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Processo nº 325/2011
(Recurso Cível)

Relator: João Gil de Oliveira
Data: 13/Fevereiro/2014
   
   
   Assuntos:

- Condução sob o efeito do álcool
- Direito de regresso da seguradora
    
    SUMÁRIO :
    
    1. Não se comprovando que o acidente foi causado por causa do álcool que o condutor detinha enquanto conduzia, não é legítimo presumir, sem mais, a relação de causalidade entre o acidente e a taxa de álcool verificada, presunção essa que a lei não estabelece.
    
    2. Reconhecendo-se a dificuldade na prova da causalidade entre a taxa de álcool detida pelo condutor considerado culpado e o acidente de viação ocorrido, não está o Tribunal impedido de julgar e ter ou não por provada aquela causalidade, face à globalidade dos factos e circunstancialismo apurado.
    
    3. Assim, comprovando-se que o condutor detinha uma taxa de álcool de 1,69 gr/lt no sangue, não abrandou e foi colher um peão que atravessava numa passadeira, em boas condições de piso e de tempo, às 7:30 h, tendo sido condenado em processo crime por condução sob o efeito do álcool e aí considerado culpado pelo acidente, vistos os efeitos daquele grau de alcoolemia em termos científicos, as regras da experiência comum e as presunções que daí se podem extrair e não se apresentando qualquer outra justificação para a produção do acidente, será de se ter por demonstrada a causalidade entre aquela detenção de álcool no sangue e a produção do acidente, havendo, por isso, direito de regresso da Seguradora pela indemnização que foi paga, direito de regresso a que alude o artigo 16°, c), do Decreto-Lei n° 57/94/M, de 28 de Novembro.
    

O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira












Processo n.º 325/2011
(Recurso Civil)
Data : 13/Fevereiro/2014

Recorrente : Companhia de Seguros da A, S.A.

Recorrido : B

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO
    COMPANHIA DE SEGUROS DA A, SA, Recorrente mais bem identificada nos autos acima referenciados, não se tendo conformado com a douta decisão proferida por este douto Tribunal, veio da mesma interpor recurso, o qual foi admitido e, por isso, vem, nos termos do disposto no artigo 613°, n° 2 do Código de Processo Civil apresentar as suas ALEGAÇÕES ESCRITAS, concluindo da seguinte forma:
    I - A Recorrente não se conformou com a douta decisão proferida pela Meritíssima Juiz do Tribunal "a quo", e da mesma interpôs recurso entendendo que não deveria ter sido julgada improcedente a acção de regresso proposta pela ora Apelante nos presentes autos.
    II - A Recorrente considerou que o Douto Tribunal de Primeira Instância ao decidir assim veio violar os artigos 16° e 45° do DL 57/94/M de 28 de Novembro, conforme se demonstrará, colocando em crise a devida aplicação do Direito.
    III - Assim, os factos com relevância para este recurso que ficaram provados em sede de julgamento foram os seguintes:
    IV - A Autora explora a actividade seguradora. No âmbito da sua actividade a Autora celebrou com C um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n° PTV -011-1003379-2.
    Através do aludido contrato de seguro foi transferido para a Autora a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros ME-XX-XX, propriedade de C e conduzido por B, pelos prejuízos causados a terceiros, até ao limite estabelecido nas Condições particulares e Gerais da Apólice.
    No dia 31 de Julho de 2001, pelas 7:30 da manhã, na Avenida Demétrio Cinatti, ocorreu um acidente de viação.
    No qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ME-XX-XX, conduzido por B e propriedade de C.
    E o peão D que, no momento do embate, atravessava a Avenida Demétrio Cinnati, utilizando a passagem para peões aí situada.
    
