Proc. nº 221/2009
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 13 de Fevereiro de 2014
Descritores:
-Art. 3º do CPC
-Princípio do contraditório
-Nulidade processual
-Imposto complementar de rendimentos
-Recorribilidade contenciosa
SUMÁRIO:
I - O princípio do contraditório (cfr. art. 3º, do CPC e 61º e 70º do CPAC) deve ser respeitado, não apenas com o propósito de evitar uma decisão-surpresa com a qual eventualmente o impetrante não contasse, mas também enquanto modo de ponderação por parte do tribunal de todas as posições em confronto e, desse jeito, garante de uma decisão mais justa, que sopese todas as teses em confronto e estude o caso segundo as mais variadas e plausíveis soluções de direito.
II - A não observância do princípio pode representar a nulidade do art. 147º do CPC, na medida em que se conclua que a irregularidade possa influenciar no exame e decisão da causa.
III - De qualquer maneira, a existir, será nulidade processual, que deve ser arguida perante o juiz no prazo de 10 dias, nos termos dos arts. 149º, 151º, nº1 e 152º, nº3,do CPC.
IV - Da fixação do rendimento colectável para efeito do imposto complementar de rendimentos cabe “impugnação” através de reclamação para a Comissão de Revisão (arts. 44º, nº4 e 80º, nº1, do RICR), que tem efeito suspensivo (art. 44º, nº3, do RICR) e de cuja deliberação, por ser considerada acto definitivo, cabe recurso contencioso para o tribunal administrativo (art. 80º, nº2, 81 e 82º, do RICR).
V - A reclamação graciosa que se segue à deliberação referida em IV supra é deduzida perante a mesma Comissão (art. 77º, nº1, RICR) e tem efeito meramente devolutivo (art. 78º, nº1, RICR), não interrompendo o prazo do recurso contencioso (art. 84º, nº2, RICR), tal como sucede no regime geral da reclamação administrativa nos termos do art. 150º, nº2, do CPA.
VI - A deliberação que vier a ser produzida no âmbito da reclamação graciosa não é acto definitivo e, relativamente à deliberação referida em IV, caso a venha a manter, é meramente confirmativa e, portanto, irrecorrível contenciosamente.
Proc. Nº 221/2009
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
“A (HK) Limited”, com sede na Av. da XXX, nº XXX-XXX – X, X, X do Edifício XX, em Macau, recorreu da deliberação da Comissão de Revisão do Imposto Complementar de 19/05/2008, que indeferiu a reclamação apresentada no dia 27 de Fevereiro de 2008 e manteve o valor da matéria colectável relativa ao exercício de 2005 em cerca de Mop$ 17.315.184,00, liquidando adicionalmente o imposto complementar no montante de Mop$ 235.861,00.
*
Na oportunidade foi proferida sentença datada de 25/11/2008 que “negou provimento ao recurso”1, por ter considerado que o acto objecto do recurso era irrecorrível contenciosamente.
*
Dessa decisão recorre jurisdicionalmente a recorrente contenciosa, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A. Salvo melhor Juízo, melhor entendimento e o respeito por opinião em sentido inverso, a douta Sentença recorrida pelo Mmo Tribunal Administrativo (Tribunal recorrido) é ilegal e parte de pressupostos errados, de facto e de Direito.
B. A Recorrente nunca foi notificada ou informada de qualquer diligência, peça processual ou acto da contraparte, apenas sendo pela primeira notificada, no âmbito do Mmo Tribunal recorrido (o recurso interposto em 28 de Julho de 2008 junto do Tribunal Administrativo), com a douta Sentença recorrida de 25 de Novembro de 2008;
C. Tal decisão-surpresa por parte do Mmo Juiz a quo é violadora, em maior ou menor medida, do Princípio do Contraditório, designadamente, consagrado no CPC (artigo 3º), no CPAC (artigo 70º) e no CPA (artigos 5º, 8º, n.º 2, alínea a), 9º, 10º e 14º).
D. A douta Sentença é, pois, ilegal e violadora da lei, dada a preterição de formalidades essenciais à justa composição do litígio, não tendo sido dada a oportunidade e a possibilidade da aqui Recorrente responder ou replicar ao que doutamente terá sido entendido e alegado pela Ilustre Administração Fiscal de Macau.
