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Processo nº 656/2013 Data: 21.11.2013
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “furto”.
Tentativa.



SUMÁRIO

Para a consumação do crime de furto não basta a mera apropriação “material” da coisa (furtada) sem a sua mínima disponibilidade.

O relator,

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Processo nº 656/2013
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação pública respondeu no T.J.B., A, com os sinais dos autos, vindo a ser condenada pela prática de 1 crime de “furto qualificado”, p. e p. pelo art, 198°, n.° 2, al. a) do C.P.M., na pena de 2 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 165 a 168 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a arguida recorreu para, em síntese, dizer que incorreu o Tribunal a quo em “erro na qualificação jurídico-penal” da sua conduta, já que a mesma integra apenas o crime em questão mas na forma tentada, pedindo também a consequente atenuação especial e suspensão da execução da pena; (cfr., fls. 174 a 182).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 184 a 185-v).

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Neste T.S.I., juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na óptica da recorrente, entende que dos factos dados como provados pelo tribunal recorrido integram-se na figura do crime de furto tentado e não na sua forma prefeita de consumação.
Alega a recorrente que o acórdão recorrido padece do vício de insuficiência para a decisão dos factos tidos como provados dado que a matéria de facto dado como provada não é suficiente para preencher o tipo de crime de roubo na forma consumada.
Defende ainda que deve mexer na medida concreta da pena e pondera a possibilidade de suspensão de execução da pena.
Ora, como a primeira questão prevalece as outras, vamos analisar, de imediato, a procedência ou não da verificação do vício suscitado pela recorrente.
Em primeiro lugar, comparando os factos dados como provados com os factos descritos na acusação, fica claro que toda a matéria de acusação foi objecto de apreciação e discussão na audiência. Acresce que a defesa não foi invocada quaisquer outros factos relevantes que devem submeter à discussão.
Assim sendo, não se vê como é que é possível a verificação do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão ? Até que não se flui da matéria de facto o mínimo preenchimento da essência deste vício que pacificamente aceite pela jurisprudência da R.A.E.M ..
Com efeito, o que verdadeiramente a recorrente discorda é tão só uma questão de qualificação jurídica operada pelo tribunal "a quo". Trata-se de uma questão de direito e não de facto.
E como este erro na indicação da natureza do vício em nada influencia o poder de conhecimento do objecto do recurso do tribunal "a quem", especialmente, na matéria de direito, razão pela qual procedemos, desde já, também à análise da questão de qualificação jurídica.
De facto, recentemente, o Tribunal de Última Instância proferiu um acórdão n° 24/2013, de 22 de Maio, onde fixou a seguinte orientação sobre a forma de distinção entre a tentativa e a consumação no crime de furto, com as seguintes afirmações:
"No crime de furto a subtracção traduz-se na conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor, entrando no domínio do agente da infracção.
A subtracção só se efectiva quando o domínio do agente da infracção sobre a coisa se torna relativamente estável, aquela que ultrapassa os riscos imediatos de reacção da vítima, das autoridades ou de terceiro que auxilia a vítima."
Ou seja, o critério fundamental de distinção é determinar quando e como é que o agente de infracção passa a exercer um domínio de facto relativamente estável sobre a coisa. Até aqui, este acórdão não se diverge muito das jurisprudências e doutrinas dominantes.
Entretanto, neste acórdão referiu um outro elemento importante, é que a consumação do crime de furto só se verificará quando o domínio de facto do agente sobre a coisa ultrapassa os riscos imediatos de reacção da vítima, das autoridades ou de terceiro.
Assim sendo, podemos extrair dele uma outra conclusão, é que quando a vítima ainda pode exercer, de forma efectiva e eficaz, actos de auto defesa para defender o seu domínio sobre a coisa, só deve qualificar a conduta do agente da infracção como acto de execução sem sucesso, ou seja, fica ainda na fase de tentativa dentro de todo o "inter criminis. "
Ora, não encontramos razão convincente que nós obsta ao seguimento desta jurisprudência, pelo que a resolução do presente caso também deve seguir desta orientação.
Por outro lado, encontramos outro acórdão de T.S.I., que anda muito perto com o acórdão de T.U.I., precisamente, no acórdão n° 516/2009, afirmou o T.S.I. que:
"Não basta a posse instantânea da coisa para a consumação do crime.
Para haver consumação não basta que o sujeito passivo se veja privado do domínio de facto sobre a coisa, é ainda imprescindível que o agente da infracção tenha adquirido um pleno e autónomo domínio sobre a coisa."
Vamos, em seguida, ver como deve ser qualificado a conduta da recorrente.
