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Proc. nº 59/2009
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 21 de Novembro de 2013
Descritores:
-Cuidados de saúde prestado no exterior de Macau
-Conceito de emergência
-Comparticipação pela Administração


SUMÁRIO:

I - Emergência é conceito indeterminado a densificar casuisticamente, obviamente, e que, no caso da saúde, passa por uma noção de urgência, de um cuidado especial que urge, de atendimento e tratamento prontos, exigíveis imediatamente e sem demora no plano da acção com vista à eficiência e eficácia do resultado.

II - A doente para obter a comparticipação a 100% a que se refere o art. 153º, nº3 do ETAPM deve provar que a situação de emergência da doença deflagrou no exterior, sem que houvesse meios técnicos ou humanos em Macau capazes de prestar os cuidados de saúde indispensáveis ou sem que fosse possível imediatamente o recurso aos trâmites previstos na lei para que eles viessem a ser prestados na RAEM em tempo útil.

Proc. nº 59/2009

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
B, viúva, de nacionalidade portuguesa, titular do BIRM nº XXXXXXX (X), residente em Macau, na Rua de ……, Edif. “…… Kok”, …º - “…”, recorreu contenciosamente para o Tribunal Administrativo da decisão da Junta de Serviços Médicos no Exterior de 18/05/2006, que foi de indeferimento do pedido de reembolso das despesas médicas feitas pela recorrente em Hong Kong, homologada pelo Ex.mo Director dos Serviços de Saúde, por despacho datado de 15/05/2006.
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Por sentença do TA de 30/09/2008, foi o recurso contencioso julgado improcedente.
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É contra essa sentença que ora se insurge a recorrente, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:

“A recorrente insurge-se contra a decisão do Tribunal Administrativo proferida na sentença a fls. 312 e seguintes que decidiu negar provimento ao recurso interposto, mantendo o acto recorrido nos seus precisos termos.

Salvo o devido respeito por entendimento diverso, a recorrente considera que a sentença recorrida não valorou a gravidade do estado de saúde da recorrente aquando do seu internamento.

Na sentença recorrida não são valoradas provas existentes nos autos que fazem com que seja possível verificar que a extrema gravidade do estado de saúde da recorrente está comprovada pelo Médico Urologista de Hong Kong (inquirido por carta rogatória a fls. 278 e 279).

Foi devido ao diagnóstico do médico, face à gravidade da situação e a urgência médica, que fez com que a recorrente fosse sujeita a uma cirurgia.

Erra a sentença recorrida ao considerar que à recorrente foi-lhe feito um diagnostico “cancro no intestino grosso e tinha invadido a bexiga” e não ter dado como provado que o seu estado de saúde era gravíssimo' necessitando de intervenção cirúrgica imediata.

Erradamente, a sentença recorrida entende que a situação da recorrente não se enquadra nas condições do artigo 153º da ETAFP.

Face a prova feita através do médico que atendeu a recorrente em Hong Kong o acto recorrido enferma de ilegalidades que o tomam inválido e anulável.

A recorrente entende que a sentença recorrida falha ao não considerar que o acto recorrido incorre no vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito.