E. E, mesmo que o douto Visto do Digníssimo Magistrado do Ministério Público não tenha necessariamente de ser notificado às partes, também não foi nunca a Recorrente informada da posição daquela Alta Instância da R.A.E.M.
F. A decisão da douta Comissão de Revisão do Imposto Complementar de Rendimentos (CRICR) que proferiu, em 19 de Maio de 2008, uma decisão que manteve a sua anterior deliberação de 3 de Março de 2008, não é um acto meramente confirmativo.
G. O recurso interposto pela ora Recorrente em 28 de Julho de 2008 não é, nem extemporâneo nem se mostra atingido pela excepção peremptória de caducidade, porque a própria notificação da deliberação de 19 de Maio de 2008 apenas foi recebida pela Recorrente em 12 de Junho de 2008.
H. Ou seja, e ao contrário do que consta da página 5 da douta ilustre Sentença recorrida, “o direito ao recurso [não está] caducado em Junho de 2008”.
I. É verdade que existe, à partida, identidade de sujeitos, de objecto e de decisão, mas, é expressamente garantido o direito ao recurso judicial/contencioso, na segunda e na primeira deliberação, onde se indicam as normas a que a Recorrente deveria invocar para Recorrer,
J. Ou sejam, constam as normas dos artigos, nas notificações/decisões de 3 de Março de 2008 e de 19 de Maio de 2008, 68º e seguintes do CPA e número 2 do artigo 80º do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos.
K. Compulsando o artigo 80º do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos, não consta, nem está expressamente previsto que a reclamação para a CRICR faz precludir o Direito ao Recurso.
L. O número 1 do artigo 80º do Regulamento do Imposto Complementar (Regulamento) preceitua que não haverá reclamação graciosa nem recurso hierárquico mas somente reclamação para a Comissão de Revisão pela forma e nos prazos referidos no artigo 44º [20 dias sobre a data do registo do aviso postal enviado ao contribuinte, com efeito suspensivo e cuja apreciação da mesma reclamação cabe à Comissão de Revisão].
M. O número 2 do artigo 80º do Regulamento do Imposto prevê que “da deliberação cabe recurso contencioso”.
N. Pelo que, o facto da ora Recorrente ter reclamado, tal não preclude o direito ao recurso, como consta, de resto, no teor da notificação de 19 de Maio de 2008, recebida pela primeira em 16 de Junho de 2008.
O. Se a Lei permite o recurso e a própria administração fiscal na segunda deliberação garante à ora recorrente, o direito ao recurso, o mesmo não pode deixar de ser conhecido e o fundo do mesmo (mérito ou demérito do aí alegado) decidido pelas instâncias judiciais.
P. Assim, defende-se na douta Sentença recorrida que a deliberação de 19 de Maio de 2008 proferida pela Comissão de Revisão do Imposto Complementar de Rendimentos era apenas um acto meramente confirmativo, insusceptível de recurso.
Q. Não é assim que a ora Recorrente, modestamente, vê o teor da decisão e a notificação da mesma.
R. Como defende um Ilustre Autor, mesmo tratando-se de um acto confirmativo, existem casos em que os mesmos são impugnáveis contenciosamente,
S. Sabendo-se que, em regra, os actos confirmativos não são recorríveis. T. Passando a ora Recorrente a transcrever:
U. “Diferentes são aqueles casos em que a lei admite que, possa reclamar-se de um a. a. definitivo perante o seu autor, o qual fica juridicamente vinculado a proceder a um reexame da situação para averiguar se a ponderação de interesses, que o acto confirmado traduz é, do ponto de vista factual e jurídico, oportuna e legal.”
V. Continua o mesmo reputado e ilustre Autor, no parágrafo seguinte: “Tendo-se reapreciado ou reavaliado - ao contrário do que acontecia na hipótese anterior - a situação concreta e os interesses nela envolvidos, estamos perante a prática de um novo acto administrativo cujo efeito pode consistir na renovação do acto anterior, mas também na sua reforma ou revogação.”
