Proc. nº 477/2013
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 28 de Novembro de 2013
Descritores:
-Representação da RAEM em tribunal
-Arbitragem voluntária
-Acção de anulação de decisão arbitral
-Instância
-Absolvição da instância
SUMÁRIO:
I - A regra geral é a de que o Ministério Público representa a RAEM no foro judicial.
II - A representação por advogado ou por licenciado em direito, permitida no art. 4º, nºs 2 e 3 do CPAC, cede o lugar à necessidade de representação pelo MP nos restantes casos (nº4, do cit. artigo), sendo que neles se integra a acção anulatória a que se refere o art. 38º do DL nº 29/96/M (regime da arbitragem voluntária), com cabimento na previsão do art. 97º, al. f), do CPAC.
III - As regras da arbitragem em matéria de representação pelas partes no tribunal arbitral não se confundem com as da representação pelas mesmas partes no tribunal judicial.
IV - A instância – que se inicia com a propositura da acção e se considera proposta desde que a petição seja recebida na secretaria do tribunal, nos termos do art. 211º, nº1, do CPC – só produz efeitos em relação ao ré depois da citação (nº2, do art. 211º cit.). Mas, o certo é que a absolvição a decretar ao abrigo do art. 75º do CPC já não é feita no despacho liminar, porque ele foi realizado ou consumido pelo despacho de aperfeiçoamento.
2 - Ultrapassado esse momento, não pode haver mais despacho liminar e, no que diz respeito a esta excepção dilatória (art. 413º, al. i), do CPC), a consequência já só pode ser a absolvição da instância.
Proc. Nº 477/2013
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
A Região Administrativa Especial de Macau (doravante apenas RAEM), patrocinada por licenciada em direito designada para o efeito, intentou contra “XXX Macau, SA” (doravante apenas XXX) “acção judicial de anulação” da decisão arbitral proferida em 18/12/2012 no âmbito da arbitragem que opôs ambas as partes.
*
O M.mo Juiz suscitou, então, a questão da representação da RAEM e determinou que a autora e o MP se pronunciassem sobre ela (fls. 212-213), o que ambos fizeram, concluindo pela regularidade da representação.
*
O digno Juiz, por despacho de 13/03/2013, reiterou a sua anterior posição e mandou notificar o MP para, em dez dias, ratificar ou retirar todo o processado anterior, sob pena de absolvição da Ré da instância (fls. 228-234).
*
Não o fez o MP e, em vez disso, apresentou a peça de fls. 239, cujos termos aqui se dão por reproduzidos.
*
O M.mo Juiz, por despacho de 10/04/2013, “considerando a inverificação da irregularidade da capacidade judiciária da A.”, decidiu abster-se conhecer do pedido e absolveu a Ré da instância, ao abrigo dos arts. 230º, nº1, al. c) e 413º, al. c), ambos do CPC (fls. 240-241).
*
Contra tal despacho insurge-se agora a RAEM, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
«1. A questão fundamental prende-se com a representação da Região Administrativa Especial de Macau no âmbito da acção de anulação de decisão em que é autora.
2. A Região Administrativa Especial de Macau é representada no âmbito do processo arbitral pelo Chefe do Executivo, por força do disposto no artigo 45.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau e porque não é permitida a intervenção do Ministério Público em tribunal arbitral.
3. Já no entendimento vertido na decisão recorrida, a Região Administrativa Especial de Macau terá de ser representada pelo Ministério Público no âmbito da acção de anulação interposta pela mesma.
4. O que a aceitar-se implica uma ruptura na continuidade da representação de uma das partes, com todas as nefastas consequências que desse facto decorrem para defesa dos seus interesses e para o princípio da igualdade de armas entre as partes.
5. Ainda que a Região Administrativa Especial de Macau quisesse fazer-se representar pelo Ministério Público no âmbito do processo arbitral, não o podia fazer, porque constata-se que o legislador exclui da instância arbitral a participação do mesmo e admite que a Região Administrativa Especial de Macau designe o seu representante, no que concerne aos actos de gestão privada da Administração Pública, bem como para as demais matérias para as quais seja autorizada por lei especial, como é o caso presente - Lei n.º 3/90/M, de 14 de Maio.
6. Com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M de 13 de Dezembro, o legislador fez aplicar supletivamente à arbitragem voluntária no domínio do contencioso administrativo o regime geral da arbitragem voluntária, previsto no Capítulo II do Decreto-Lei n.º 29/96/M, de 11 de Junho, não prevendo norma específica relativamente à representação da Região Administrativa Especial de Macau pelo Ministério Público junto das instâncias arbitrais.
7. Admitindo que a presente acção deveria ter sido interposta pelo Ministério Público, na qualidade de representante da Região Administrativa Especial de Macau - o que se não concede - ficaria a Região Administrativa Especial de Macau em situação de desvantagem relativamente à outra parte que se pode fazer representar em juízo pelos seus advogados, os quais têm a possibilidade de participar no processo desde o início, e para os quais o prazo de 30 dias para a elaboração da petição inicial da acção de anulação da decisão arbitral se encontra plenamente justificado.
8. O artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 29/96/M, de II de Junho, não refere especificamente que trâmites deve a acção de anulação seguir, remetendo para a lei de processo administrativo contencioso.
9. As causas de anulação tipificadas no artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 29/96/M, de 11 de Junho, são de mera legalidade. O objecto da acção de anulação é a própria decisão e não o mérito da causa, o que a aproxima do regime do recurso.
10. O disposto no n.º 2 do artigo 39.º Decreto-Lei n.º 29/96/M, de 11 de Junho, equipara a pendência da acção de anulação, para todos os efeitos legais, à pendência de um recurso com efeito meramente devolutivo.
11. A presente acção, pese embora não se tratar de um recurso jurisdicional, ainda assim, é com esta forma de processo judicial que apresenta maior afinidade, dado que as acções no âmbito do contencioso administrativo têm por objecto relações administrativas controvertidas, o que não é o caso presente - cfr. alínea f) do artigo 97.º do Código do Processo Administrativo Contencioso.
12. No que se refere à impugnação por recurso de decisão arbitral, os termos utilizados nos artigos 34, n.º 2 e 38.º, nºs 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 29/96/M, de 11 de Junho e na Lei de Bases da Organização Judiciária coincidem, uma vez que se indica como uma das competências do Tribunal de Segunda Instância “julgar os recursos das decisões dos Tribunais de Primeira Instância e das proferidas em processos de arbitragem voluntária susceptíveis de impugnação”.
13. A acção judicial/acção de anulação, não tem consagração na Lei de Bases da Organização Judiciária no que se refere à competência do Tribunal Administrativo, não estando incluída nas acções tipificadas na alínea 3) do n.º 2 do artigo 30.º, sendo que, o termo “acção” não deve vincular o Tribunal Administrativo no âmbito da designação e tramitação dos processos.