No caso em apreço, o ponto fulcral está em analisar o facto de i depois de subtracção efectuada pela recorrente, a mesma foi "apanhada" pela vítima. Acto seguido, a recorrente entregou o objecto à outra co-autora não identificada. E num instante, a vítima conseguiu recuperar o objecto da mão desta co-autora.
No entendimento do tribunal recorrido, entende que o crime de furto já está consumado dado que a recorrente já conseguiu exercer o domínio de facto sobre a coisa, e a melhor prova deste domínio é a posterior entrega feita pela recorrente do mesmo objecto à outra co-autora.
Salvo o respeito, temos outra opinião diferente.
Em primeiro lugar, não se esquece que a vítima foi surpreendida no momento de execução do crime, e teve uma reacção imediata em apanhar a recorrente. Ora, a experiência comum da vida diz-nos que a recorrente nunca pode exercer um domínio relativamente pacífico sobre a coisa nesta situação.
Com efeito, a posterior entrega do objecto pela recorrente à outra co-autora é, manifestamente, um acto com o intuito de evitar a frustração do crime ou levar a cabo a consumação do crime. E só há essa necessidade porque o seu domínio sobre a coisa não está ainda sossegada ou está perturbada.
Por outro lado, é importante não esquecer que a recorrente não praticou facto sozinha, mas estava em comparticipação. Isto é, caso a co-autora conseguisse manter o domínio pacífico sobre a coisa, afastando a reacção da vítima, então é que o plano do crime poderia considerar-se como consumado.
Mas a realidade é outra, a vítima conseguiu recuperar o objecto da mão dessa co-autora.
Há outro aspecto que não se deve ignorar, é que desde o primeiro momento do acto de execução até à captura da recorrente pela vítima, tudo se passou num instante, tempo que é demasiadamente curto para que a recorrente se afirme e demonstre o domínio de facto sobre a coisa. Acresce que todos os intervenientes estavam demasiados próximos espacialmente para que o domínio sobre a coisa pudesse ser afirmado.
Assim sendo, conclui-se que os actos de execução do crime praticados pela recorrente ficaram-se só na fase de tentativa.
Face ao exposto, deve proceder-se ao novo enquadramento jurídico dos factos, condenando a recorrente como autora material, na forma tentada, de um crime de furto qualificado.
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Em seguida, e como consequência natural de tudo acima ficou dito, há de proceder a nova fixação da medida concreta da pena.
Por força dos art° 198, n° 2, al.a), art° 22, n° 2 e art° 67, n° 1, al.a) e b), todos do C.P .M., a moldura penal abstracta da pena fica em 1 mês até 6 anos e 8 meses de prisão. (discordamos o cálculo efectuado pela recorrente, no sentido de indicar erroneamente a moldura em 1 mês até 3 anos e 4 meses de prisão, fls. 180 dos autos.)
Ora, ponderando todos os factores favoráveis e desfavoráveis à recorrente, nomeadamente, a confissão integral e sem reserva da recorrente, ser primária, o valor envolvido é consideravelmente elevado, concordamos com a posição da nossa colega na sua resposta à motivação, no sentido de deve aplicar à recorrente uma pena de prisão não inferior a 1 ano e 6 meses de prisão.
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Por último, quanto à questão de suspensão de execução da pena, já não podemos concordar com a recorrente.
Com efeito, no presente caso estão preenchidos os requisitos formais do instituto de suspensão, mas já não assim se passa com as finalidades de prevenções criminais que estão subjacentes à suspensão.
Na verdade, não nos impugna que em termos de prevenção especial, fluem-se nos autos alguns elementos a seu favor, especialmente a sua confissão e o seu passado criminal.
Porém, no presente caso mostra-se, com muita clareza, um problema que hoje em dia a R.A.E.M. está a enfrentar. Ora, como uma cidade aberta para turismo, Macau precisa-se de uma imagem sossegada em termos de segurança, não pode ser visto como um local de criminalidade.
Infelizmente, o fenómeno de crimes contra a propriedade tem vindo a aumentar nesses últimos anos sem parar, torna-se já um problema importante para a população em geral e para as autoridades.
No caso em apreço, tanto a recorrente como a vítima ambos são turistas, e com a conduta da recorrente faz com que as turistas não se sintam seguras a sua estadia em Macau e afecta, directa ou indirectamente, a imagem de Macau perante exterior.
Pensamos que nessa situação a sociedade reclama uma protecção mais eficaz, através da pena, para salvaguardar a confiança da comunidade na vigência séria das normas violadas.
Pelo exposto, pensamos que a pena concreta aplicada não deve ser suspensa na sua execução.
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Concluindo, o recurso interposto merece de parcial provimento, deve proceder à nova qualificação jurídica dos factos, alterando o crime consumado de furto qualificado para o crime tentado. Em consequência disso, procede à nova determinação da pena concreta, com o limite mínimo não inferior a 1 ano e 6 meses de prisão. Enfim, julga-se improcedente a suspensão da pena por não está satisfeita a finalidade de prevenção geral”; (cfr., fls. 194 a 198).