W. “Quer dizer que, neste caso, o acto confirmativo, envolvendo uma nova ponderação e manifestação de vontade da Administração, é um acto diferente do acto confirmado, mesmo que, eventualmente, os dois correspondam em todos os seus elementos.”.
X. “Daí que, o acto confirmativo possa ser objecto de impugnação, assim como o pode ser o acto confirmado: só que, enquanto a anulação do acto confirmativo abrange o acto confirmado, a anulação deste deixa intocado o acto confirmativo, o qual subsiste na ordem jurídica.” - Dr. Mário Esteves de Oliveira, página 412, “Direito Administrativo”, I Volume, Coimbra, 1980.
Y. Daí que, não tendo recorrido em 3 de Março de 2008, não ficou caducado o Direito ao recurso da Recorrente, pois, o prazo de 45 dias (artigo 7º da Lei n.º 15/96/M, de 12 de Agosto) apenas se deverá contabilizar a partir da notificação da Recorrente da deliberação de 19 de Maio de 2008,
Z. O que apenas ocorreu, sublinhe-se, em 16 de Junho de 2008.
AA. Pelo que o recurso interposto em 28 de Julho de 2008 era e é tempestivo.
BB. Assim, em conclusão, requer-se a V. Exas do Mmo Tribunal de Segunda Instância, Tribunal recorrente, que revoguem a douta Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo, ilustre Tribunal recorrido,
CC. Assim apreciando a substância e a matéria alegada no recurso interposto em 28 de Julho de 2008 da decisão da Administração Fiscal de Macau de condenar a ora Recorrente no pagamento da quantia de MOP $ 235.861,00 (duzentas e trinta e cinco mil e oitocentas e sessenta e uma patacas),
DD. A título de adicionamento do Imposto Complementar de Rendimentos para o ano fiscal de 2005,
EE. Considerando improcedentes as duas excepções - a irrecorribilidade do acto e a caducidade do direito ao recurso - [página 1 e seguintes da Sentença recorrida] - e determinando o conhecimento e a procedência do recurso então interposto pela Recorrente.
FF. No mais, fazendo, V. Exas do Mmo Tribunal ad quem, a já habitual e costumada Justiça!».
*
A Comissão de Revisão apresentou resposta ao recurso, que concluiu da seguinte forma2:
«54. Delimitada a matéria de facto por referência à Douta Sentença do Tribunal a quo e delimitado também que está o objecto do recurso contencioso interposto pela Recorrente contra a deliberação da CRICR de 19 de Maio de 2008,
55. Que decidiu confirmar a deliberação do mesmo órgão, datada de 3 de Março do mesmo ano, mantendo a matéria colectável da Recorrente para o ano fiscal de 2005, em MOP 17.315.184,00,
56. Cumpre afirmar, na mesma linha de raciocínio e argumentos legais já utilizados pela Recorrida em sede de contestação que, a deliberação (de 19 de Maio de 2008) que a Recorrente pretende ver anulada é irrecorrível.
57. Isto porque, limitando-se esta última meramente a confirmar e manter a anterior deliberação (de 3 de Março de 2008),
58. E sem que haja algo de novo susceptível de provocar uma autónoma lesão de direitos (da Recorrente), se nada de novo se acrescenta ao acto administrativo anterior, limitando-se a ser uma reprodução do acto confirmado e,
59. Presentes os pressupostos de identidade de sujeitos, objecto, conteúdo, decisão e fundamentação,
60. Então a deliberação de 19 de Maio de 2008 é contenciosamente irrecorrível.
61. Restando à Recorrente impugnar contenciosamente a deliberação de 3 de Março de 2008.
62. E também aqui a sua pretensão não seria atendível,
63. Desta vez por caducidade do direito ao recurso, é que
64. A Recorrente apresentou junto do Tribunal a quo a sua pretensão em 28 de Julho de 2008,
65. Mas deveria tê-lo feito até ao dia 12 de Junho de 2008, terminus do prazo de 45 dias que a lei lhe concede.
66. Modestamente entende a Recorrida que a Recorrente não está devidamente esclarecida,
67. Porque pretende recorrer de um acto administrativo que, do ponto de vista jurídico, é irrecorrível ou, a considerar-se que o fazia com referência à deliberação de 3 de Março de 2008, já há muito o seu direito estava caduco.