A razão para tal entendimento é porque as provas existentes nos autos não podem de forma alguma levar ao indeferimento da pretensão, tendo, o despacho recorrido e a sentença, feito uma errada qualificação jurídica dos mesmos.
10ª
A questão da gravidade do estado de saúde da recorrente é uma matéria que exige especial conhecimento e o juiz deve fundamentar - facto que não fez - qualquer resposta que seja contraditória com a resposta da pelo médico de Hong Kong que atendeu a recorrente.
11ª
Não servem as considerações feitas a sentença recorrida para derrogar um entendimento médico de que “o estado da recorrente era extremamente grave com risco para a sua vida”.
12ª
A carta rogatória do Médico de Hong Kong é que vem confirmar a necessidade e urgência de internamento da recorrente e tal deveria ser valorado na sentença recorrida.
13ª
Com base no acima mencionado, a entidade recorrida e a sentença recorrida ao indeferir, sem mais, o pedido da recorrente incorreu no vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito.
14ª
Perante os factos e provas constantes dos autos não podia, a sentença recorrida, deixar de subsumir a conduta da recorrente na norma do nº 3 do artigo 153º do ETAPM, ou, ainda que tal não fosse considerado, o que não se concede, na norma prevista na alínea b) do nº 1 do mesmo preceito legal.
15ª
Era absolutamente necessário que no despacho recorrido e na sentença se tivessem alegado e provado factos que invalidasse a qualificação do estado de saúde feito pelo médico de Hong Kong.
16ª
A situação de saúde da recorrente devido à sua idade (76 anos), história clínica, e estado em que se encontrava, com sérias dificuldades em andar e sentar-se, exigia uma intervenção imediata da parte de um médico devido à sua debilidade física e ao perigo de vida que corria (facto confirmado pelo Médico Urologista de Hong Kong).
17ª
Perante esta situação de emergência que exigiu a intervenção imediata de apoio médico e a realização da cirurgia, a recorrente ficou impossibilitada de recorrer imediatamente aos trâmites previstos na lei.
18ª
Assim sendo, os factos ocorridos e provados preenchem as condições previstas no artigo 153º ETAPM não podendo, de modo algum, negar-se essa qualificação jurídica.
19ª
A sentença recorrida e o acto recorrido ao indeferirem a pretensão da recorrente e não enquadrando os factos na norma prevista incorrem em vício de violação de lei.
20ª
Dúvidas não restam, face a prova existente nos autos, que a situação clínica da recorrente era de carácter de urgência médica e necessitava de intervenção imediata porque corria risco de vida.
21ª
Terminando, apreciando os factos erroneamente e não os qualificando na norma prevista no nº 3 do artigo 153º do ETAPM ou, assim não se entendendo, o que não se concede e apenas se admite por mera cautela de patrocínio, na norma prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 153º do mesmo diploma legal, erra a sentença recorrida por não considerar que enferma, o acto recorrido, de vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito.
22ª
O acto recorrido e a sentença recorrida violaram o artigo 153º, n.º 3 e n.º1, alínea b) do mesmo artigo, do ETAPM.
TERMOS EM QUE e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via disso ser anulada a decisão de indeferimento proferida pela Junta de Serviços Médicos no Exterior, de 18.05.2006 (aditamento ao parecer da mesma junta de 10.2.2006), e homologada pelo Exmº Director dos Serviços de Saúde em 15.5.2006, por a mesma estar ferida do vício de violação de lei, devendo-se também considerar-se que a recorrente tem o direito de ser reembolsada pelas despesas que realizou aquando do seu internamento inesperado em Hong Kong”.
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Não houve contra-alegações.
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O digno Magistrado do MP manifestou opinião no sentido de que o recurso jurisdicional não merece provimento, em termos que, com o devido respeito, aqui damos por reproduzidos para os devidos efeitos legais.
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Cumpre decidir.
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II - Os factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«A recorrente é beneficiária titular dos cuidados de saúde registada sob o n.º SS-CGA-411-T.
A recorrente deu entrada nas Urgências do Centro Hospitalar Conde de S. Januário em 17/7/2005, pelas 17H30, por sentir dores no baixo-ventre, tendo a zona vaginal em ferida e inchada, urina com uma cor acastanhada.