14. Afastando-se a espécie “acções”, e uma vez que a alínea 5) do n.º 2 do artigo 30.º da Lei de Bases da Organização Judiciária apenas fala em “questões”, o seu enquadramento deve fazer-se, nos termos do disposto no artigo 10.º do Código do Processo Administrativo Contencioso, na categoria “Outros processos”.
15. Não se estando perante uma verdadeira “acção” em sentido estrito, é com o recurso, seja ele contencioso ou jurisdicional, que se encontram mais semelhanças.
16. Deve admitir-se que continua a caber ao Chefe do Executivo a representação da Região Administrativa Especial de Macau em juízo e, consequentemente, que o seu patrocínio pode ser exercido por licenciado em direito por si designado, nos termos do disposto no artigo 4.º do Código do Processo Administrativo Contencioso.
17. Afigura-se incorrecta a aplicação do artigo 52.º do Código de Processo Civil à representação da Região Administrativa Especial de Macau no âmbito da presente acção de anulação de decisão arbitral.
18. A regra contida no artigo 4.º Código do Processo Administrativo Contencioso abrange todas as hipóteses de patrocínio, não apenas dos órgãos administrativos da Região Administrativa Especial de Macau mas também da própria Região Administrativa Especial de Macau, como resulta do seu n.º 3, que engloba na sua previsão as “pessoas de direito público”.
19. A decisão de que se recorre peca por contraditória e por falta de fundamentação.
20. Apesar de considerar que esta acção não se enquadra em nenhuma das tipificadas quer na Lei de Bases da Organização Judiciária quer no artigo 97.º do Código do Processo Administrativo Contencioso, considera o tribunal a quo aplicável o artigo 99.º do mesmo diploma.
21. O Tribunal a quo invoca como fundamento para o seu entendimento o disposto no n.º 3 do artigo 113.º do Código do Processo Administrativo Contencioso, no entanto, tal norma, ao contrário do que pretende o Tribunal a quo, reforça o entendimento que a ora recorrente tem defendido, porquanto face à apreciação de questões de mera legalidade, o legislador manda aplicar o regime do recurso contencioso.
22. O Tribunal a quo limita-se a citar o artigo 74.º do Código de Processo Civil e a não sufragar o entendimento de que o n.º 1 do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 29/96/M, de 11 de Junho, seja extensivamente aplicável na instância junto dos tribunais judiciais, sem qualquer fundamentação.
23. É pois entendimento da recorrente que as normas legitimadoras da presente acção de anulação da decisão arbitral são o n.º 1 do artigo 39.º, conjugado com o artigo 39.º-B, ambos do Decreto-Lei n.º 29/96/M, de 11 de Junho, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M, de 13 de Dezembro, e, por essa razão, o regime da arbitragem regulado por este diploma legal tem de ser aplicado tomando por referência a totalidade do sistema arbitral, sem prejuízo da integração, na parte aplicável, do disposto no Código do Processo Administrativo Contencioso, por força do n.º 2 do artigo 39.º-B, na medida em que o artigo 39.º opera uma remissão implícita para a lei do processo civil,
24. O que o Tribunal a quo não fez.
25. Não deveria o Tribunal a quo ter absolvido o réu da instância mas sim ter procedido ao indeferimento liminar da petição inicial, porquanto à data do despacho o réu ainda não tinha sido citado, não se tendo estabilizado a instância nos termos do artigo 212.º do Código de Processo Civil.
26. O próprio Tribunal a quo manda citar o réu nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 395.º do Código de Processo Civil, o qual se refere à impugnação do despacho de indeferimento liminar.
27. Ao decidir desta maneira o Tribunal a quo viola o princípio estabelecido no artigo 212.º do Código de Processo Civil.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e anulada a decisão ora recorrida, considerando-se, consequentemente, que a representação da Região Administrativa Especial de Macau cabe ao Chefe do Executivo.
Caso assim não se entenda, deve ser determinado o indeferimento liminar da petição inicial ao invés da absolvição do réu da instância.».
*
A XXX respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
«I. Vem o presente recurso interposto pela Autora Região Administrativa Especial de Macau relativamente ao douto despacho proferido pela Mma. Juiz a quo a fls. 240 e segts. dos autos, que julgou pela abstenção de conhecimento do pedido formulado pela mesma nos vertentes autos de acção de anulação da decisão arbitral, absolvendo a Ré da instância;
II. É assim objecto fundamental do presente recurso a questão de saber quem deva representar a Autora Região Administrativa Especial de Macau nos vertentes autos de acção de anulação da decisão arbitral, se o Ministério Público, conforme foi entendimento da Mma. Juiz a quo no douto despacho de fls. 240 e segts. ora em crise, se o Chefe do Executivo, conforme pretende a ora Recorrente;
III. A presente acção de anulação reporta-se a decisão arbitral proferida em 18 de Dezembro de 2012 pelo Tribunal Arbitral “XXX Macau SARL vs RAEM”, no âmbito de acção de indemnização instaurada pela aqui Recorrente XXX Macau, S.A. contra a aqui Recorrente Região Administrativa Especial de Macau ao abrigo da Cláusula 66a do Contrato de Concessão do Serviço Terrestre de Televisão por Subscrição (STTvS);
IV. Nessa referida acção arbitral, a aqui Recorrente Região Administrativa Especial de Macau foi representada por Licenciada em Direito com funções de apoio jurídico, designada por Sua Excelência o Chefe do Executivo para exercer o respectivo patrocínio;
V. Tal representação decorreu do facto de o Legislador de Macau ter claramente optado por isentar o Ministério Público de representar a RAEM nas acções e Tribunais Arbitrais, conforme decorre do regime legal consagrado na Lei nº 3/90/M, de 14 de Maio, Decreto-Lei n0 29/96/M, de 11 de Junho, e Decreto-Lei nº 110/99/M, de 13 de Dezembro, o que aliás é reconhecido pela Recorrente nas suas Alegações de Recurso;
VI. A acção entretanto interposta pela aqui Recorrente, em causa nos presentes autos, é um mecanismo legal previsto na legislação arbitral para eventualmente se alcançar a anulação da decisão arbitral por razões atinentes à própria decisão, e não ao mérito da mesma, porquanto o litígio sujeito à apreciação do Tribunal Arbitral nos termos previstos na Cláusula 66a do Contrato de Concessão do Serviço Terrestre de Televisão por Subscrição (STTvS) é julgado segundo a equidade, e da respectiva decisão não caberá recurso;
VII. Nos termos previstos nos arts. 39º.-A, 39.º-B e 39.º-C do Decreto-Lei nº 29/96/M, de 11 de Junho, cujo regime de arbitragem voluntária no domínio do contencioso administrativo foi consagrado e introduzido pelo Decreto-Lei nº 110/99/M de 13 de Dezembro, a acção de anulação interposta pela aqui Recorrente é da competência do Tribunal Administrativo, sendo a lei aplicável em primeira linha a estas acções a lei de processo administrativo contencioso;