Termos em que,
Deve a Douta Sentença do Tribunal a quo ser mantida negando-se provimento ao recurso que ora se contesta, com as legais consequências».
*
O digno Magistrado do MP opinou no sentido do improvimento do recurso, nos seguintes termos:
«Toda a argumentação expendida pela Recorrente nas suas alegações se encontra expressamente rebatida e contrariada na douta sentença ora em crise, com cujo conteúdo e conclusões nos encontramos plenamente de acordo e, por ocioso, nos dispensaremos de reproduzir, não se nos afigurando, pois, que a mesma se encontre eivada de qualquer vício, designadamente dos que assacados lhe são por aquela.
Vejamos:
A A. Fiscal fixou a matéria colectável da Recorrente, para efeitos de Imposto Complementar em finais de 2007, apresentando esta reclamação respectiva em 19/12/07 para a CRICR, a qual, por deliberação de 3/3/08 decidiu não dar provimento à mesma.
Inconformada, reclamou a Recorrente em 7/5/08, tendo a CRICR, por deliberação de 17/5/08 negado, de novo, provimento à sua pretensão.
Posta, desta forma sintética a situação em escrutínio, alcança-se, facilmente, que:
- a 1ª reclamação, dirigida à Comissão de Revisão, foi efectuada, como não podia deixar de ser, nos precisos termos do nº 1 do artº 80º do RICR, que em tudo se assemelha a um autêntico recurso hierárquico necessário ;
- Da decisão desta Comissão (de 31/3/08) cabia recurso contencioso, como cristalinamente decorre do nº 2 do normativo citado, tratando-se, pois, inequivocamente, de acto definitivo e executório;
- Ao não interpor tal tipo de recurso no prazo legal permitiu a Recorrente que a situação se consolidasse, formando-se caso decidido ou resolvido sobre a matéria,
- Já que, como é bom de ver, a reclamação graciosa que deduziu contra o próprio órgão tem, nos precisos termos do artº 79º, efeito meramente devolutivo, não interrompendo o prazo para o recurso contencioso (nº 2 do artº 84º).
Por outra banda, a deliberação da Comissão de Revisão de 19/5/08 limitou-se, em boa verdade, a manter, sem alteração, a situação jurídica já definida pela deliberação do mesmo órgão de 3/3/08, não introduzindo qualquer modificação, nada tirando ou acrescentando ao conteúdo respectivo.
Trata-se, pois, de acto meramente confirmativo, com identidade de sujeitos, objecto, e decisão, que se não traduz em qualquer ofensa aos direitos ou interesses legalmente protegidos da administrada e, como tal, não é contenciosamente impugnável.
Sendo assim, haverá que concluir que, por uma banda, a Recorrente com a sua omissão em termos de impugnação contenciosa, deixou que se consolidasse, através da deliberação de 3/3/08 (este, sim, o acto lesivo e impugnável) a definição da sua situação jurídico/fiscal, sendo que, por outro lado, a “resposta” à sua reclamação datada de 19/5/08, porque meramente confirmativa daquela, se tomara irrecorrível contenciosamente.
Ou seja, em termos simples e sintéticos, a deliberação de 19/5/08 não é impugnável contenciosamente, por meramente confirmativa e relativamente à de 3/3/08 caducou já o direito de recurso respectivo, a tal não obstando a circunstância de, aquando da notificação daquela 20 deliberação se ter erroneamente informado a interessada da possibilidade de interposição de recurso contencioso: trata-se disso mesmo, de erro na informação prestada que, podendo responsabilizar quem o comete, não detém, como é óbvio, a virtualidade de transformar em impugnável acto que o não seja.
Tudo razões que nos levam a concordar com a douta sentença em crise, devendo, pois, a nosso ver, ser negado provimento ao presente recurso».
*
Cumpre decidir.