À recorrente foi prescrito alguns medicamentos e lhe foi dada uma carta para ser entregue ao Dr. C, médico-especialista em urologia, aquando da consulta marcada para o dia 25/07/2005.
Posteriormente, a recorrente foi informada telefonicamente pelo CHCSJ de que a sua consulta havia sido adiada para o dia 22/08/2005.
Em 22/7/2005, a recorrente e a sua filha deslocaram-se a Hong Kong, onde foi observada no consultório médico do Dr. D, tendo-lhe feito o diagnóstico de “cancro do intestino grosso e tinha invadida na bexiga”.
A recorrente foi internada no Hospital Sanatorium em Hong Kong no mesmo dia, hospital esse que foi escolhido pela própria recorrente.
Nesse dia, à recorrente não foi prescrito qualquer medicamento ou injecção, mas sim apenas realizaram-se testes clínicos.
Entre 23/07/2005 e 26/05/2007, à recorrente foram prescritos alguns medicamentos e injecções, bem como realizaram-se certos exames diagnósticos, tais como radiografia e C.T. scan.
Em 27/7/2005, à recorrente foi efectuada uma operação cirúrgica em Hong Kong, no Hospital Sanatorium.
A recorrente teve alta em 10/08/2005.
Em 2/1/2006, a recorrente requereu o reembolso das despesas médicas, no valor total de HKD$226.951,00.
Por deliberação da Junta para Serviços Médicos do Exterior (JSME), de 15/5/2005, em aditamento ao parecer da mesma de 10/02/2006, foi indeferida a pretensão da recorrente, por entender que o pedido de reembolso não se enquadra no art. 153º do ETAPM”.
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III - O Direito
1 - Revisitando o caso, facticamente, ele explica-se do seguinte modo:
A recorrente, apresentara um quadro clínico de dor no baixo-ventre, com a zona vaginal infeccionada, com urina de cor acastanhada. Tendo ido ao serviço de urgências do HCSJ no dia 17/07/2005, foram-lhe prescritos alguns medicamentos e redigida uma carta para entrega pessoal ao Dr. C, urologista dessa unidade hospitalar, aquando da sua consulta marcada para o dia 25 desse mês de Julho. Porém, pouco antes da data prevista, foi a recorrente informada, por telefone, que essa consulta fora adiada para o dia 22/08/2005.
No dia 22/07/2005 a recorrente, acompanhada da filha, deslocou-se a Hong Kong e, tendo sido vista por um clínico, Dr. D, este diagnosticou-lhe “cancro de intestino grosso com invasão da bexiga”.
No mesmo dia foi internada no Hospital Sanatorium de Hong Kong, onde lhe foram realizados testes clínicos, sem prescrição de medicamento ou injecção. Nos dias 23 e 26 desse mês foram realizados alguns exames auxiliares de diagnóstico, até que no dia 27 foi submetida a uma intervenção cirúrgica. A alta hospitalar ocorreu no dia 10/08/2005.
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2 - A questão agora é: pelas despesas médicas e hospitalares que suportou em Hong Kong deve a recorrente ser reembolsada?
Acha a recorrente que sim, ao abrigo do art. 153º do ETAPM (DL nº 87/89/M), enquanto a Junta para os Serviços Médicos no Exterior dos Serviços de Saúde de Macau defende o contrário.
Verdadeiramente, o vício invocado na petição inicial do recurso contencioso traduzia uma violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e por atentado à referida norma. E como a sentença impugnada não sufragou a tese da recorrente, o que há que apurar é se, efectivamente, estamos perante uma situação de facto que, à luz daquele normativo, deveria levar ao pagamento das despesas suportadas pela doente em Hong Kong.
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3 - Vejamos, portanto, e antes de mais nada, o regime jurídico aplicável ao caso.
O DL nº 24/86/M estabelece aquilo a que poderíamos designar princípio da gratuitidade dos serviços de saúde de Macau dispensados directa ou indirectamente pela Direcção dos Serviços de Saúde (doravante, abreviadamente, designada por DSS), sendo que na segunda variável avultam os cuidados prestados ao abrigo do diploma, por estabelecimentos de saúde de Portugal, do Território de Hong Kong, da República Popular da China, de outros países e, ainda, pelos estabelecimentos de saúde privados de Macau (art. 1º).
Por outro lado, o mesmo diploma ainda consagra o princípio da universalidade, estipulando que o acesso a tais cuidados de saúde é garantido a toda a população (art. 2º).