    V - Mais ficou provado que em consequência do acidente a D sofreu diversas lesões fisicas o que causou a sua morte. E conforme o exame efectuado logo após o acidente, a taxa de alcoolemia do Réu B era de 1,69 gramas por litro de sangue.
    VI - Por sentença transitada em julgado e proferida nos autos sob o processo n° CVl-03-0041-CAO, que correram seus termos junto deste Tribunal e no qual o objecto destes autos é o acidente de viação em causa ficaram provados que:
    No dia 30 de Julho de 2001, pelas 7h30m da manhã, D foi atropelada, em Macau, pelo veículo automóvel com a matrícula ME-XX-XX conduzido por B;
    O qual circulava, àquela hora, na Avenida Demétrio Cinatti, pelo lado da Avenida Marginal de Lam Mao Tong, na direcção do Bairro de Fai Chi Mei;
    Apesar de D ter sido conduzida imediatamente ao hospital, a mesma acabou por falecer no próprio dia, às 7h56m;
    VII - Através do Acórdão de 18 de Outubro de 2002 proferido no processo PCC-017-02-1 (actualmente CR2-02-0005PCC), posteriormente confirmado pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 24 de Abril de 2003 proferido no processo n° 243/2002-1, B foi condenado como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime p. e p. pelo disposto no n.º 2 do artigo 66° do Código da Estrada e n° 1 e 2 do artigo 134° do Código Penal numa pena efectiva de três anos de prisão.
    Na altura, o condutor B, conduzia sob o efeito de bebidas alcoólicas.
    A vítima D atravessava, naquele momento, a avenida Demétrio Cinatti, na faixa em que o veículo seguia, utilizando para o efeito, a passagem para peões sita em frente do edifício Wan Son San Chun. Ao chegar junto da referida passagem para peões, B não abrandou a marcha do seu veículo, acabando por embater violentamente em D.
    Consequentemente, D foi projectada tendo tombado no pavimento a uma distância superior a 10 metros em relação à passagem para peões onde o embate ocorrera.
    VIII - O acidente causou a D lesões graves, nomeadamente várias contusões e lacerações na cabeça e nos membros.
    A causa directa da morte de D consistiu na fractura óssea do pescoço e na laceração do coração, ambas provocadas pelo acidente. Aquando da ocorrência do acidente, B conduzia com uma taxa alcoolemia equivalente a 1,69 gramas por litro de sangue.
    IX - Na altura, fazia bom tempo, o piso encontrava-se em boas condições e havia pouco trânsito.
    A responsabilidade causada por acidentes de viação referente ao veículo automóvel com a matrícula ME-XX-XX é transferida, através do respectivo contrato de seguro, para a ré, conforme a apólice n.º PTV-01-103379-2.
    X - O acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do Réu, B.
    XI - No acima referido processo interveio a Autora como demandada civil, porquanto, de acordo com o DL n.º 57/94/M o risco da responsabilidade civil emergente daquele acidente encontrava-se transferido para a mesma através da apólice n° PTV-01-103379-2 pelo que, foi a Autora quem suportou todos os danos dali resultantes.
    XII - A Autora despendeu a quantia total de MOP$1.03l.680,00 para pagamento da indemnização civil aos demandantes e a quantia de MOP$37.198,00 a título de honorários dos seus advogados e despesas judiciais.
    XIII - Por carta registada e datada de 22 de Abril de 2009, a Autora interpelou o Réu no sentido de proceder ao pagamento da quantia supra descrita, dandolhe um prazo de quinze dias para o fazer, caso contrário, recorreria aos meios judicias para a cobrança da respectiva dívida.
    XIV - Adianta o douto Acórdão recorrido que tendo em conta os factos dados como provados, o cerne da questão está na existência ou não de nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia detectada no sangue do Réu e o acidente provocado pela mesma. Mais concretamente, é preciso ver se há ou não do nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia detectada no sangue do Réu e o acidente provocado pelo mesmo.
    XV - Se se pode retirar da taxa de alcoolemia em questão alguma conclusão imediata quanto à causa do acidente ou, pelo menos, extrair dela alguma presunção legal no sentido de o acidente ter ocorrido porque o Réu estava sob a influência do álcool. Trata-se, como é bom de ver, de uma questão de interpretação e aplicação da norma do artigo 16°, c), do DecretoLei n° 57/94/M, de 28 Novembro.
    XVI - Mais adiantou a Meritíssima Juiz "a quo " no acórdão recorrido que tem-se debatido muito sobre esta questão em Portugal tendo o respectivo Supremo Tribunal de Justiça proferido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência em 28 de Maio de 2002, in DIS-A, n° 164, 18 de Julho de 2002, pag. 5395, na qual foram analisadas as principais correntes jurisprudenciais formadas em seu redor".
    XVII - Saliente-se que o Réu apesar de devidamente citado da presente acção de regresso, não a contestou, pelo que foram os factos aí alegados pela Autora dados como provados.
    XVIII - Ora, considerou o Douto Tribunal que nada ficou provado acerca do efeito do álcool sobre a verificação do acidente e que era indispensável que existissem outros factos que apontassem, por exemplo, que o acidente se deu porque o álcool fez com que o Réu embatesse na vítima.
    XIX - A Recorrente não pode concordar, pois existe matéria de facto dada como provada bem como matéria de Direito que apontam ter sido o álcool ingerido pelo Recorrido que deu causa ao acidente.
    XX - A Recorrente não coloca em causa a matéria dada como provada em sede de julgamento, apenas discorda com a argumentação de Facto e de Direito que levou o Tribunal a quo a julgar a improcedência da acção de regresso proposta pela ora Recorrente.
    XXI - É verdade que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência acima citado não dispensa a prova por parte da Companhia de Seguros do nexo de causalidade e também é certo que a condução sob a influência de álcool começa por ser condição sine qua non para o reconhecimento do direito de regresso, mas se a mera prova da condução sob o efeito de álcool é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que o Tribunal esteja impedido de relacionar os factos que deram origem ao mesmo e que, atendendo às circunstâncias em que ocorreu o acidente em apreço, em face da inexistência de outra explicação razoável e plausível conclua pela existência daquele nexo, recorrendo às presunções.
    XXII - As presunções conforme se encontram estatuídas no artigo 342º do CC são meios de prova figurando, aliás, em primeiro lugar entre os legalmente previstos, existindo mesmo quem, tal como Vaz Serra, as configure, não como verdadeiros meios de prova, mas antes como meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência.
    XXIII - O Tribunal pode socorrer-se de presunções para estabelecer o nexo de causalidade, tendo por isso sido a orientação seguida pela Jurisprudência do STJ e do Tribunal da Relação em Portugal, porque não é fácil a demonstração directa do nexo causal entre a condução sob influência do álcool e o resultado danoso (Cfr. Acórdão do STJ de 11.07.2006 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25/02/2010; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/02/2009, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31/01/2008, todos in www.dgsi.pt) .
    XXIV - Neste sentido, tal como entendeu o STJ em 18.012.2003 : "A resposta extrai-se de regras da vida real. Há que fazer alguma transigência no contexto ponderativo de certos casos limite, evitando um qualquer juízo de arbítrio, sem cair no fundamentalismo formal do ritual da prova. O coeficiente de exigências probatória material tem que ser contido nos limites do razoável das circunstâncias concretas, do concreto tipo de nexo causal - onde as presunções judicias, as regras da experiência comum e da vida não podem deixar de ter uma intervenção significativa, aproximandonos aqui das teses subscritas como vencidas no aludido Acórdão Uniformizador enquanto apelam a presunções judiciais -".