VIII. Para se ajuizar e decidir a quem cabe efectivamente a representação judiciária da Autora Região Administrativa Especial de Macau na vertente acção de anulação da decisão arbitral, haverá que subsumir a questão ao regime legal previsto nos arts. 4º e 97º do Código de Processo Administrativo Contencioso;
IX. O art. 4º do CPAC prevê o patrocínio nos processos do contencioso administrativo, estabelecendo-se no seu número 3 os meios processuais e procedimentos em que o patrocínio é exercido por advogado constituído ou por licenciado em direito com funções de apoio jurídico expressamente designado para o efeito, reservando o número 4 desse referido normativo ao Ministério Público o patrocínio em todos os meios processuais e procedimentos não previstos no número 3;
X. Uma das situações previstas para o patrocínio por parte do Ministério Público em processos do contencioso administrativo são as acções consagradas legalmente no art. 97º do CPAC, e nessa referida norma, o Legislador de Macau veio prever um conjunto de espécies de acções no contencioso administrativo por referência ao respectivo objecto,
XI. O referido art. 97º não contêm uma previsão imperativa na sua tipificação, mas meramente exemplificativa, porquanto o respectivo nº 1 estabelece que “As acções têm por objecto, designadamente, o julgamento de questões sobre: (...)”, tendo a palavra “designadamente” esse sentido;
XII. A acção de anulação da decisão arbitral, que é uma verdadeira acção e meio processual prevista pelo Legislador para impugnação de uma decisão arbitral, está necessariamente incluída naquelas previstas no art. 97º do CPAC;
XIII. Esta acção de anulação nunca poderá ser confundida, ou seguir o regime dos recursos contenciosos administrativos, como pretende a Recorrente, porquanto nos recursos contenciosos previstos no Código de Processo Administrativo Contencioso o que está em causa é um meio processual especial, que se limita ao conhecimento da legalidade dos actos administrativos (da Administração) com a finalidade de os mesmos virem a ser anulados, ou objecto de declaração de nulidade ou inexistência jurídica, enquanto que na acção de anulação o que está em causa é uma decisão arbitral, com a finalidade de vir a ser declarada a eventual nulidade ou anulabilidade, mas que é proferida por um Tribunal Arbitral e cuja força executiva das suas decisões é idêntica ás sentenças proferidas por um Tribunal judicial da RAEM - cfr. Art. 35º, nº 2 do Decreto-Lei nº 29/96/M, de 11 de Junho;
XIV. Sendo assim as acções de anulação da decisão arbitral meios processuais do contencioso administrativo incluídos no art. 97º do CPAC, o patrocínio da Autora Região Administrativa Especial de Macau teria que ser exercido pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no art. 4º, nº 2, 3 e 4 do CPAC;
XV. Mas se dúvidas se colocarem sobre a referência a “órgãos administrativos' no nº 2 do art. 4º do CPAC, e consequentemente não se aceitar encontrar-se ai previsto o patrocínio da RAEM, pessoa colectiva de direito público, a eventual falta de estipulação legal especial sobre a representação da RAEM nas acções de anulação da decisão arbitral, terá que ser então buscada no regime previsto no art. 99º do CPAC;
XVI. Sendo a acção de anulação da decisão arbitral uma acção integrada na previsão legal do art. 97º do CPAC, a sua tramitação segue os termos do processo civil comum de declaração, na sua forma ordinária, ao abrigo do disposto no art. 99º, nº 1 do CPAC;
XVII. A Autora Região Administrativa Especial de Macau sempre teria que ser assim representada pelo Ministério Público, em cumprimento do postulado no art. 52º, nº 1 do Código de Processo Civil, e no âmbito do previsto nos arts. 56º, nº 1, e 60º, nº 2 alínea 2) da Lei nº 9/1999 (Lei de Bases da Organização Judiciária);
XVIII. O prazo de 30 dias para instauração da acção de anulação da decisão arbitral é também o prazo regra previsto para o recurso jurisdicional e para o recurso contencioso administrativo de anulação;
XIX. Sendo também nessas situações os Particulares muitas vezes confrontados com a necessidade de coligir elementos e informação, e posteriormente facultá-los aos mandatários judiciais que os hajam de representar, os quais terão que dar entrada em juízo dentro do prazo legal de 30 dias, entendendo o Legislador ser tal prazo suficiente para que os Particulares possam exercer adequadamente os seus direitos, e por isso também adequado para que a RAEM possa exercer os seus direitos de defesa através do Ministério Público;
XX. Tratando-se de poderes já atribuídos, por Lei, a um órgão com competências próprias e independentes como tem o Ministério Público, e que englobam os poderes ora em causa, não pode Recorrente avocar a si mesma funções e competências que deveras não tem.
XXI. As funções do Chefe do Executivo no âmbito da promoção da acção judicial está definida por Lei.
XXII. Já no âmbito do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 55/92/M que aprovou o Estatuto dos Magistrados dos Tribunais de Macau e o estatuto dos membros do Conselho Superior de Justiça e do Conselho Judiciário de Macau, bem como a respectiva orgânica, se estabelecia que competia ao Governador dar ao Ministério Público instruções no âmbito das acções cíveis em que este represente o Território ou a Fazenda Pública, a autorizar o Ministério Público a confessar, transigir ou desistir nas acções mencionadas na alínea anterior e autorizar o Ministério Público a perdoar ou desistir nos processos respeitantes a crimes cujo procedimento dependa de participação ou acusação particular em que seja ofendido o Território.
XXIII. Em 1999, com a aprovação da Lei n.º 10/1999 que estabeleceu o novo Estatuto dos Magistrados, reiterou o legislador as funções do Chefe do Executivo na promoção da acção judicial, consagrando que compete ao Chefe do Executivo: dar ao Ministério Público instruções no âmbito das acções cíveis em que este represente a Região Administrativa Especial de Macau ou a Fazenda Pública, autorizar o Ministério Público a confessar, transigir ou desistir nas acções referidas na alínea anterior e a Autorizar o Ministério Público a desistir nos processos de natureza penal cujo procedimento dependa de participação ou acusação particular em que seja ofendida a Região Administrativa Especial de Macau;
XXIV. As funções do Chefe do Executivo no âmbito da promoção da acção judicial restringem-se ao poder de instruir o Ministério Público para propor uma qualquer acção.
XXV. O Ministério Público é, em primeira linha, o Advogado do Estado, apenas devendo ser substituído nas situações especialmente previstas na Lei.
XXVI. A promoção, motu próprio, por um jurista que exerce as funções num departamento da administração pública não pode substituir e ultrapassar a competência própria e independente do Ministério Público na propositura de acções judiciais, mesmo que a pedido do Chefe do Executivo.
