Processo nº 226/2012
(Autos de recurso civil e laboral)
Data: 5/Dezembro/2013
Assunto: Princípio do contraditório
Manifesta desnecessidade
SUMÁRIO
- O princípio do contraditório é um princípio fundamental do direito processual civil e que está consagrado no artigo 3º do Código de Processo Civil de Macau
- Em regra, não pode o juiz decidir questões de direito e de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, salvo caso de manifesta desnecessidade.
- Tendo a recorrente tomado conhecimento da decisão judicial que lhe ordenou trazer para Macau a sua filha menor que se encontrava nas Filipinas, o facto de ela não ter sido notificada dos requerimentos apresentados pelo recorrido pedindo ao Tribunal que se notificasse a recorrente para cumprir a sua obrigação, não constitui qualquer violação do princípio do contraditório, por a questão suscitada pelo recorrido nesses requerimentos não ter por base qualquer factualidade nova.
O Relator,
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Tong Hio Fong
Processo nº 226/2012
(Autos de recurso civil e laboral)
Data: 5/Dezembro/2013
Recorrente:
- A (Requerida)
Recorrido:
- B (Requerente)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A, Requerida nos autos de regulação do exercício do poder paternal a correr termos no Tribunal Judicial de Base da RAEM, inconformada com a decisão do Juiz a quo que indeferiu o pedido de anulação dos despachos constantes de fls. 95 e 102 do processo principal (leia-se fls. 69 e 73 dos autos de recurso), vem interpor o presente recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
- O presente recurso vem interposto do douto despacho do Tribunal Judicial de Base, de fls. 120 a 121 verso, que decidiu rejeitar o pedido de anulação dos despachos constantes de fls. 95 e 102;
- Imputando ao mesmo o vício de violação do princípio do contraditório, plasmado no artigo 3º do Código de Processo Civil de Macau, sendo que nos termos do referido preceituado legal, só nos casos expressamente previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida;
- O Tribunal a quo, achou por bem e bastante, notificar tão somente os advogados constituídos e não a recorrente na sua pessoa, como segundo nos parece seria mais correcto;
- A recorrente, até a presente data, não foi notificada pessoalmente dos despachos de fls. 95 e 102, até porque se encontra ausente desta RAEM;
- Ao não ser notificada pessoalmente do referido despacho, não lhe poderá ser assacada responsabilidade de natureza penal e criminal, na medida em que esta terá de ser algo subjectivo e inalienável;
- Tratando-se de um acto processual, para que a recorrente cumprisse uma ordem judicial, com a cominação de que o incumprimento do despacho de fls. 95 dos autos, a faria incorrer na responsabilidade criminal prevista no artigo 312º do Código Penal de Macau, só tinha algum sentido se feito na pessoa da mesma;
- Ao concluir pelo incumprimento do despacho de fls. 95, a notificação teria de ser pessoal, por implicar responsabilidade criminal;
- O Tribunal a quo atribui efeito meramente devolutivo ao presente recurso, sendo que fê-lo erradamente, porquanto está proibido por lei de praticar actos inúteis nos autos;
- O efeito devolutivo significa atribuir ao tribunal hierarquicamente superior o poder de rever a decisão recorrida, em vista a confirmá-la ou revogá-la;
- Vigorando entre nós o princípio da limitação dos actos, entende a Recorrente, que deverá ser alterada o efeito meramente devolutivo fixado ao presente recurso, evitando assim, a realização dos chamados actos inúteis e sem valor legal e probatório;
- Nestes termos, requer o recorrente que:
a) seja revogado o despacho de fls. 120 a 121v, 95 e 102 dos autos, por violação do princípio do contraditório;
Caso não se entenda desta forma,
b) sejam anulados todos os actos processuais a seguir a conferência, ordenando a notificação pessoal da recorrente, e,
c) alterado o efeito atribuído ao recurso, passando a ser suspensivo, com todas as implicações legais.
O recorrido apresentou as suas contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Por despacho do Exmº Relator, decidiu admitir o recurso e fixar o efeito devolutivo ao presente recurso.
Cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
A matéria pertinente para a decisão do presente recurso é o seguinte:
Realizou-se, no âmbito do processo principal de regulação do exercício do poder paternal, uma conferência, na qual estavam presentes a recorrente e o recorrido.
Nessa conferência, realizada em 16 de Maio de 2011, ambos confirmaram que a menor se encontrava nas Filipinas, prometendo a recorrente trazer a menor para Macau dentro de um mês, com a condição de o recorrido pagar as passagens de avião no montante de MOP$6.000,00. (cfr. fls. 49 dos presentes autos)
A 20 de Maio de 2011, o Tribunal a quo ordenou que se notificasse a recorrente para trazer a filha para Macau dentro de um mês. (cfr. fls. 50 dos presentes autos)
No dia 2 de Junho de 2011, a recorrente pediu ao Tribunal a quo a prorrogação do prazo não inferior a 90 dias para trazer a menor para Macau.
A 7 de Junho de 2011, a recorrente, através de advogado, juntou procuração aos autos. (cfr. fls. 51 a 54 dos presentes autos)
Notificado o recorrido para pronunciar sobre o requerimento da recorrente apresentado em 2 de Junho, o mesmo respondeu com requerimento a pedir ao Tribunal que se notificasse a recorrente para no prazo de 15 dias trazer a menor para Macau, sob pena de cometer um crime de desobediência qualificada, bem como fornecer todos os elementos necessários para o recorrido poder proceder à marcação das passagens de avião. (cfr. fls. 55 a 60 dos presentes autos)
Ouvido o Ministério Público, decidiu o Tribunal a quo, por despacho de 20 de Junho de 2011, notificar a recorrente para trazer a filha para Macau dentro de 15 dias. (cfr. fls. 63 dos presentes autos)
A 19 de Julho de 2011, o recorrido apresentou um requerimento, pedindo para notificar a recorrente para, no prazo máximo e improrrogável de 15 dias, trazer a menor para Macau, sob pena de ela cometer um crime de desobediência, e fornecer todos os elementos necessários à marcação das passagens de avião. (cfr. fls. 64 a 68 dos presentes autos)
A recorrente não foi notificada de tal requerimento, tendo decidido o Tribunal a quo, em 25 de Julho de 2011, após ouvido o Ministério Público, notificar a recorrente para trazer a menor para Macau em 15 dias e fornecer ao Tribunal as informações solicitadas pelo recorrido. (cfr. fls. 69 dos presentes autos)
Foram os mandatários das partes notificados do referido despacho.
A 18 de Agosto de 2011, novo requerimento foi apresentado pelo recorrido, pedindo para notificar mais uma vez a recorrente para cumprir o despacho de 25 de Julho de 2011, sob pena de cometer um crime de desobediência. (cfr. fls. 70 a 72 dos presentes autos)
A recorrente também não foi notificada de tal requerimento, tendo decidido o Tribunal a quo, em 9 de Setembro de 2011, após ouvido o Ministério Público, ordenado que se notificasse a recorrente para cumprir o despacho de 25 de Julho de 2011, sob pena de poder incorrer na responsabilidade criminal previsto nos termos do artigo 312º do Código Penal de Macau. (cfr. fls. 73 dos presentes autos)
Do despacho foi notificado o mandatário da recorrente, tendo este suscitado posteriormente junto do Tribunal a quo um incidente, alegando que não foi dada à recorrente a possibilidade de exercer o direito do contraditório antes de serem proferidos os despachos datados de 25 de Julho e 9 de Setembro de 2011, incidente esse que foi indeferido pelo Tribunal a quo em 9 de Novembro de 2011. (cfr. fls. 75 a 76 dos presentes autos)
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É perante a matéria de facto acima descrita que se vai conhecer do recurso, tendo em conta as respectivas conclusões que delimitam o seu âmbito.
Prevê-se no artigo 589º, nº 3 do Código de Processo Civil de Macau, “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”.
Com fundamento nesta norma tem-se entendido que se o recorrente não leva às conclusões da alegação uma questão que tenha versado na alegação, o tribunal de recurso não deve conhecer da mesma, por se entender que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.1
A questão da recorribilidade e do efeito do recurso já foi oportunamente apreciada pelo Relator, daí que a única questão que se coloca nos presentes autos recursórios é saber se houve violação do princípio do contraditório no momento em que o Tribunal a quo proferiu os despachos datados de 25 de Julho e 9 de Setembro de 2011.