    XXV - Ora, atendendo às regras de experiência comum é sabido que o álcool funciona como uma potente droga sedativa, actuando sobre o sistema nervoso central e que entre os sintomas incluem-se a perda de equilíbrio, a descoordenação motora, a perda de acuidade visual, a instabilidade emocional, a perda da capacidade de avaliação e perda de tempo de reacção.
    XXVI - Estudos científicos ("O Álcool no Corpo Humano", folhetim da DGV (Direcção Geral de Viação de Portugal), Pago 36) demonstram que a relação entre a concentração de álcool no sangue e o estado de influência alcoólica entre os consumidores traduz-se da seguinte forma:
    ( ... ) a) entre 0,90 e 2,30g/1 - estado de excitação - instabilidade emocional e perda da capacidade de avaliação, diminuição da percepção e da capacidade de coordenação( consequentemente, andar cambaleante), aumento do tempo de reacção, náusea e necessidade de descansar).
    XXVII - In casu, cientificamente falando, a taxa de álcool apresentada pelo condutor do veículo ME-XX-XX, ou seja, 1,69 g/l, pode originar perda da capacidade de avaliação, diminuição da capacidade de coordenação, aumento do tempo de reacção, náuseas e necessidade de descansar.
    XXVIII - Justificando cabalmente a dificuldade do ora Recorrido em avistar à distância a infeliz vítima dos autos, quando esta fazia a travessia pela passagem para peões, e a imobilizar o seu veículo em tempo útil de forma a evitar o atropelamento, que se veio a revelar fatal, inexistindo outra explicação razoável e plausível que justifique a ausência do nexo causal, pois tal como consta dos factos provados, na altura do acidente fazia bom tempo, o piso encontrava-se em boas condições e havia pouco trânsito.
    XXIX - O Recorrido violou as mais elementares regras estradais e de segurança rodoviária e o legislador em Macau reconhecendo que a condução sob o efeito de álcool constitui uma actividade perigosa por a sua própria natureza, por potenciadora dos riscos próprios da condução, veio a consagrar como crime a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 gramas por litro no artigo 90° da Lei do Trânsito Rodoviário.
    XXX - assim, tendo em conta a apreciação concreta da factualidade dada como provada em sede de audiência de julgamento, em conjugação com as regras da experiência comum, podemos com toda a certeza concluir que existe, no caso em apreço, nexo causal entre a taxa de álcool no sangue e o acidente sub judice, por isso, a Douta decisão proferida violou os artigos 16° e 45° do DL 57/94/M de 28 de Novembro.
    Nestes termos, deverá o presente recurso ser considerado totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida, condenando-se o recorrido no pagamento da quantia peticionada pela ora recorrente na acção proposta nos presentes autos.
    Não foram oferecidas contra-alegações.
    Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    Vêm provados os factos seguintes:
    “• A Autora explora a actividade seguradora.
    • No âmbito da sua actividade a Autora celebrou com C um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.º PTV-01-103379-2.
    • Através do aludido contrato de seguro foi transferido para a Autora a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros ME-XX-XX, propriedade de C e conduzido por B, pelos prejuízos causados a terceiros, até ao limite estabelecido nas Condições particulares e Gerais da Apólice.
    • No dia 31 de Julho de 2001, pelas 7:30 da manhã, na Avenida Demétrio Cinatti, ocorreu um acidente de viação.
    • No qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ME-XX-XX, conduzido por B e propriedade de C.
    • E o peão D que, no momento do embate, atravessava a Avenida Demétrio Cinnati, utilizando a passagem para peões aí situada.
    • Em consequência do acidente, a D sofreu diversas lesões físicas o que causou a sua morte.
    • E conforme o exame efectuado logo após o acidente, a taxa de alcoolemia do Réu B era de 1,69 gramas por litro de sangue.
    • Por sentença transitada em julgado e proferida nos autos sob o processo n.º CV1-03-0041-CAO, que correram seus termos junto deste Tribunal e no qual o objecto destes autos é o acidente de viação em causa ficaram provados que:
    1. no dia 30 de Julho de 2001, pelas 7h30m da manhã, D foi atropelada, em Macau, pelo veículo automóvel com a matrícula ME-XX-XX conduzido por B;
    2. o qual circulava, àquela hora, na Avenida Demétrio Cinatti, pelo lado da Avenida Marginal de Lam Mao Tong, na direcção do Bairro de Fai Chi Mei;
    3. apesar de D ter sido conduzida imediatamente ao hospital, a mesma acabou por falecer no próprio dia, às 7h56m;
    4. através do Acórdão de 18 de Outubro de 2002 proferido no processo PCC-017-02-l (actualmente CR2-02-0005-PCC), posteriormente confirmado pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 24 de Abril de 2003 proferido no processo n.º 243/2002-1, B foi condenado, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime p. e p. pelo disposto no n.º 2 do artigo 66° do Código da Estrada e n.° 1 e 2 do artigo 134° do Código Penal numa pena efectiva de três anos de prisão.
    • Na altura, o condutor B, conduzia sob o efeito de bebidas alcoólicas.
    • A vítima D atravessava, naquele momento, a avenida Demétrio Cinatti, na faixa em que o veículo seguia, utilizando para o efeito, a passagem para peões sita em frente do edifício Wan Son San Chun.
    • Ao chegar junto da referida passagem para peões, B não abrandou a marcha do seu veículo, acabando por embater violentamente em D.
    • Consequentemente, D foi projectada tendo tombado no pavimento a uma distância superior a 10 metros em relação à passagem para peões onde o embate ocorrera.
    • O acidente causou a D lesões graves, nomeadamente várias contusões e lacerações na cabeça e nos membros.
    • A causa directa da morte de D consistiu na fractura óssea do pescoço e na laceração do coração, ambas provocadas pelo acidente.
    • Aquando da ocorrência do acidente, B conduzia com uma taxa alcoolemia equivalente a 1,69 gramas por litro de sangue.
    • Na altura, fazia bom tempo, o piso encontrava-se em boas condições e havia pouco trânsito.
    • A responsabilidade causada por acidentes de viação referente ao veículo automóvel com a matrícula ME-XX-XX é transferida, através do respectivo contrato de seguro, para a ré, conforme a apólice n.? PTV-01-103379-2.
    • F, G, H, I e J são os únicos filhos da vítima e E era casado com a mesma.
    • O acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do Réu, B.
    • No acima referido processo interveio a Autora como demandada civil, porquanto, de acordo com o DL n.º 57/94/M o risco da responsabilidade civil emergente daquele acidente encontrava-se transferido para a mesma através da apólice n.º PTV-01-103379-2, pelo que, foi a Autora quem suportou todos os danos dali resultantes.
    • Por consequência, a Autora foi condenada a pagar aos demandantes F, G, H, I, J, e E, respectivamente, filhos e márido da vítima, uma indemnização civil no montante total de MOP$1.031.680,00.
    • A Autora pagou a quantia de MOP$900.000,00, a título de danos não patrimoniais, a todos os autores em conjunto, através de cheque n.º MXXXX, sacado sobre o Banco da china.
    • A Autora pagou a quantia de MOP$38.200,00, a título de danos patrimoniais, a todos os demandantes, em conjunto, através de cheque n.º MXXXX, sacado sobre o Banco da China.
    • A Autora pagou a quantia de MOP$90.000,00, a título de danos patrimoniais ao demandante E, através de cheque n. MXXXX, sacado sobre o Banco da China.
    • A Autora pagou a quantia de MOP$3.480,00 a título de danos patrimoniais aos demandantes, F, G, H, I, J e E, através de cheque n.º MXXXX.
    • A Autora despendeu a quantia total de MOP$1.031.680,00 para pagamento da indemnização civil aos demandantes e a quantia de MOP$37.198,00 a título de honorários dos seus advogados e despesas judiciais.
    • Por carta registada e datada de 22 de Abril de 2009, a Autora interpelou o Réu no sentido de proceder ao pagamento da quantia supra descrita, dando-lhe um prazo de quinze dias para o fazer, caso contrário, recorreria aos meios judicias para a cobrança da respectiva dívida.”
    