No que concerne aos cuidados prestados no sector privado da medicina ou fora do território (por exemplo, em Hong Kong), eles estão afiançados no mesmo regime de gratuitidade ou em regime de comparticipação ao doente, sempre que, por falta de meios técnicos ou humanos, não possam ser prestados directamente pelos SSM (arts. 22º e 23º).
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O DL nº 87/89/M, de 21 de Dezembro (ETAPM) consagra idêntica garantia legal de gratuitidade na prestação dos cuidados de saúde aos trabalhadores da Administração Pública nos arts. 145º e sgs., determinando no art. 153º, sob a epígrafe “Cobertura de Encargos”, as percentagens da comparticipação que a Administração pode suportar relativamente aos custos dos cuidados prestados fora de Macau e definindo as condições da respectiva atribuição.
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O art. 2º do DL nº 34/90/M, de 16/07/1990 - diploma que define as condições a observar no processamento e no pagamento das despesas derivadas do recurso a cuidados de saúde prestados fora do Território que, nos termos previstos na lei, devam ser suportadas por este - prescreve, por seu turno, que “Os beneficiários dos Serviços de Saúde, a quem a lei confere o direito à prestação de cuidados de saúde fora do Território e por conta deste, deverão recorrer, sempre que possível, aos organismos oficiais de saúde do local onde vão ser prestados os cuidados… (nº1),
e que
“Em situações de urgência, verificadas ou confirmadas pela Junta para os Serviços Médicos no Exterior, ou de demora na marcação das consultas ou internamentos referidos no número anterior que possa levar ao agravamento da situação clínica do doente, serão suportados os encargos com os cuidados de saúde prestados por organismos de saúde não oficiais” (nº2).
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Este é o quadro legal essencial concernente ao pagamento ou comparticipação das despesas médicas e hospitalares efectuadas fora das fronteiras da RAEM.
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4 - A recorrente esteve doente e recorreu aos serviços do hospital público de Macau, isso é certo. E até compreendemos – mesmo que isso não esteja apurado concretamente – que, devido às dores e sintomas, achasse que não deveria esperar por mais um mês a consulta do urologista que, inicialmente marcada para o dia 25/07, por razões que de si não dependeram, foi adiada para o dia 22/08.
Em casos destes, cuja dor se não mede, nem a sentem os terceiros senão o próprio, em que as angústias e ansiedades têm uma dimensão que apenas o doente pode sofrer no espaço interior do seu silêncio, tudo se deve compreender. O doente olha para si e para os sinais do seu corpo a desmoronar e, então, começa por presumir que não está a ser acompanhado clinicamente como merece. É legítimo tal pensamento. Ele é natural e próprio do ser humano, inconformado com o sofrimento resultante da deterioração física e psicológica, na luta que quer travar contra a doença e contra o desfecho infausto que dela pode advir. Por isso, repetimos, achamos compreensível que, se esse foi o seu móbil (não sabemos), uma deslocação a Hong Kong talvez pudesse dar-lhe alguma tranquilidade de espírito contando com alguma prontidão no diagnóstico e, eventualmente, com a necessária rapidez e eficácia no tratamento, se fosse caso disso.
Sem embargo, uma coisa é a solidariedade humana que podemos manifestar ante o quadro de facto descrito, outra é a subsunção perfeita deste ao painel de normas que permitem o reembolso das despesas efectuadas. O tribunal apenas pode lidar com o direito na solução dos casos litigiosos!
Repare-se que o reembolso solicitado não se fundou em falta de meios técnicos e humanos em Macau para acudirem ao sofrimento da senhora recorrente, mas sim na situação de emergência que ela mesma desenhou na oportunidade e aqui nos autos reitera. Portanto, do que se trata é apurar se o caso ilustra uma situação de extrema necessidade que impusesse a consulta em Hong Kong e o internamento nesse mesmo dia.
Estamos a falar, portanto, de emergência.
Trata-se de um conceito indeterminado a densificar casuisticamente, obviamente. Mas, no caso da saúde, ele passa por uma noção de algo inopinado e repentino, de um cuidado especial que urge, de atendimento e tratamento prontos, exigíveis sem demora no plano da eficiência e eficácia da acção com vista à satisfação do resultado. Ou seja, a emergência é, neste caso da saúde, a situação despoletada no físico de alguém que requer prontidão, logo, imediata (não apenas “célere”) intervenção, sob pena de periculum in mora, isto é, sob pena de, a partir de um juízo de prognose consistente e assente na experiência, poder ser ocasionado um sério risco de vida ou lesões irreparáveis para a pessoa.