XXVII. Entende a aqui Recorrida não ter a Recorrente qualquer razão quando pretende que a representação da RAEM na vertente acção de anulação da decisão arbitral cabe ao Chefe do Executivo, entendendo que tal representação e patrocínio da RAEM se encontra confiada legalmente e em exclusivo ao Ministério Público;
XXVIII. No vertente caso, e ao abrigo do previsto no art. 397º, nº 1 do Código de Processo Civil, a Mma. Juiz a quo proferiu despacho liminar de aperfeiçoamento por entender dever ser suprida o vício da irregularidade na representação da Autora Região Administrativa Especial de Macau;
XXIX. Vício esse que é elencado legalmente como excepção dilatória - art. 413º, alínea c) do Código de Processo Civil, e que conduz à absolvição da Ré da instância caso não tenha sido sanada - art. 230º, nº 1 alínea c) e 3 do Código Civil;
XXX. A ora Recorrente não veio a sanar nos autos a irregularidade da sua representação e patrocínio, pelo que o douto Tribunal a quo absteve-se de conhecer o pedido e absolveu a Ré da instância, e tal decisão foi correctamente tomada nos termos processuais aplicáveis, porquanto o disposto no art. 230º do Código de Processo Civil não distingue a fase processual em que deva o Juiz abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância, Sendo por isso aplicável à fase do despacho judicial liminar, em que não se encontra ainda citado o Réu, bem como às restantes fases processuais;
XXXI. Deverá ser proferido douto Acórdão por esse Venerando Tribunal de Segunda Instância que mantenha integralmente inalterado o douto despacho recorrido.».
*
O digno Magistrado do MP, neste tribunal, emitiu o seguinte parecer:
«É objecto do presente recurso a decisão do tribunal “a quo” que, no âmbito de processo de anulação de decisão de tribunal arbitral, se absteve do conhecimento de pedido da A. - RAEM -, para o efeito representada por mandatário judicial do Chefe do Executivo, por a mesma, após convidada para o efeito, não ter cumprido o que a M.ma Juíz entendeu tratar-se de “incapacidade judiciária”, visto, na sua perspectiva, a representação processual da RAEM naquele tipo de acção caber, em exclusivo, ao M.P., o qual, entretanto notificado para o efeito, a não assegurou, razão por que acabou a R. por ser absolvida da instância.
Ao contrário do que poderia ser entendido, afigura-se-nos que no presente recurso se não encontra apenas em causa a aferição das consequências da falta de suprimento, por parte da recorrente, da sua capacidade judiciária: conforme a própria recorrida acaba por reconhecer, para devido e escorreito escrutínio sobre a decisão de abstenção do conhecimento do pedido e consequente absolvição da R., impõe-se a prévia apreciação sobre se a representação processual da RAEM na acção de anulação de decisão arbitral incumbe, em exclusivo, ao M.P., ou se a mesma pode ser assegurada por licenciado em direito para o efeito nomeado.
Como é óbvio, a questão coloca-se, na ausência de estipulação especial sobre a representação das partes, mais concretamente da RAEM, no tipo de acção a que nos vimos reportando.
Para preenchimento dessa lacuna, optou a M.ma Juíz “a quo” por suprir a mesma com recurso ao que apelidou de “regra geral”, entendendo cometer a representação da Região, nestes casos, em exclusivo ao M.P., por força das disposições conjugadas dos artºs 4º, nºs 3 e 4 do CPAC, 52º, nº1 CPC e 56º, nº1 e 60º, nº 2 da Lei 9/1999 (LBOJ) e do “princípio da unidade ou coerência do ordenamento jurídico”.
Serve o sublinhado a que nós próprios procedemos para salientar que, compreendendo a integração positivista e sistemática a que se procedeu na decisão controvertida, aquela última asserção parece não ter correspondência efectiva com a realidade.
Pois se, como se mostra inquestionável e inquestionado, a RAEM, no âmbito da instância arbitral (onde se discute, substancialmente, a matéria controvertida) é livre para designar o seu mandatário judicial, mostrando-se excluída a participação do M.P., salvo no papel geral de garante da legalidade, como poder-se concluir pela congruência e coerência do sistema ao preconizar-se o impedimento de a RAEM designar como seu representante nas acções em questão o mandatário judicial que a representou junto da instância arbitral?
A admitir-se o entendimento sufragado pelo douto acórdão sob escrutínio, o mesmo poderia conduzir e, dizemos nós, conduziria inevitavelmente (para além de ruptura da continuidade da representação de uma das partes, com as nefastas consequências daí advenientes para a defesa dos interesses respectivos), a situações de eventuais, incompatibilidades de percepções quanto à necessidade de interposição deste tipo de acções e respectivo conteúdo, entre quem, de facto, representou a RAEM no âmbito da acção arbitral e quem (M.P.) a decisão controvertida entende devê-la representar, em exclusivo, no âmbito da acção de anulação de decisão arbitral, podendo, inclusive, a este nível, colocar-se algumas questões a nível da separação de poderes.
Como bem acentua a Exma colega junto do tribunal “a quo”, “Seria, aliás, anómalo que no domínio das relações substanciais, que são tratadas na arbitragem, a RAEM pudesse livremente nomear quem a representasse e tivesse que ter o patrocínio do MP para procedimentos cautelares e para recursos, hipótese esta que, na prática, ainda que não formalmente, colocaria o Ministério Público numa relação subordinada”.
Não indo tão longe e ocorrendo a aparente necessidade de preenchimento da lacuna sobre a representação em questão, já que o artº 39º do Dec Lei 29/96/M de 11/6 não refere que trâmites deve a acção de anulação seguir, limitando-se a remeter para a lei de processo administrativo contencioso, sempre se dirá que, a este nível, não acompanhando tese que já vimos sufragada, no sentido da aferição da legitimidade da RAEM à luz do diploma regulador do RJAI, por ali se encontrarem contempladas as normas legitimadoras da acção de que aqui se trata (artºs 38º, 39º, nº 1 e 39º-b), visando-se tal premissa no contemplado no nº 1 do artº 22º desse diploma, vemos como compatível e consentânea com a preservação da coerência do ordenamento jurídico, mais concretamente com a unidade do regime arbitral a aplicação do regime dos recursos jurisdicionais, por ser com esta forma de processo que apresenta maiores afinidades, pois que as acções no âmbito do contencioso administrativo têm por objecto relações administrativas controvertidas (al. f) do artº 97º, CPAC), o que não sucede no caso, sendo as causas de anulação tipificadas no artº 38º daquele diploma de mera legalidade, constituindo objecto da acção a própria decisão e não o mérito da causa, o que, inquestionavelmente a aproxima do regime de recurso, afigurando-se-nos, em conformidade, que se deve reconhecer à RAÊM a capacidade para designar licenciado em Direito com funções de apoio jurídico para exercer o mandato em acção e anulação de decisão arbitral.