    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por saber se se verifica no caso sub judice o direito de regresso da Seguradora pelas quantias por esta pagas na sequência do acidente de viação que a sua segurada teve, sendo que na altura lhe foi detectada uma taxa de álcool no sangue de 1,69 g por litro.
E para tanto, o que está em causa é a existência ou não de nexo de causalidade entre a taxa de alcoolémia detectada no sangue da ré e o acidente provocado pela mesma.
Esta é a questão fundamental a apurar.
2. Tal direito de regresso tem assento em termos de previsão normativa no artigo 16°, c), do Decreto-Lei n° 57/94/M, de 28 de Novembro, segundo a qual "Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, se este ... tiver agido sob a influência do álcool ... ".
Para o efeito, alegou que o réu, seu segurado, foi responsável por um acidente de viação donde proveio a morte da vítima; que o réu estava a conduzir com uma taxa de alcoolemia de 1,69g por litro; o acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva deste, conduzindo este sob influência do álcool, em velocidade excessiva e sem abrandar a marcha do veículo, tendo ele sido declarado único e exclusivo culpado pelo acidente por sentença crime transitada em julgado; a vítima foi colhida numa passadeira de peões, fazia bom tempo, o piso estava em boas condições e havia pouco trânsito.

3. A questão cinge-se em saber se se pode retirar da taxa de alcoolemia em questão alguma conclusão imediata quanto à causa do acidente ou, pelo menos, extrair dela alguma presunção legal no sentido de o acidente ter ocorrido porque o réu estava sob a influência do álcool. Trata-se, como é bom de ver, de uma questão de interpretação e aplicação da norma do artigo 16°, c), do Decreto-Lei n° 57/94/M, de 28 de Novembro.
A Mma Juíza equacionou bem a questão e louvou-se em Jurisprudência Comparada para a dilucidar. Pela pertinência e objectividade somos a transcrever esse segmento da sentença recorrida:
“Tem-se debatido muito sobre essa questão em Portugal tendo o respectivo Supremo Tribunal de Justiça proferido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência em 28 de Maio de 2002, in DI I S-A, n.º 164, 18 de Julho de 2002, pg. 5395 na qual foram analisadas as principais correntes jurisprudenciais formadas em seu redor.
Os factos e direito analisados neste aresto são muito semelhantes aos que se debatem nos presentes autos. Com efeito, trata-se também de um acidente mortal em que o veículo do condutor causador do acidente, em quem foi detectado uma taxa de alcoolemia de 1,1g por litro de sangue, invadiu a semifaixa de rodagem contrária vindo a embater no veículo que estava a circular nessa semifaixa e, à data, vigorava uma norma idêntica à prevista no artigo 16°, c), do Decreto-Lei n° 57/94/M, de 28 de Novembro (artigo 19º, c), do Decreto-Lei n.º 522/85).
Dada a similitude acima referida e a profundidade com que se debruçou sobre a questão sub judice, julga-se de analisar detalhadamente esse aresto e daí nos dilucidarmos sobre o problema que nos ocupa agora.
Conforme o referido Acórdão, são basicamente três as posições tomadas: 1. o direito de regresso é um efeito automático da condução com determinada taxa de alcoolemia, pois funda-se no desvalor da acção do condutor; 2. o direito de regresso pressupõe o nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia e o acidente cuja prova incumbe ao Autor; 3. o direito de regresso pressupõe o nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia e o acidente presumindo-se, no entanto, tal relação a favor do Autor.
O Acórdão em apreço adoptou o 2° entendimento com argumentos que interessam, nessa sede, transcrever: "Sendo o fundamento do direito ao reembolso pela seguradora a condução sob o efeito do álcool, cabe a quem invoca o direito o dever de provar os pressupostos de que ele depende e no qual se inclui a existência de alcoolemia e do nexo causal dela com a produção do acidente (artigo 342º do Código Civil), como se decidiu nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 468, p. 376, de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S) vol. V-I, p. 39, e de 22 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 494, p. 325. Os elementos que constituem o fundamento do direito de regresso são factos constitutivos do direito que ao autor cabe demonstrar."
Isso no que diz respeito às regras gerais da repartição do ónus da prova.
Já quanto à eventual inversão do ónus da prova, o mesmo aresto fez a seguinte análise: "A inversão do ónus da prova, obrigando o segurado a provar que não teve culpa, apresenta-se como aquela que de jure constituendo se poderia, numa primeira aproximação, considerar mais justa na medida em que ficaria ao condutor que circula naquelas condições, ou seja, em situações de mais facilmente provocar acidentes, o ónus de provar que, apesar de circular em condições irregulares, não contribuiu para o acidente. E, sacrificada a seguradora à função social de reparar os danos, estaria em condições bem mais fáceis para responsabilizar o condutor, tanto mais que a condução naquelas circunstâncias corresponde a um agravamento do risco no contrato. Uma seguradora não aceitaria, em geral, assumir o risco nas condições previstas na alínea c) do artigo 19.º Todavia, pressentimos a dificuldade do legislador em enveredar por tal caminho. Agir sob a influência do álcool é um facto relativizado, pois as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular varia de pessoa para pessoa; e nem o grau de alcoolemia podia ser fixado em termos de ser presunção segura de que fosse ele o causador da manobra que levou ao acidente." (sublinhado nosso).
Quanto à letra e ao espírito do artigo 19° do Decreto-Lei n° 522/85, o Acórdão em análise pronunciou-se neste sentido: "Em todo o caso seria sempre o legislador a tomar a opção que entendesse mais adequada. Posto isto, há que concluir que o direito de regresso está limitado no artigo 19. o do Decreto-Lei n.º 522/85 a situações restritas e que vêm aí mencionadas, não funcionando como sanção civil reparadora contra todo e qualquer agente que provoque o dano. Daí que só possa existir quando se verificarem as circunstâncias aí especificadas. No caso em apreço exige-se que haja condução sob influência do álcool a ditar o comportamento do condutor. Não é suficiente que o condutor estivesse sob a influência do álcool, sendo necessário que esse facto seja a causa ou uma das causas do acidente (v. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 206, de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S), vol. V-I p. 39, e de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S) vol. V-I p. 59). A justificação para a necessidade da prova do nexo de causalidade pelo autor entre a condução sob a influência do álcool e o acidente resulta dos próprios termos da alínea c) do artigo 19.º o Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro. É necessário que o demandado aja sob a influência do álcool e não apenas que ele conduzisse etilizado nos termos previstos nas normas penais ou contra-ordenacionais. O grau de alcoolemia podia estar acima dos limites legais, o que seria fundamento para a condenação em sede própria no regime penal como actividade perigosa. Mas uma tal condução pode não contribuir para o acidente. A expressão usada na lei, agido sob a influência do álcool, é uma exigência relativa à actuação do condutor que não tem de ligar-se ao regime considerado legalmente susceptível de condenação penal. Diz a lei agir sob a influência do álcool e não estar sob a influência do álcool (circunstância que vem ressaltada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 494, p. 325) .... E seria, ao menos, arriscado cuidar em fazer a equivalência automática de que o direito de regresso existia sempre que o legislador, por razões ligadas à circulação rodoviária, viesse fazer qualquer alteração àquilo que considera influência de álcool susceptível de responsabilizar automaticamente o condutor segundo tais critérios. Estamos assim com a corrente jurisprudêncial (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 206, e de 19 de Julho de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 468, p. 376) que entende que o legislador se quisesse dispensar a prova do nexo de causalidade diria simplesmente que o direito de regresso existia se o condutor conduzisse com álcool." (sublinhado nosso).
A clareza dos fundamentos acima transcritos exclui qualquer possibilidade de ligação automática entre a verificação de certa taxa de alcoolemia e a produção de determinado acidente ou pretensão de relação de causalidade natural entre estes mesmos factos. Com efeito, da letra do artigo 19°, c), do Decreto-Lei n° 522/85, vê-se que o que está em causa é o efeito que determinada taxa de alcoolemia pode ter na produção de acidentes e isto, obviamente, por intermédio do condutor que previamente ingeriu substâncias alcoólicas. Ora, a exposição feita no Acórdão é cristalina: "Agir sob a influência do álcool é um facto relativizado, pois as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular varia de pessoa para pessoa; e nem o grau de alcoolemia podia ser fixado em termos de ser presunção segura de que fosse ele o causador da manobra que levou ao acidente". É precisamente por força disso que entendeu o Acórdão em análise que nada no Decreto-Lei n° 522/85 aponta para a dispensa da prova do nexo de causalidade ou a inversão do ónus da prova que, segundo o regime geral delineado no CC, cabe à seguradora.”