***
II - Os Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
«- Em 30 de Novembro de 2007, a Administração Fiscal fixou o rendimento colectável do imposto complementar da Recorrente para o exercício de 2005 no montante de MOP$17,315,184.00;
- Não conformada com a fixação da matéria colectável, a Recorrente apresentou a reclamação à CRICR, em documento datado de 19 de Dezembro de 2007;
- Em 3 de Março de 2008, por deliberação da CRICR decidiu em não dar provimento à reclamação, agravando a colecta em 0.1 %, a título de custas;
- Deliberação essa que foi notificada à Recorrente por oficio de 22 de Abril de 2008;
- Inconformada com a deliberação supra, a Recorrente apresentou reclamação graciosa em 7de Maio de 2008;
- Em 19 de Maio de 2008, por deliberação da CRICR negou provimento à pretensão da Recorrente;
- Deliberação essa que foi notificada à Recorrente em 12 de Junho de 2008».
***
III - O Direito
1- Da violação do princípio do contraditório
Acha a recorrente que nos presentes autos não foi observado o princípio do contraditório e que, por tal motivo, a sentença sob escrutínio, é ilegal.
E isto por:
- Não lhe ter sido comunicado o teor da contestação e, por conseguinte, não se ter podido manifestar sobre a matéria exceptiva dela constante;
- De não ter tomado conhecimento e de lhe não ter sido dada oportunidade de se pronunciar sobre o parecer do Ministério Público a respeito da posição que tomou quanto à irrecorribilidade do acto e quanto à eventual caducidade do direito de recurso.
Pois bem. O princípio do contraditório (cfr. art. 3º, do CPC e 61º e 70º do CPAC) deve ser respeitado, não apenas com o propósito de evitar uma decisão-surpresa com a qual eventualmente o impetrante não contasse, mas também enquanto modo de ponderação por parte do tribunal de todas as posições em confronto e, desse jeito, garante de uma decisão mais justa, que sopese todas as teses em confronto e estude o caso segundo as mais variadas soluções plausíveis de direito. Ou seja, enquanto defende os interesses particulares envolvidos, ao mesmo tempo serve de fiança e confiança numa maior prudência no estudo e decisão do caso concreto, beneficiando o interesse público da realização da justiça.
Sem se perder mais tempo, estamos inteiramente de acordo com a arguição da recorrente. Efectivamente, compulsados os autos, verifica-se que de nenhuma daquelas intervenções teve a recorrente conhecimento, nem oportunidade para sobre elas opinar ou para as contrariar ou rechaçar.
*
A omissão verificada pode representar uma nulidade do art. 147º do CPC, na medida em que se conclua que a irregularidade possa influenciar no exame e decisão da causa.
Podemos, no entanto, dizer que nem sempre essa será a consequência processual. Na verdade, em todos os casos em que a omissão não traga essa carga negativa de influência no sentido decisório, ela não passará de mera irregularidade, sem efeitos invalidantes. Dependerá de caso para caso.
Ou seja, sempre que a intervenção da parte possa ter alguma influência na decisão do caso, com os seus argumentos jurídicos, ou com o seu suporte fáctico com o qual o tribunal, por desconhecimento, ainda não contasse, então é de supor razoavelmente que a sua intervenção no quadro do contraditório seria fundamental para a tomada de decisão num ou noutro sentido e que, por isso, poderia influenciar a decisão da causa.
Mas, diferentemente, se a intervenção, qualquer que ela fosse, num juízo de prognose seguro, em nada pudesse influenciar a convicção do juiz na decisão a tomar, então a inobservância do princípio do contraditório deixa de ter força relevante no sentido anulatório. Bom exemplo disso é o caso presente em que, na nossa óptica, a solução está inscrita na lei de forma imperativa, sem necessidade do auxílio que as partes possam concretamente prestar.
Em todo o caso, e mesmo que se não concorde com a conclusão acabada de tirar, nem por isso se poderiam extrair efeitos invalidantes da omissão. É que, mesmo que se considerasse estarmos perante uma nulidade, ela não deixaria de ser nulidade processual. Quer dizer, apesar de a omissão verificada ter sido contemporânea da própria sentença – dito de outro modo, apesar de apenas se detectar a omissão no momento em que a sentença é proferida (pois até esse instante sempre podia o juiz fazer cumprir o contraditório), a verdade é que ela não torna nula a sentença. O caso não se resolve, pois, pelo art. 571º do CPC. A irregularidade ocorre por o juiz ter avançado para a sentença sem antes ter dado oportunidade à recorrente de se pronunciar sobre as excepções. Mas, nesse caso, a nulidade, a verificar-se, é de tipo processual.