Razões por que tendemos a pugnar pelo provimento do presente recurso.».
*
Cumpre decidir.
***
II - Os Factos
1 - Interposta a acção pela RAEM contra a XXX visando a anulação da decisão arbitral de 18/12/2012, o M.mo Juiz suscitou, então, a questão da representação da RAEM e determinou que a autora e o MP se pronunciassem sobre ela (fls. 212-213), o que ambos fizeram, concluindo pela regularidade da representação.
2 - O digno Juiz, por despacho de 13/03/2013, reiterou a sua anterior posição e, mandou notificar o MP para em dez dias ratificar ou retirar todo o processado anterior, sob pena de absolvição da Ré da instância (fls. 228-234).
3 - Não o fez o MP e, em vez disso, apresentou a peça de fls. 239, cujos termos aqui se dão por reproduzidos.
4 - O M.mo Juiz, por despacho de 10/04/2013, “considerando a inverificação da irregularidade da capacidade judiciária da A.”, decidiu abster-se conhecer do pedido e absolveu a Ré da instância, ao abrigo dos arts. 230º, nº1, al. c) e 413º, al. c), ambos do CPC (fls. 240-241), nos seguintes termos:
«Fls. 238 a 239 v: Visto.
*
Depois de terem sido notificados sobre o despacho exarado nas fls. 228 a 234 e verso, a Digna Magistrada do MOP junto deste Tribunal pronunciou-se o seguinte:
“ …
6. No entanto, segundo o nosso modesto entendimento, a decisão sobre a irregularidade da representação da Autora, ainda não está tramitada em julgado;
7. Aliás, tendo sido expressa pela Autora a intenção de interposição de recurso jurisdicional contra a decisão semelhante proferida no processo n.º 189/12-ATA, é de prever que posição idêntica venha a ser tomada nos presentes autos;
8. Não sendo oportuno para o MP assumir a posição de representação da RAEM, com claro risco de a RAEM vir a estar duplamente representada (até decisão definitiva sobre a questão), sustentando os representantes posições antagónicas;
9. Entende-se que o prazo de 10 dias deverá ser contado a partir do trânsito em julgado da decisão sobre a quem compete representar a RAEM no presente litígio.”
E a Autora veio requerer a interposição do recurso jurisdicional contra o referido despacho.
*
Conforme o meu despacho exarado nas fls. 228 a 234 e verso, o MºPº foi convidado para vir ratificar ou retirar, no todo ou em parte, o processado anterior, nos termos do art.º 56.º, n.º 2, do C.P.C., pela verificação da irregularidade respeitante à capacidade judiciária da A.
Tendo a representação da RAEM decidido no referida despacho, e cabido ao juiz determinar a notificação de quem o deve representar na causa para, no prazo fixado, ratificar ou retirar, no todo ou em parte, o processado anterior, nos termos do art.º 56.º, n.º 2, do C.P.C., salvo o respeito por opinião melhor, não se pode iniciar a contagem do prazo concedido para ratificar ou retirar o processado apenas depois de transitar em julgado a decisão posta em findo a instância por falta de capacidade judiciária, uma vez que o legislador já estipula a suspensão da instância quando se verifique a iniciativa do juiz para suprir o vício encontrado em relação à incapacidade judiciária ou irregularidade da representação.
Com o requerimento de interposição do recurso jurisdicional, o entendimento da A. fica bem claro no sentido de não conformar com a decisão da irregularidade da sua representação em juízo no presente litígio. No entanto, a dupla representação só seria verificar-se, salvo o respeito por opinião melhor, quando o Mapa tivesse tomado inequivocamente a posição de concordar com a decisão do Tribunal relativa à representação da R.A.E.M. nos autos, o que não se verificou nos autos.
Pelos expostos, considerando a inverificação do suprimento da irregularidade da capacidade judiciária da A., decido abster-me de conhecer do pedido e absolver a Ré da instância, ao abrigo dos art.º 230.º, n.º1, alínea c) e 413.º, alínea c), do C.P.C. (…)».
***
III - O Direito
A questão nuclear a resolver no presente recurso é esta: Podia a RAEM fazer-se patrocinar nos autos de “acção de anulação de decisão arbitral” por licenciado em direito, tal como fez, ou deveria ser patrocinada pelo Ministério Público, conforme tese do despacho acometido?
Vejamos.
De acordo com o art. 56º, nº1 da Lei de Bases da Organização Judiciária constante da Lei nº 9/1999, uma das “atribuições” do Ministério Público é, genericamente, a representação em juízo da RAEM. Descendo ao plano da competência, o mesmo legislador foi dizendo no nº2, do referido art. 59º que ao Ministério Público “compete especialmente” representar a RAEM.
Está em sintonia com esta dispositividade o art. 52º, nº1 do CPC, quando prescreve que o Território (leia-se RAEM, “ex vi” anexo IV, nº3, da Lei da Reunificação nº 1/1999, de 20/12) é representado pelo Ministério Público.
Esta é a regra geral da representação da RAEM no foro judicial!
*
Certo é que no domínio da convenção arbitral, podem as partes livremente “designar quem as represente ou assista em tribunal” (art. 22º, nº1, do DL nº 29/96/M, de 11/06). Afirmado no preceito este princípio com tal vigor, o próprio legislador acabou mesmo por extrair consequências para o seu desrespeito, consignando no nº2 que se “Tem… por não escrita a estipulação das partes em cláusula compromissória que exclua a intervenção de advogados no processo arbitral, a menos que se trate de exigência de regulamento de instituição especializada de arbitragem para o qual aquela cláusula remeta” (destaque a negro nosso).
Ou seja, as partes podem fazer-se representar no domínio da arbitragem voluntária por advogado ou licenciado em direito, sem qualquer limitação. E como esta representação não tem um objectivo forense, à extensão da representação é indiferente a qualidade intrínseca do representante para a agir em nome do representado. Isto é, para o legislador não é determinante a habilitação funcional em que o representante passa a agir na arbitragem, na medida em que, nesta, o que se supõe imanente é uma composição de litígios em que as partes manifestam total boa fé e disponibilidade para a resolução do caso fora dos tribunais judiciais. Se o objecto da discórdia pode ser submetido a uma «convenção resolutória» (art, 1º, nº1), se as partes «confiam» aos árbitros a resolução do litígio (art. 4º, nº1), é menos importante a natureza ou a qualidade profissional do representante, do que a capacidade deste em ajudar a parte que representa ou a que assiste. Daí que, por não haver restrição quanto a tal, a resolução de uma questão técnica do foro arquitectónico pode passar pelo auxílio de um arquitecto para a representação de qualquer das partes, assim como um problema de engenharia pode justificar a representação das partes por engenheiros, e por aí adiante.