    4. Posto isto, na douta sentença, dizendo seguir-se de perto o mesmo raciocínio para a apreciação do presente caso, acentuou-se que nada ficou provado acerca do efeito do álcool sobre a verificação do acidente. Diz-se que é manifesto que os factos assentes são demasiados escassos para que os pedidos da autora possam proceder. De facto, nada ficou provado acerca do efeito do álcool sobre a verificação do acidente. O mero facto de o réu conduzir sob o efeito de bebidas alcoólicas, por si, não significa que foi o álcool que levou à verificação do acidente. Para o efeito, é indispensável que haja outros factos que apontam, por exemplo, que o acidente se deu porque o álcool fez com que o réu embatesse na vítima. Em suma, que o álcool foi a causa do acidente.
    Pelo que, cai por terra a tese defendida pela autora de que a taxa de alcoolemia detectada é o suficiente para concluir que o réu agiu sob a influência do álcool, nos termos exigidos pelo artigo 16°, c), do Decreto-Lei n° 57/94/M, de 28 de Novembro e, como tal, deve restituir à autora o que esta pagou aos lesados.
    Nestes termos, julgou-se improcedente o pedido de reembolso da quantia paga pela autora aos demandantes do pedido cível. Com isso, ficou também afastado o eventual direito de reembolso dos honorários e despesas judiciais que a autora despendeu e o de juros das respectivas quantias.