Ora, nessa hipótese estando a situação coberta pelo disposto nos arts 149º, 151º, nº1 e 152º, nº3,do CPC, dispunha a recorrente do prazo de 10 dias para a arguir perante o juiz3, antes mesmo do recurso a interpor da sentença, logo que foi notificado dela e em que se dá conta da arguição da matéria exceptiva sem até esse instante ter tido conhecimento dela. E isso o não fez.
Significa isto que não pode proceder a imputada invalidade.
*
2 - Do mérito do recurso
Está agora em causa a decisão da 1ª instância que:
a) Considerou irrecorrível contenciosamente a deliberação recorrida de 19/05/2008, acto objecto do recurso contencioso, que considerou meramente confirmativo; mas que
b) Mesmo para a hipótese de se entender que o recurso contencioso também incide sobre a deliberação de 3/03/2008, considerou estar caducado o direito de recorrer, face ao prazo de 45 dias previsto no art. 7º da Lei nº 15/96/M.
*
A situação do caso é esta:
a) A Administração Fiscal fixou em 30/11/2007 o rendimento colectável da recorrente para o exercício de 2005 no valor de Mop$ 17.315.184,00 (cfr. fls. 146 do p.a.);
b) Notificada, em 19/12/2007 a recorrente impugnou esta fixação através de reclamação para a Comissão de Revisão do Imposto Complementar de Rendimentos (doravante CRICR), nos termos do art. 44º do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos Doravante RICR) (fls. 154, do p.a.);
c) A CRICR deliberou, em 3/03/2008, não dar provimento à reclamação mantendo a matéria colectável anteriormente fixada (cfr. fls. 163-166 do p.a.);
d) Desta deliberação, que foi notificada à recorrente em 22 de Abril de 2008, foi por ela mesma apresentada reclamação graciosa que deu entrada em 7/05/2008 (fls. 173-175 do p.a.).
e) A mesma Comissão, em 19/05/2008, deliberou indeferir a reclamação graciosa e manter o anterior acto.
E, sendo assim, tem a douta sentença razão na primeira das asserções.
Com efeito:
1 - Da fixação do rendimento colectável cabe “impugnação” através de reclamação para a Comissão de Revisão (cfr. arts. 44º, nº4 e 80º, nº1, do RICR).
2 - Esta reclamação tem efeito suspensivo (art. 44º, nº3, do RICR).
Significa que a decisão reclamada não pode ser dada à execução pela Administração Fiscal e que precisa de esperar pelo resultado final e definitivo da deliberação da Comissão de Revisão. É assim, aliás, que sucede com qualquer acto administrativo de que não caiba recurso contencioso, face ao disposto no art. 150º, do CPA.
3 - A deliberação tomada nessa sede em 3/03/2008 é considerada acto definitivo de que cabe recurso contencioso para o tribunal administrativo (art. 80º, nº2, 81 e 82º, do RICR).
4 - A reclamação graciosa que se seguiu àquela deliberação é deduzida perante a mesma Comissão (art. 77º, nº1, RICR) e tem efeito meramente devolutivo (art. 78º, nº1, RICR), não interrompendo o prazo do recurso contencioso (art. 84º, nº2, RICR), tal como sucede no regime geral da reclamação administrativa nos termos do art. 150º, nº2, do CPA.
Serve esta incursão normativa, apresentada sob a forma de breve resenha, para esclarecer que a reclamação graciosa tinha apenas em vista a tentativa de obter uma decisão favorável no seio da Administração Fiscal, mas que não invalidaria, de maneira nenhuma, a necessidade de recorrer contenciosamente da deliberação anterior da Comissão de Revisão. Esse, sim, é que era o acto administrativo definitivo e executório, a última palavra da Administração Fiscal, tal como decorre sem sombra de dúvida do conjunto de normas citado, e, consequentemente, o único recorrível contenciosamente.