Se as partes são “livres” para designar quem as represente no tribunal, obviamente só a elas cabe o juízo sobre a capacidade do representante em melhor as defender. Parece ser esse, com efeito, o pensamento do legislador quando às partes deixa a livre escolha do profissional sem qualquer condicionamento ou limitação quanto à sua competência e conhecimentos técnicos, os quais, portanto, podem ser ou não jurídicos. E o intérprete tem que aceitar a determinação do legislador!
*
Não se desconhece o preceituado no art. 2º, nº2, al. b), do diploma, segundo o qual “não podem constituir objecto de arbitragem os litígios objecto de processo em que deva intervir o Ministério Público, em representação de pessoas que careçam da necessária capacidade processual para agir em juízo por si mesmos”. Trata-se de uma norma que exclui da arbitragem os litígios em que uma das partes deva necessariamente vir a ser representada pelo Ministério Público (v.g., incapazes, incertos: art. 56º, nº2, al. 1), da LBOJ). Foi uma opção do legislador, esta que não tem que ver com a substância ou a matéria, mas sim com eventual conflito de interesses que possa ser instalado entre a RAEM e a parte representada pelo MP, cujos direitos é seu mister defender. Percebe-se: se o MP garante em abstracto os interesses da RAEM, não os poderia atropelar em concreto na defesa dos direitos e interesses do particular na missão de que para tanto viesse a estar incumbido por força da lei.
Também é verdade que o Ministério Público não deve intervir nos tribunais de arbitragem. A sua presença, em representação da RAEM, só tem cabimento nos tribunais judiciais. Neste sentido, acolhemos a fundamentação da recorrente, mesmo quando cita o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República Portuguesa nº PGRP00002337.
Ainda assim, estes são argumentos imprestáveis para o caso, se nos é permitido dizê-lo, com o devido respeito. Com efeito, deles não se colhe a solução que procuramos para o problema do patrocínio da RAEM em juízo. Quer dizer, não é pelo facto de as regras da arbitragem voluntária não imporem, nem permitirem, a presença do Ministério Público, ou não tolerarem a convenção em litígios que venham impor a presença do MP em tribunal na defesa de pessoas a quem compete especialmente essa representação, que a solução “a fortiori” fica encontrada para uma questão de índole judicial.
Teremos que ir passo a passo à procura dela, mas por outros caminhos. Neste sentido, estamos a acompanhar o roteiro que nos é proposto pela ora recorrente. Continuemos!
*
Diz ela que a sua representação judiciária pelo MP a colocaria em desvantagem relativamente à outra parte, representada por advogados, os quais, tendo o mesmo prazo de 30 dias para a elaboração da petição anulatória (art. 39º do DL 29/96/M cit.), mais facilmente a elaborariam, uma vez que são conhecedores do litígio desde o princípio.
Pensamos, porém, que este é outro argumento que, apesar de sério e respeitável, é improdutivo e pode até ser falacioso. É que a digna recorrente está a partir de um dado adquirido que pode não ter correspondência com a realidade: a representação da parte na arbitragem por um advogado ou, especificamente, pelo advogado X. Pense-se, porém, na circunstância de a parte não ter sido representada por advogado na arbitragem ou ter sido representada por um determinado advogado e na possibilidade de a parte vir a juízo através de um novo advogado que nunca o representara anteriormente. Nesta pressuposição, já o argumento utilizado não serve, porque ambos passam a ficar em igual situação, isto é, com o mesmo tempo para a preparação da impugnação judicial.
De qualquer maneira, ainda que a parte seja representada na arbitragem por advogado, não podemos de modo nenhum inferir que passe a ficar em situação de vantagem em relação à RAEM no que respeita ao prazo para a petição anulatória. É que a intervenção do MP – para o caso de se achar necessária no foro judicial – é uma intervenção em defesa da verificação de um dos fundamentos previstos no art. 38º do diploma. E nessa medida, o quadro não é diferente do da parte representada pelo advogado ao defender a verificação dos mesmos fundamentos. Ou seja, não estando em causa a situação jurídica substantiva, parece-nos que a situação de impugnação anulatória será de igualdade no plano das dificuldades eventualmente sentidas por ambas as partes.
De qualquer modo, a questão exposta pela recorrente não pode surtir os pretendidos desígnios, uma vez que o prazo é igual para ambas as partes, independentemente da estratégia que cada um tenha seguido na escolha do seu representante na arbitragem. Nunca será, pois, por aí que o tema da representação judicial é resolúvel.
Tal como não pode proceder o argumento de que o MP se apresentaria em posição subordinada, caso se acolhesse a ideia de que as partes podiam livremente escolher quem as represente na arbitragem e tivesse que ser o MP a patrocinar a RAEM na acção.
Em boa verdade, o que sucede é, precisamente, o contrário. O Ministério Público vê reforçado o seu papel garantístico de defesa dos interesses da RAEM, porquanto o legislador lhe conferiu um atributo e um protagonismo que a ninguém mais reconheceu, tendo subjacente o entendimento de que no tribunal judicial a nobreza do pleito e o conflito dos interesses superiores em jogo careceriam de um patrocínio com a dignidade que a situação merece. Se o “Estado” demanda ou é demandado em tribunal, melhor do que ninguém o MP está em condições de o defender, precisamente por ser um órgão judiciário pertencente a essa mesma macro pessoa colectiva.
*
E será que se pode olhar para esta “acção de anulação” com os mesmos olhos com que se olha para o recurso jurisdicional? A recorrente acha que sim e o mesmo o opina o digno Magistrado do MP no parecer acima transcrito.
A ideia que nos é posta à consideração é a seguinte: Não estando prevista especialmente uma espécie processual para esta acção anulatória e uma vez que o seu objecto é a decisão da arbitragem em si mesma, e não o mérito dela, então haveria evidentes semelhanças com o recurso jurisdicional. Circunstância que:
- Na tese da recorrente, levaria a pensar que o regime da representação da RAEM a seguir no tribunal judicial haveria de ser o mesmo que o observado no tribunal de arbitragem; e que
- Na tese do MP, a intervenção do MP não seria necessária, podendo a representação recair em licenciado em direito (pensamos que se referiu à previsão do art. 4º do CPAC).
Em nossa opinião, porém, nem uma, nem outro têm razão.
O facto de o regime da arbitragem consentir que uma das partes possa socorrer-se de advogado ou de licenciado em direito, ou mesmo de um técnico de outra área do saber não jurídico, não equivale a dizer que assim mesmo se passem as coisas quando o litígio é desviado para o tribunal judicial. São foros distintos, como diferentes são as regras com que a sua utilização é feita num ou noutro. De modo nenhum podemos, pois, achar que o regime da representação no tribunal arbitral tenha continuidade no tribunal judicial, isto é, que haja para o tribunal judicial uma extensão das regras que dominam o foro arbitral. Aliás, se o diploma em apreço não apresenta regras concernentes à representação das partes que queiram pedir a anulação da decisão arbitral, o que temos de admitir é que o legislador quis que a questão do patrocínio no tribunal judicial fosse resolvida unicamente à luz das normas adjectivas que regulam o processo judicial.