5. Esta questão já tem sido debatida neste TSI e vamos seguir o entendimento já adoptado.
Não sem que se faça referência, como não deve deixar de ser feita, ao que douta e superiormente já foi decidido pelo V.º TUI.
Referimo-nos ao processo n.º 52/2011, de 9/11, ainda que em acção de direito de regresso por abandono de sinistrado:
“(…) Questão semelhante tem sido debatida a propósito do direito de regresso da seguradora pelos danos provocados por condutor sob o efeito do álcool que, aliás, tanto no nosso Direito, como no português, decorre da mesma norma da que regula as consequências do abandono de sinistrado [alínea c) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M e alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, respectivamente]. Uma tese defende o direito de regresso irrestrito da seguradora. Outra entende que esta só tem direito de regresso quanto aos danos que se prove terem resultado da condução sob o efeito do álcool.
Vejamos como se coloca e resolve a questão à luz do Direito de Macau.

(…) só em casos muito especiais a lei veio admitir que a seguradora pudesse exercer um direito de regresso após pagamento de indemnização ao lesado.
A utilização da expressão “apenas”, constante do proémio do artigo 16.º, mostra claramente que a enumeração das situações em que se permite o direito de regresso à seguradora, constantes do artigo 16.º são de natureza taxativa. São estas apenas e não outras.
Na alínea a) do artigo 16.º prevê-se o direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente. A conduta tem de ser intencional, ainda que não criminosa, como no caso do proprietário que danifica o veículo próprio.
Por força da alínea b) a seguradora pode pedir a indemnização paga aos lesados, aos autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente.
Na alínea c) está consagrado o direito de regresso da seguradora em três situações:
- Contra o condutor não legalmente habilitado para conduzir;
- Contra o condutor que tiver agido sob a influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos;
- Contra o condutor que haja abandonado o sinistrado.
Na alínea d) estatui-se o direito de regresso da seguradora contra o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de queda de carga ocorrida durante o seu transporte e que tenha sido devida a deficiência de acondicionamento. Portanto, sanciona-se a mera negligência no acondicionamento da carga que tenha caído durante o transporte.
Na alínea e) o direito de regresso é exercido contra o responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica, que não tenha cumprido essa obrigação, excepto se o mesmo provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo.
(…)
Diga-se, aliás, que a tese do ora recorrente não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Ora, se a lei pretendesse tal fim - isto é, direito de regresso condicionado à prova de que os danos resultaram do abandono - certamente que o teria prescrito, como fez, de resto na alínea e) do preceito em causa. Na verdade, na situação prevista nesta alínea e) o direito de regresso é exercido contra o responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica, que não tenha cumprido essa obrigação, mas este pode provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo, caso em que o direito de regresso não se efectiva. Mas tal mecanismo não se prevê na alínea c), pelo que se tem de concluir que nesta situação o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.
Diga-se, ainda que tal prova – como também noutra das situações previstas na alínea c) (prova de que os danos foram especificamente devidos à condução sob o efeito álcool) seria impossível ou quase, diabólica, como já foi designada.
Efectivamente, como é possível provar que os danos no lesado foram devidos ao seu abandono ou devidos ao estado alcoólico do condutor do veículo e não ao acidente em si?