Trata-se de um princípio fundamental do direito processual civil e que está consagrado no artigo 3º do Código de Processo Civil de Macau, estatuindo-se que não pode o juiz decidir questões de direito e de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, salvo caso de manifesta desnecessidade.
Pretendeu-se evitar as chamadas decisões-surpresa, e que as partes são surpreendidas com decisões sobre matérias que nunca estiveram em discussão no processo.2
Nos autos de regulação do exercício do poder paternal a correr termos no TJB, realizou-se uma conferência entre a recorrente e o recorrido, tendo aquela prometido trazer a menor das Filipinas para Macau dentro de um mês, com a condição de o recorrido pagar as passagens de avião no montante de MOP$6.000,00.
Face à posição manifestada pela recorrente naquela conferência, o Tribunal a quo ordenou em 20 de Maio de 2011 que se notificasse a recorrente para trazer a filha para Macau dentro de um mês.
No entanto, a recorrente não cumpriu aquela ordem judicial nem deu qualquer justificação da falta de cumprimento da mesma, tendo o recorrido, por esta razão, insistido por várias vezes junto do Tribunal a quo, a pedir que se notificasse a recorrente para no prazo certo trazer a menor para Macau e fornecer todos os elementos necessários para o recorrido poder proceder à marcação das passagens de avião, sob pena de ela cometer um crime de desobediência qualificada.
Invoca a recorrente que não lhe foi dada a oportunidade para se pronunciar sobre os requerimentos formulados pelo recorrido, na sequência dos quais foram proferidos os despachos pelo Tribunal a quo em 25 de Julho de 2011 e 9 de Setembro de 2011, tendo violado com essa situação o seu direito do contraditório.
Salvo o devido respeito por melhor entendimento, entendemos não assistir razão à recorrente.
De facto, já a partir da conferência realizada em 6 de Maio de 2001, a recorrente manifestou a sua concordância em trazer a filha do casal para Macau, tendo a mesma notificada por despacho de 20 de Junho de 2011, para o mesmo efeito.
Ou seja, a recorrente sabia desde o início que teria de cumprir a ordem do Tribunal a quo, sendo assim os posteriores requerimentos apresentados pelo requerido pedindo a notificação da recorrente para cumprir a sua obrigação não deixam de ser apenas corolário da situação de incumprimento em que a recorrente colocou, ao obstaculizar o regresso da menor a Macau.
Sendo assim, neste caso concreto, pese embora os dois requerimentos do recorrido que antecedem os despachos do Tribunal a quo não tenham sido dado conhecimento à recorrente, entendemos desnecessária essa prévia notificação, pois seria redundante para o Tribunal notificar a recorrente para ela pronunciar-se sobre o pedido de notificação e depois é que se decide dever ou não ser notificada.
No fundo, o pedido formulado pelo recorrente nos seus dois requerimentos em causa não consistem em questão nova para a recorrente, nem o Tribunal a quo decidiu de novo. Em termos pragmáticos, se achar ela não estar em condições de cumprir a ordem do Tribunal a quo, deveria apresentar a sua justificação logo que fosse notificada, mas não foi isso que aconteceu.
O direito a ser ouvido, consagrado nos termos do artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil de Macau, tem como limite natural a pronúncia sobre uma questão nova, inconfigurável como um mero ensejo de repetir o já alegado anteriormente.
Como acima se referiu, as notificações ordenadas por despachos do Tribunal a quo de 25 de Julho de 2011 e 9 de Setembro de 2011 não tiveram por base qualquer factualidade nova, pelo que, sendo manifestamente desnecessária a prévia notificação da recorrente, inexistia qualquer violação do princípio do contraditório.
Quanto à questão de saber se é um acto processual susceptível de fazer incorrer a recorrente na responsabilidade criminal no tocante ao crime de desobediência, já não é para nós sede própria para a sua apreciação.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
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Macau, 5 de Dezembro de 2013
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Tong Hio Fong
(Relator)
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Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, página 663
2 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, página 16
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Processo 226/2012 Página 1