E neste sentido, embora estejamos de acordo com a digna recorrente e com o MP, no sentido de que esta impugnação não interfere com o mérito da decisão em si mesma, mas sim com algum aspecto formal identificado no art. 38º do diploma, a verdade é que isso não nos leva necessariamente a concluir que a anulação deva seguir os termos do recurso jurisdicional e, desse modo, que ela possa ser peticionada por advogado ou por licenciado em direito nos termos do art. 4º, nº3, do CPAC.
Aliás, este tipo de argumentário só se compreende se o aproximarmos do teor do nº2 do art. 39º do diploma, segundo o qual “A pendência da acção de anulação não impede a instauração da acção executiva com base na decisão do tribunal arbitral, sendo equiparada tal pendência, para todos os efeitos legais, à pendência de um recurso com efeito meramente devolutivo”. Quer dizer, damos de barato que os termos com que o legislador se exprime (considerando essa acção como “recurso”) possa levar o intérprete a estender o mesmo tipo de considerações à anulação. Mas, não, isso não é correcto. O art. 39º só o considera assim nos casos em que a decisão arbitral seja dada à execução. Para todos os efeitos, a execução pode continuar, mesmo que a acção de anulação esteja interposta, pois o legislador, nesse caso, confere a esta um efeito meramente devolutivo.
Ora, não é isso o que aqui está em causa. Mesmo que se acolhesse a ideia de que esta acção não está prevista, nem especificamente, nem como acção não especificada ou nominada, portanto fora do âmbito do art. 97º, al. f), do CPAC, não será por essa via que a solução se encontra.
*
Em todo o caso, é de perguntar: esta acção não terá mesmo acolhimento na previsão da al. f), do art. 97º citado?
Bem, face aos fundamentos estabelecidos no art. 38º do DL nº 29/96/M, podemos anuir que na acção não se discutem questões sobre “relações jurídicas administrativas controvertidas…”. Isso é verdade. Mas também o art. 30º, nº2, al. 5), da LBOJ, entre as competências que reconhece ao TA, apenas se limita a incluir as acções sobre “questões que, em arbitragem voluntária sobre matérias de contencioso administrativo, a lei aplicável atribua aos Tribunais de Primeira Instância, quando não resulte o contrário da lei de processo”. Ora, se entendêssemos que ao Tribunal só subissem as acções que versassem sobre a matéria ou o fundo das questões para análise do direito substantivo, então teríamos que concluir que as leis de processo e de organização judiciária não contemplariam a discussão em tribunal de aspectos formais ou adjectivos. E teríamos aí, cremos nós, uma violação do princípio da impugnabilidade e do acesso ao direito plasmado nos arts. 38º, 39º e 39º-B, nº2, do DL 29/96/M.
Da mesma maneira, estaríamos, nessa hipótese, confrontados com uma violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado no art. 2º do CPAC, já que para uma impugnação anulatória prevista numa lei especial, o regime processual geral não contemplaria o respectivo meio processual tendente àquele fim.
Por conseguinte, quando o art. 97º, al. f), do CPAC alude a “outras relações jurídicas” e o art. 30º, nº2, al. 5), da LBOJ aflora “questões de contencioso administrativo”, fazem-no de uma maneira ampla (não restrita) ou abrangente, de modo a incluir todas as questões que surjam nesse domínio, directa ou indirectamente, sejam elas de índole formal ou substantiva. Sinceramente, é dessa maneira que achamos que os normativos devem ser lidos e interpretados1. Aliás, e só para citar um caso em que se não chega a apreciar verdadeiramente a relação jurídica substantiva do contrato em si mesmo, repare-se que no alcance das “acções sobre contratos administrativos” previsto no art. 113º, nº3, do CPAC (ver ainda art. 172º, do CPA) cabe a anulação de um contrato (ou a declaração de nulidade do contrato) assente, por exemplo, numa invalidade derivada da incompetência absoluta da entidade que pratica o acto de adjudicação ou da tomada por órgão colegial sem o quórum devido2.
Se é assim que pensamos, não nos parece que o art. 97º, al. f), seja automaticamente afastado da nossa atenção e que a apreciação do objecto da anulação da decisão arbitral possa seguir os termos do recurso jurisdicional ou, sequer, os do recurso contencioso. Será, tanto quanto nos parece, uma “acção” inominada, não especificada, que deverá observar o que está previsto no art. 99º do CPAC.
Por conseguinte, não vale a pena apelar a critérios da “unidade do sistema” se entre o sistema da arbitragem e o sistema dos tribunais judiciais há todo um fosso regimental a separá-los, com intuitos e regras muito específicos e diferenciados. Seria, aliás, anómalo, que fosse à luz do regime da arbitragem que se apurasse a competência para a representação processual no TA da RAEM.
*
Detenhamo-nos, agora, um pouco no disposto nos arts. 34º, nº2 e 38º, nºs 1 e 3 do DL nº 29/96/M e na LBOJ.
O art. 36º, nº1 dispõe que o TSI dispõe de competência para “julgar os recursos das decisões dos tribunais de primeira instância e das proferidas em processos de arbitragem voluntária susceptíveis de impugnação”.
Aliando esta disposição ao teor dos arts. 34º, nº2 e 38º, nºs 1 e 3 do DL nº 29/96/M, será que encontramos a resposta à nossa dúvida inicial?
Em nossa opinião, não. Sem prejuízo da necessidade de uma leitura correctiva da LBOJ ou de uma alteração desse ou de outros diplomas em matéria de competência dos tribunais (mormente, o CPC e o CPAC) de forma a se obter uma harmonização entre os diplomas, a verdade é que a norma transcrita tem um objectivo específico que não se mostra incompatível com a anulação. Expliquemo-nos.
Se as partes tiverem convencionado a possibilidade de impugnação da decisão por meio de um «recurso», ela pode ser feita, consoante os termos da convenção, para uma “instância arbitral de recurso” (art. 34º, nº1, cit.) ou para o TSJ3. (art. 34º, nº2, cit.).
Mas, se as partes nada convencionaram nesse sentido, então, a anulação só pode alcançar-se em «acção» fundada numa das causas formais estabelecidas no art. 38º e intentada no TA (art. 38º, nº1 e 39º-B, nº2).
