III e nos capítulos I e II do título V do livro II do Código Penal;

b) Dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa;

c) Cuja pena máxima aplicável for superior a 3 anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infracções, for inferior o limite máximo correspondente a cada crime.
2. Compete ainda ao tribunal colectivo julgar as acções em que tenha sido admitido o exercício conjunto da acção cível, sempre que uma das partes requeira a intervenção deste tribunal e o montante do pedido de indemnização exceda 35000 patacas”.

E, o citado art. 23° da Lei n.° 9/1999 que:

“1. Para efeitos de julgamento, nos termos das leis de processo, os tribunais de primeira instância funcionam com tribunal colectivo ou com tribunal singular.
2. Sempre que a lei não preveja a intervenção do colectivo, os tribunais funcionam com tribunal singular.
3. O tribunal singular é composto por um juiz.
4. O tribunal colectivo é composto por:

1) Um presidente de tribunal colectivo, que preside;

2) O juiz do processo;

3) Um juiz, prévia e anualmente, designado pelo Conselho dos Magistrados Judiciais.

5. Mantém-se até final do julgamento, nos termos do Estatuto dos Magistrados, a competência dos juízes que o tenham iniciado ou, sendo o caso, que tenham tido visto para o efeito.
6. Sem prejuízo dos casos em que as leis de processo prescindam da sua intervenção, compete ao tribunal colectivo julgar:

1) Os processos de natureza penal em que deva intervir o tribunal colectivo;

2) As acções penais em que tenha sido admitido o exercício conjunto da acção cível, sempre que o pedido de indemnização exceda o valor da alçada dos tribunais de primeira instância;

3) As questões de facto nas acções de natureza cível e laboral de valor superior à alçada dos tribunais de primeira instância, bem como as questões da mesma natureza nos incidentes, procedimentos cautelares e execuções que sigam os termos do processo de declaração e cujo valor exceda aquela alçada;

4) As questões de facto nas acções da competência do Tribunal Administrativo de valor superior à alçada dos tribunais de primeira instância;

5) Os demais processos e questões previstos na lei”.

Atento o estatuído nos preceitos atrás transcritos e ponderando sobre a questão, evidente se nos parece que não tem o recorrente razão.

Com efeito, o Mmo Juiz do T.J.B., (para além de ser o Juiz da “última condenação”, limitou-se a aplicar uma pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, de entre uma pena (abstracta) com um limite mínimo de 2 anos e 3 meses de prisão e com um limite máximo de 2 anos e 10 meses de prisão, em causa não estando assim uma pena para a qual – o juiz singular – não tivesse competência, nenhuma censura merecendo assim o decidido.

–– Quanto à “pena”, pouco há a acrescentar ao que já foi consignado pelo Ilustre Procurador Adjunto no seu douto Parecer.

De facto, face à insistência do arguido em levar uma vida delinquente, inviável é a aplicação ao mesmo de uma pena (parcelar) não privativa da liberdade ao abrigo do art. 64° ou 44° do C.P.M..

No que toca às penas parcelares pelos crimes matéria dos presentes autos, mostram-se estas as mesmas conformes com os critérios do art. 40° e 65° do C.P.M., não sendo de olvidar que “na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.02.2000, Proc. n° 2/2000, e, mais recentemente, de 30.05.2013, Proc. n° 293/2013).

Por fim, e como é sabido, “na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade - que se manifesta na totalidade dos factos - devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente”; (cfr., v.g., o Ac. de 11.10.2012, Proc. n.° 703/2012, e mais recentemente, de 07.02.2013, Proc. n.° 1010/2012).

No caso, evidente é que excessiva não é a pena única fixada, (ainda assim, mais próxima do seu limite mínimo) e tendo presente a factualidade provada, insistindo o arguido em delinquir, mostra-se pois de subscrever o douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto, na parte em que se afirma que “a única conclusão racional que nós podemos tirar dos factos globais é o recorrente não está preparado para pautar a sua conduta em conformidade com os padrões sociais. Sendo uma pessoa carecida de ressocialização e não nós pareça que o recorrente possua capacidade suficiente para auto-controlar sob à sombra de mera ameaça de prisão, uma vez o seu passado mostra já a sua fraqueza da personalidade, pelo que já não há justificação nenhuma para que o tribunal "a quo" continue a depositar nele confiança”.

Com efeito, não se pode olvidar que o instituto da suspensão da execução da pena – cfr., art. 48° do C.P.M. – assenta numa relação de confiança entre o Tribunal e o condenado. Aquele, convence-se, em juízo de prognose favorável, que o arguido, sentindo a condenação, é capaz de passar a conduzir a sua vida de modo lícito e adequado, acreditando ainda que o mesmo posto perante a censura do facto e ameaça da pena, é capaz de se afastar da criminalidade.

Nesta conformidade, nenhuma censura merece a decisão recorrida, sendo o recurso de rejeitar dada a sua manifesta improcedência.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art. 409°, n.° 2, al. a) e 410, n.° 1 do C.P.P.M.).

Pagará o recorrente 5 UCs de taxa de justiça, e como sanção pela rejeição do seu recurso, o equivalente a 4 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 4 do C.P.P.M.).

Macau, aos 14 de Novembro de 2013
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 695/2013 Pág. 20

Proc. 695/2013 Pág. 19