*
Sendo assim, isto é, se a deliberação da Comissão de Revisão de 3/03/2008 é acto definitivo e executório, a deliberação posterior da mesma Comissão, datada de 19/05/2008, de que foi interposto o recurso contencioso, nada veio acrescentar ou tirar ao que o precedeu. Não passa, pois, de acto meramente confirmativo4 e, por isso, irrecorrível contenciosamente (cfr. art. 28º, CPAC).
Andou bem, pois, a sentença recorrida em não apreciar a bondade do acto sindicado.
*
Mas, a sentença também disse que “mesmo que a recorrente entendesse que o presente recurso também incide sobre a deliberação da CRICR datada de 3 de Março de 2008, cedo também se encontra o direito a recurso caducado”.
Esta questão mereceu algumas considerações alegatórias no recurso interposto pela recorrente.
Todavia, e salvo o devido respeito, não cremos que o objecto do recurso contencioso abranja também a deliberação de 3/03/2008. Aliás, o juiz do T.A., a este respeito, apesar de não ter disso necessidade, limitou-se a um mero exercício intelectual fundado numa hipotética ou condicional impugnação contenciosa daquela deliberação. Não aceitou - pelo menos não o disse expressamente – que o acto de 3/03/2008 também estava a ser objecto do recurso. Aliás, se o tivesse aceitado, haveria algo mais a dizer, nomeadamente a respeito da possibilidade de cumulação de impugnações. E não disse. De resto, o objecto do recurso foi por si mesmo definido no cabeçalho da sentença (fls. 143) como sendo a “deliberação da Comissão de Revisão… datada de 19 de Maio de 2008, que tinha confirmado o rendimento colectável de…fixado pela mesma comissão em 3 de Março de 2008…” (negrito nosso).
Já agora e para que não restem dúvidas no espírito da recorrente sobre esta matéria, sempre nos cumpre dar nota de que a contagem do prazo para recorrer da deliberação de 3/03/2008 se deveria começar a contar a partir da notificação do ofício nº 33/EQIJ/CRA/2008 que lhe diz respeito e não da notificação da deliberação 19/05/2008. Não percebemos até a razão por que, tratando-se de actos distintos que mereceram notificações separadas e autónomas, a contagem do prazo para a notificação do primeiro apenas haveria de se começar a contar a partir da notificação do segundo. E nessa perspectiva, sim, se a intenção da recorrente fosse recorrer também do acto de 3/03/2008, logicamente já estaria caducado o respectivo direito no momento em que apresentou na secretaria do T.A. a petição de recurso, ou seja, em 28/07/2008. E nesse aspecto não se pode censurar a sentença sob censura.
Mas, repetimos, essa questão está fora do objecto do recurso contencioso, fora do alcance da sentença recorrida (embora não pareça) e fora, por conseguinte, do objecto do recurso jurisdicional.
*
Face ao exposto, o recurso não pode colher êxito.
***
IV - Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida, por irrecorribilidade contenciosa da deliberação da Comissão de Revisão do Imposto Complementar de Rendimentos de 19/05/2008.
Custas pela recorrente, com taxa de Justiça em 7 UC.
TSI, 13 de Fevereiro de 2014
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Presente
Victor Manuel Carvalho Coelho
1 Não se pode tomar ao pé da letra a terminologia utilizada, por desadequação, porquanto o T.A. não conheceu o fundo ou o mérito do recurso, antes tomou uma decisão de forma de cariz meramente adjectivo. Devemos interpretar a expressão, como sendo de “rejeição” do recurso.
2 Ajeitou as conclusões de maneira a aproveitar a numeração sequencial do próprio articulado de resposta.
3 Ac. TUI, de 26/09/2012, Proc. nº 59/2012.
4 Neste sentido, ver, por exemplo, M. Caetano, in Manual de Direito Administrativo, I, pág. 452; tb. M. Esteves de Oliveira, P. Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, in Código de Procedimento Administrativo anotado, 2ª ed., pág. 770. Na jurisprudência local, especificamente sobre assunto idêntico, ver Ac. TSI, de 16/01/2014, Proc. nº 20/2013; na jurisprudência comparada, entre outros, os Acs. do STA de 24/02/99, Rec. n° 31160 e de 23/01/2001, Rec. n° 46653.
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