O mesmo deve dizer-se da urgência a que se refere o art. 2º, nº3, do DL nº 34/90/M.
Ora, quanto a este aspecto, sufragamos o que a sentença asseverou, face à matéria de facto apurada. Efectivamente, se a senhora se deslocou a Hong Kong por se sentir melhor, tal como disse na petição inicial, isso não figura nos factos assentes. Simplesmente está demonstrado que ela e a filha foram a Hong Kong (sem se conhecer qual o propósito da deslocação) e que nesse dia foi observada por um clínico com o diagnóstico de cancro no intestino com afectação da bexiga.
Esse quadro era de emergência?
Bem, como é fácil de adivinhar, perante um diagnóstico como aquele que foi transmitido à doente, ela tudo haveria de fazer com o objectivo de ser tratada no mais curto prazo de tempo. Seria normal que assim fosse. Simplesmente, com é sabido, uma vontade assim manifestada nem sempre tem correspondência com a prática médica, que quantas vezes não avança para uma cirurgia sem a certeza do mal e da sua origem, logo sem o imprescindível apoio dos meios auxiliares de diagnóstico. E foi exactamente por isso que a senhora recorrente não foi medicada no dia do internamento, que só no dia seguinte (23) e no dia 26 viria a fazer alguns exames (v.g., radiografia e CTscan) e que somente no dia 27 foi submetida a cirurgia no hospital da vizinha RAEK. Ou seja, a recorrente, cujo regozijo por ainda hoje estar viva sinceramente manifestamos e a quem desejamos longa vida e plena de saúde, esteve internada durante 6 dias e só ao sétimo foi intervencionada.
Isto demonstra, cremos nós, que a situação não era de emergência/urgência. Uma urgência não se compadece com tal demora. Assim, sempre seria possível fazer a viagem de regresso a Macau e, na posse do diagnóstico feito no dia 22/07/2005, deslocar-se ao Hospital Conde S. Januário no dia seguinte para tentar ali obter a mesma receptividade interventivo-cirúrgica que teve em Hong Kong. Não o fez, porém.
Claro que se não sabe se teria essa receptividade, se o corpo clínico de Macau estaria disposto a uma melhor e minuciosa observação médica, se nessa hipótese seriam accionados os meios auxiliares de diagnóstico existentes no Hospital, se seria internada e operada, etc, etc. Mas, nada disso agora já interessa, porque a matéria de facto não está apurada nesse sentido e, portanto, não passa de mera prognose insusceptível de demonstração. Podia a recorrente ser peremptória e afirmar nos autos que em caso nenhum o Hospital Conde S. Januário podia prestar o serviço igual ao que lhe foi prestado no Hospital Sanatorium em Hong Kong? Não, certamente, e por isso não o fez no processo.
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Neste sentido, a matéria de facto não acode aos intentos da recorrente. Verdade seja dita que na petição inicial do recurso contencioso aflorou uma factualidade bem mais assertiva acerca da necessidade e urgência no tratamento a que foi submetida na RAEM. Contudo, essa matéria não passou para a factualidade adquirida e, em boa verdade, não temos como contornar a aquisição factual da 1ª instância. Aliás, quisesse a recorrente destruir a decisão de facto e haveria de servir-se do mecanismo previsto no art. 599º do CPC, indicando em concreto os pontos da matéria de facto que considerava incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo de prova nele realizado que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida. Não o fez. Pouco mais fez do que limitar-se a arguir a falta de ponderação dos documentos (que não especificou) por banda da sentença recorrida ou a errada ponderação acerca dos elementos constantes do processo.
Mas, o acerto não pode deixar de estar do lado da sentença. A sentença disse que a situação não era de emergência quando ela foi ao consultório privado de H.K, em vez de ir às urgências do hospital naquele território. Trata-se de uma observação lógica a que nós não podemos deixar de aderir.
Os elementos dos autos permitem concluir por uma situação de gravidade, isso é evidente. Não, porém, de urgência ou emergência deflagrada apenas no território de Hong Kong (isso não ficou claro)1, nem de tal modo incapacitante que impedisse o regresso da senhora recorrente a Macau para receber aqui o tratamento adequado que o caso aconselhasse nos termos acima falados.