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 166 a 167, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Insurge-se a arguida contra o Acórdão que a condenou pela prática de 1 crime de “furto qualificado”, p. e p. pelo art, 198°, n.° 2, al. a) do C.P.M., na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, afirmando que incorreu o Tribunal a quo em erro na qualificação jurídico-penal da sua conduta, já que a mesma integra apenas o crime em questão mas na forma tentada, pedindo também a consequente atenuação especial e suspensão da execução da pena.

E, sem necessidade de grandes elaborações doutrinárias, cremos que se impõe alterar a qualificação jurídica operada.

No caso, e como bem observa o Ilustre Procurador Adjunto, a arguida foi surpreendida com a “boca na botija”, e a ofendida até acabou por “recuperar” o bem furtado, sendo pois de considerar, que o crime em questão não se chegou a consumar.

Na verdade, e não obstante serem várias as posições que sobre a questão existem – cfr., v.g. José A. Barreiros in “Crimes contra o Património”, pág. 35 e segs., E. Correia in B.M.J. n.° 182/314 e Faria Costa in “Comentário Conimbricense do C.P. ”, Vol II, pág. 49 – não basta uma mera “apropriação material sem a respectiva e mínima disponibilidade da coisa furtada”.

De facto, e como se consignou no recente Acórdão do Vdo T.U.I. de 22.05.2013, Proc. n.° 24/2013: “no crime de furto a subtracção traduz-se na conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor, entrando no domínio do agente da infracção.
A subtracção só se efectiva quando o domínio do agente da infracção sobre a coisa se torna relativamente estável, aquela que ultrapassa os riscos imediatos de reacção da vítima, das autoridades ou de terceiro que auxilia a vítima”.

Estando assim perante uma “tentativa”, de aplicar é o estatuído no art. 22°, n.° 2 do C.P.M., onde se preceitua que “a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada”, e em consequência, o previsto no art. 67° do mesmo Código quanto aos “termos da atenuação especial”.

Chegando-se assim à moldura penal de 1 mês a 6 anos de prisão, (cfr., art. 67°, n.° 1, al. a) e b)), atenta a factualidade dada como provada, o “modus operandi” da arguida, o dolo directo e intenso, e as normas do art. 40° e 65° do C.P.M., julga-se adequada a pena de 1 ano e 6 meses de prisão.

Quanto à pretendida suspensão da execução da pena, vejamos.

Sobre a questão, tem este T.S.I. afirmado que:

“O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando:
– a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
– conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. Art.º 40.º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de prevenção do crime.”; (cfr., v.g., Ac. de 01.03.2011, Proc. n° 837/2011, do ora relator, e, mais recentemente, de 11.07.2013, Proc. n° 402/2013).

No caso, face ao exposto e forte sendo a necessidade de prevenção criminal, não se considera adequada a pretendida suspensão da execução da pena.

Decisão

4. Face ao exposto, acordam conceder parcial provimento ao recurso.

Custas pelo decaimento com taxa que se fixa em 2 UCs.

Honorários no montante de MOP$2.500,00.

Macau, aos 21 de Novembro de 2013

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José Maria Dias Azedo
(Relator)
[Considerando que a arguida é primária e confessou, na íntegra, os factos, demonstrando arrependimento, não me repugnaria a pena de 1 ano de prisão. Por sua vez, tendo presente que já se encontra presa desde 15.12.2012, admitia a suspensão da execução do remanescente da pena por um período de 2 anos].

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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
(vencido, por entender que se deva manter o julgado da 1.ª Instância, mesmo quanto à qualificação jurídica dos factos provados como integrando um crime consumado de furto qualificado).

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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)

Proc. 656/2013 Pág. 16

Proc. 656/2013 Pág. 15