Claro está que a designação dada pelo DL nº 29/96/M à pretensão anulatória («acções») poderia não ter que ser seguida necessariamente. Bastaria que a LBOJ ou até mesmo o CPAC não a permitissem. E nesse caso, poderíamos tentar a espécie genérica mais adequadamente próxima, como poderia ser a dos «outros processos», prevista no art. 10º do CPAC. Todavia, para se alcançar essa solução, seríamos obrigados a aceitar que os termos empregues pelo legislador da LBOJ no art. 30, nº2, al. 5) não dariam cobertura à tese da anulação pela via da acção face aos termos utilizados na norma atributiva de competência. Contudo, nós já atrás vimos que esse não é o bom caminho a percorrer. Tanto esta disposição, como o art. 97º, al. f), do CPAC permitem a interpretação que deixamos exposta.
*
Sendo assim, cremos que o caso tem solução na lei processual do contencioso administrativo.
Vamos supor, no entanto, que o caso não se poderia resolver pela via da «acção», mas sim pela via de um «outro processo». A verdade é esta: qualquer que fosse a designação desse meio concreto, nunca seria nenhuma das espécies específicas previstas no art. 4º, nº3 do CPAC, para os quais está prevista a possibilidade de ser designado um licenciado em direito para exercer o patrocínio da RAEM ou de qualquer outra pessoa de direito público. Nesse caso, estaríamos perante uma situação que está coberta pelas «restantes hipóteses» de que trata o nº 4, do mesmo art. 4º do CPAC, disposição que atribui sempre ao Ministério Público o patrocínio forense daquelas entidades.
Ou seja, qualquer que seja a classificação da espécie a seguir - seja pelas «acções» (parece ser o melhor entendimento), seja pelos «outros processos» - do que parece não haver dúvida é que, não estando o caso desta representação coberto pela previsão do nº3 do art. 4º do CPAC, o patrocínio haverá de pertencer ao Ministério Público por força do nº4, do mesmo artigo.
Andou bem, pois, neste aspecto a decisão recorrida.
*
Sustenta ainda a recorrente que a decisão recorrida se mostra contraditória e infundamentada. Mas, com o devido respeito, não concordamos.
Fundamentada está, por remissão para os termos do despacho anterior de fls. 228-234.
Será contraditória? Para a recorrente sim, na medida em que ela concorda que esta acção não está elencada nas espécies previstas processualmente no art. 97º do CPAC e no art. 30º da LBOJ, mas ao mesmo tempo insere-a no âmbito do art. 99º do CPAC na parte referente às acções que seguem os termos do processo civil de declaração na forma ordinária.
Bem. Contraditória não será; quando muito, o que pode haver nela é um vício de raciocínio. Efectivamente, o que cremos sobressair de tal afirmação (cfr. fls. 232/233) é que o M.mo juiz avista na formulação do art. 99º citado uma “regra geral” concernente às acções tipificadas capaz de abranger qualquer acção interposta no TA. Se assim o quis dizer, equivocado estará. Na verdade, o art. 99º limita-se a fazer uma estipulação quanto à tramitação a seguir no caso das acções especialmente previstas no Código. Só isso. O que falta ver é se alguma delas dá abrigo a esta acção concreta ou não.
Ora, o que o douto despacho recorrido fez foi vincular a RAEM à sua representação pelo MP, não face aos artigos do CPAC, nomeadamente ao art. 97º, al. f), mas à regra que emerge do art. 52º do CPC e 56º, nº1, e 60º, nº2, al.2), da LBOJ. É uma posição!
Nós, como vimos, entendemos que a intervenção do MP, não só se ancora nos dispositivos legais que o M.mo juiz cita, como também no art. 97º, al. f) citado.
E mesmo que se entenda este último como não sendo o inciso legal mais apropriado ao caso, nem por isso se acha que o leque estabelecido no art. 97º seja exaustivo, mas simplesmente exemplificativo, face à forma como o preceito se apresenta: “As acções têm por objecto, designadamente, o julgamento das questões sobre…” (destaque nosso).
A fundamentação do despacho sob censura, neste domínio, não pode acolher-se, sem, contudo, justificar a invalidação da sua parte decisória.
*
Defende a recorrente, subsidiariamente, que caso este TSI não sancione a posição nuclear que sustenta no recurso, ao menos deve a decisão em causa ser revogada no seu segmento dispositivo que determina a absolvição da instância.
Bem, a questão é de falta de representação judiciária ou de patrocínio forense, como já se viu.
Ora, em casos destes, não há lugar ao indeferimento liminar por não estar previsto no respectivo elenco legal (art. 394º do CPC). De maneira que, perante uma situação dessas, em que o A. não se faz representar por patrono – no caso da RAEM, pelo MP – o tribunal deve notificar a parte para suprir a falta. É que o art. 75º do CPC confere ao juiz o dever - sem distinção dos momentos processuais em que o implica nessa tarefa – de notificar a parte para constituir advogado (leia-se patrono, nos termos legais) em prazo certo, sob pena de absolvição da instância (no caso do autor), de não ter seguimento o recurso (no caso de recurso jurisdicional) ou de ficar sem efeito a defesa (no caso do réu).
É verdade que a instância – que se inicia com a propositura da acção e se considera proposta desde que a petição seja recebida na secretaria do tribunal, nos termos do art. 211º, nº1, do CPC – só produz efeitos em relação ao réu depois da citação (nº2, do art. 211º cit.). Mas, o certo é que a absolvição que se decreta ao abrigo do art. 75º do CPC já não é feita no despacho liminar, porque este foi realizado ou consumido, digamos assim, pelo despacho de aperfeiçoamento. Ultrapassado esse momento, não pode haver mais despacho liminar e, no que diz respeito a esta excepção dilatória (art. 413º, al. i), do CPC), a consequência já só pode ser a absolvição da instância4 (ver também art. 230º, nº1, al. c), do CPC).
Vale por dizer que o despacho impugnado não merece censura em nenhuma das suas vertentes.
***
IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas.
TSI, 28 / 11 / 2013
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Estive presente
Mai Man Ieng
1 E se não fosse “acção” fundada nesse normativo (art. 97º, al. f), do CPAC), sempre haveria de ser “outro processo” (art. 10º, 6º, do CPAC). “Outro processo” que haveria que socorrer-se das normas processuais mais próximas, mas não as do recurso jurisdicional, uma vez que da sentença de anulação proferida pelo TA já cabe recurso jurisdicional – esse, sim, jurisdicional – para tribunal superior (art. 39º, nº3, DL nº 29/96/M).
2 Neste sentido, Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, II, pág. 604-605.
3 Leia-se TSI: anexo IV, nº3, à Lei nº 1/1999. É nesse sentido que se entende o art. 36º, nº1, da LBOJ, quando permite a impugnação das decisões proferidas em processos de arbitragem voluntária. É preciso que essa impugnação tenha sido convencionada!
4 Cândida Pires, Lições de Processo Civil, I, FDUM, 2005, pág. 251; Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, pág. 372; Cândida A. Pires e Viriato Lima, Código de Processo Civil de Macau, I, pág. 249.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------