Deste modo, não concordamos com a recorrente quando alega que a sentença recorrida não fez a valoração da prova correctamente. Os dados obtidos nos autos não apontam para uma materialidade reveladora de um “extrema gravidade” ou de um “estado de saúde gravíssimo”, a requerer “intervenção cirúrgica imediata”, tal como afirma. Nem isso, aliás, resulta das declarações do médico ouvido por carta rogatória (fls. 278/279, pois se limitou a achar que o caso era simplesmente “bastante urgente” (fls. 278 vº2). Resulta, sim, que a situação era séria e grave, que exigia cuidados. E não vale a pena agora apelar ao art. 40º, nº7, do DL nº 81/99/M, uma vez que se trata de um preceito que confere à Junta a faculdade de diligências e exames adicionais, se achar que podem ser úteis à confirmação da doença nos moldes em que ela fora relatada pela requerente. Mera faculdade que, porém, entendeu não exercitar, por achar que os elementos recolhidos eram já suficientes para a decisão.
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E sendo assim, o art. 153º do ETAPM não fornece serventia à recorrente.
Repare-se no que dispõe o artigo:
Artigo 153.º
(Cobertura de encargos)
1. Os cuidados prestados fora do Território são comparticipados nas condições seguintes:
a) 100% do custo, quando tenham sido previamente prescritos ou autorizados pela Junta para Serviços Médicos no Exterior ou por Junta Médica de Portugal;
b) 50% do custo, quando resultem de problemas de saúde ocorridos fora do Território, que exijam intervenção imediata, mediante ratificação posterior pela Junta para Serviços Médicos no Exterior.
2. Os cuidados prestados nos casos da alínea b) do n.º 1 são comparticipados em 100% se o beneficiário titular se encontrar no exterior ao serviço do Território, e após ratificação posterior da competente Junta.
3. São ainda comparticipados a 100% os cuidados de saúde que, em situação de emergência e por inexistência de meios no Território ou impossibilidade de imediato recurso aos trâmites previstos na lei, não possam ser prestados em Macau, desde que confirmado posteriormente por decisão da mesma Junta.
4. O interessado deve, no caso previsto no número anterior, fazer prova perante a Junta das circunstâncias nele admitidas.
Se a alínea a), do nº1 se não aplica ao caso, a alínea b) também não, na medida em que os problemas de saúde não ocorreram em Hong Kong. Eles tinham sido detectados primeiramente em Macau, como se viu acima.
Resta o nº3, visto que a condição do nº2 também não se verificava. Ora, esse preceito exige uma dupla condição de facto. Para ser prestada a comparticipação de 100% é necessário que os cuidados de saúde não possam ser prestados em Macau, por qualquer das seguintes causas (de per si cumuladas):
a) Uma situação de emergência e a inexistência de meios em Macau para o fim em vista; ou
b) Uma situação de emergência acrescida da impossibilidade de imediato recurso aos trâmites previstos na lei para que eles viessem a ser prestados na RAEM em tempo útil.
Ora, como se viu, para além de haver meios em Macau aptos à prestação do mesmo cuidado de saúde, o quadro de facto, no nosso entendimento, não era de emergência, nem integrava nenhuma das descritas situações legais.
Tudo visto, e dispensadas mais escusadas delongas, pese embora o respeito que nos merece a particular situação da senhora recorrente, não encontramos nenhum vício de que a sentença possa padecer. Se não vislumbramos nenhum erro sobre os pressupostos de facto, nem qualquer violação das normas atinentes à atribuição da comparticipação das despesas médico-hospitalares por parte da Administração, então a sentença não pode ser censurada.
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IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça em 8 UC.
TSI, 21 / 11 / 2013
Presente José Cândido de Pinho Vítor Manuel Carvalho Coelho (Relator)
Tong Hio Fong (Primeiro Juiz-Adjunto)

Lai Kin Hong (Segundo Juiz-Adjunto)
1 Repare-se que nem o médico de Hong Kong, Dr. D, que a observou no dia 22/07/2005 foi capaz de afirmar se a consultou com marcação prévia ou não (fls. 278 vº dos autos)
2 É, aliás, estranho que o médico fizesse na consulta desde logo um tal diagnóstico de “cancro” apenas pela mera observação da doente, sem o auxílio de meios auxiliares de diagnóstico, que só vieram a ser feitos no hospital após o seu internamento.
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