A ser assim, teríamos de concluir que a norma em causa seria uma norma sem aplicação ou de quase impossível aplicação, o que constitui uma indicação de que não estaríamos no melhor caminho interpretativo, visto que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil ).
Por outro lado, por alguma razão, os que defendem a tese da necessidade do nexo de causalidade entre os danos e o abandono do sinistrado ou da condução sob o efeito álcool (equiparando sempre as duas situações), omitem a terceira situação prevista na alínea c): o direito de regresso da seguradora contra o condutor não legalmente habilitado para conduzir. Então e neste caso também seria necessário a prova da causalidade entre os danos e a falta de habilitação para conduzir? Seria uma solução absurda.
O que, manifestamente, se pretendeu na alínea c) foi, por razões preventivas e também repressivas, não beneficiar da protecção do seguro quem não tiver licença para conduzir, o condutor que ultrapassar os limites de álcool no sangue ou estiver intoxicado por outras substâncias e quem cometa o crime de abandono de sinistrado (voluntário, pois é este o caso dos autos, pelo que apenas cabe examinar esta situação), desde que sobre o condutor recaia o dever de indemnizar, sendo irrelevante que os danos sejam especificamente devidos às situações descritas.
É que a responsabilidade civil, além da função reparadora, tem também uma função preventiva e punitiva6, não sendo a pena privada estranha ao nosso ordenamento jurídico civil, como por exemplo, no regime do sinal (artigos 446.º e 820.º do Código Civil, tal como os restantes artigos que se citarão neste parágrafo), na sanção pecuniária compulsória (artigo 333.º), passando pelo regime de revogação das doações por ingratidão do donatário (artigo 964.º), na fixação de sanções pecuniárias pela assembleia de condóminos (artigo 1341.º), na incapacidade sucessória por indignidade (artigo 1874.º) , na deserdação (artigo 2003.º)
O que se pretendeu, foi, desta maneira, desincentivar a condução por quem não estiver legalmente habilitado para conduzir, a condução sob influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos e o abandono de sinistrados.”

6. Não se pretende nem seria próprio estar a rebater a supra douta argumentação.
Não obstante, cientes de que a certeza das decisões dos tribunais é um valor a preservar e que a Uniformização da Jurisprudência é uma medida que se impõe, há muito reclamada no ordenamento jurídico da RAEM, sendo essa uma das vias para prosseguir aquele valor do Direito, com a devida vénia perante a posição contrária e salvaguardando que o nosso entendimento não seja o melhor, mantemos e remetemo-nos para a posição assumida no processo nº 372/2011, de 23 /2/2012 e de novo julgado nesta Instância em 11/7/2013:

«O acidente pode produzir-se, independentemente do álcool, donde não compreender que a responsabilidade transferida para a seguradora possa ser limitada por uma actuação que não é causa do acidente.
Em segundo lugar, a não se entender assim, existiria um desequilíbrio contratual resultante do facto de o segurado estar a suportar importâncias que só a seguradora devia pagar pela simples razão de que foi isso que foi contratualizado: nomeadamente, a transferência de responsabilidade no caso de culpa ou risco na produção de um acidente.
Em terceiro lugar, a entender-se que as despesas resultantes do acidente, por uma razão independentemente do álcool, não ficariam a cargo da seguradora, tal situação geraria um manifesto enriquecimento sem causa da seguradora.
E, como lembra Vaz Serra, BMJ 69, 256, o “dever de regresso funda-se no enriquecimento injustificado à custa de outros credores e, por conseguinte, quando do negócio jurídico ou de disposição especial não resulta outra coisa, deve ter o alcance que resultar do facto de, em consequência da satisfação do credor, certo ou certos devedores terem enriquecido injustificadamente à custa de outro ou outros”
Depois, importa atentar na letra da norma que diz que há regresso quando o condutor tiver agido sob a influência de álcool, devendo, pois, os danos ser em função do facto gerador dos mesmos e que ao mesmo tempo seja causa do regresso, ou seja, a actuação por causa do álcool. Não deixa aqui de haver uma nota clara que vai no sentido da causalidade entre a causa e o efeito. Não teria sido mais fácil para o legislador, se fosse essa a sua vontade, ter dito ”aquele que tenha conduzido” e já não “aquele que tenha agido”?
Acresce que a natureza sancionatória cível da responsabilidade civil tem por função a reparação dos prejuízos e não mais do que isso.
Evidencia-se até uma desproporção manifesta na contemplação do direito de regresso em situações de culpa leve do condutor ou até de concorrência de culpas, não se compreendendo facilmente que a seguradora ficasse desonerada do que pagou se, por exemplo, o condutor, não obstante o álcool, independentemente dos motivos, fosse também ele vítima ou sinistrado.
A ideia de sanção moral também deve ser alheia ao direito de regresso, pois não é essa a função do reembolso. Não deve ser por via do instituto da responsabilidade civil, com atropelo da autonomia privada, equilíbrio das prestações, liberdade contratual, que se sancionam os comportamentos anti-sociais.
E pensemos numa situação de risco. Será que nesse caso - a lei não distingue -, conduzindo o agente sob o efeito do álcool - observando-se que mesmo nesse caso não deixou de agir sob aquele efeito -, ficaria eximida a Seguradora? Mesmo considerando que se restringe esse regresso aos casos de culpa do agente, estaria bem que se mantivesse a exclusão nos casos em que apenas ela, a culpa, se não apurou, mas o álcool não deixou de ser apurado? E, apurando-a, a culpa, claramente se comprovasse que o condutor, apenas, com 0,1gr/l ou por absurdo, 0,0001gr/l de taxa de álcool, foi culpado porque ia a conversar ao telemóvel e não olhou para onde devia? E pode-se considerar que agiu sob o efeito do álcool a partir de qualquer taxa de alcoolemia?
Dir-se-á que é evidente que nas situações de risco se exclui o direito de regresso. Pois bem, se assim é, o critério lógico do raciocínio sofre uma quebra, já que, para que se exclua o risco, o facto relevante é a conduta negligente e já a não a mera condução sob influência do álcool, mas para considerar o regresso nos casos de culpa negligente, então, aí, o critério já passa a ser a mera condução sob a influência do álcool, pois que para os defensores da tese que vem fazendo vencimento em Macau, nos casos de culpa, desde que haja álcool, já não interessa apurar a causa concreta do acidente.
Que pode ser mui difícil prova, sem dúvida! Mas essa é outra questão.
Acresce que não se vê razão para que o legislador tivesse de intervir numa situação duvidosa, que bem pode ser objecto de uma exclusão expressamente contratualizada, como o são tantas outras, por vezes, quase leoninas, no âmbito das diferentes coberturas.
Por último, se, nos casos da al. e) do art. 16º do DL n.º 57/94/M, de 28 de Nov., se prevê expressamente que existe direito de regresso sobre o “responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica referida no artigo 10.º, que não tenha cumprido essa obrigação, excepto se o mesmo provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo”, salvaguarda esta não prevista nas outras situações (alíneas a) a d)), donde se pretende retirar o argumento de que nestes casos o direito de regresso existe sempre independentemente do nexo causal entre a situação típica e a produção do acidente, pois que aí já não se prevê uma exclusão expressa do direito de regresso, é porque, na situação prevista na norma citada, o último responsável é o proprietário do veículo que pode nem ter sido o interveniente no acidente. Não é, pois, legítima esta interpretação a contrario, na medida em que se observa uma situação específica que impõe tal estatuição, completamente diferente das restantes, vista uma aparente desconexão entre a conduta geradora do regresso e o dano causado pelo acidente nos casos de falta de inspecção. Aí o legislador teve necessidade de ser expresso e não já assim nas outras situações em que se o nexo causal entre a conduta e o acidente não deve deixar de ser apurado; aqui, a causalidade do regresso resulta entre um acto do condutor e o sinistro, ali, entre um acto que, prima facie, nada tem que ver com o acidente. ”

7. Posto isto, mantendo-se o mesmo entendimento acima explicitado, na nossa análise vamos recorrer a dois acórdãos mui recentes da Jurisprudência Comparada e se nos afiguram ser muito elucidativos, pois que ainda que tenham chegado a resultados diferentes, não deixam de enunciar uma regra que se mostra fulcral, qual seja a de que aquele nexo causal a que alude a norma, entre a quantidade de álcool no sangue e a produção do resultado, o acidente, se deve extrair da articulação e conjugação da globalidade dos factos, cabendo às instâncias - aqui 1ª e 2ª - concluir a partir da factualidade apurada se o acidente se produziu porque o condutor estava embriagado ou por uma qualquer outra razão.
   No 1º acórdão do STJ, processo n.º 129/08.7TBPL.G1.S1, de 6/7/2011, consigna-se a norma em presença deve ser interpretada de modo a continuar o entendimento de que o direito de regresso da seguradora, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se tiver havido uma relação causal entre a etilização e a produção do evento.
   Esta relação causal, na sua vertente naturalística, constitui ainda matéria de facto, a fixar pelas instâncias.
   A fixação de tal relação causal não assenta em prova diabólica, porque julgar a matéria de facto não é, por natureza, apenas um acto consistente em espelhar nos factos provados o que passou pela frente do juiz.
A ideia de “julgamento” tem ínsito precisamente o acrescentar da consciência ponderada de quem julga ao que por ali passou.
   No julgamento da matéria de facto, hão-de, pois, as instâncias tomar posição.
   E de uma forma lapidar aí se diz:
   «E nem nos parece que assim se está a remeter o direito de regresso a um regime de prova diabólica, com base na ideia de que, por via de regra, o condutor sóbrio também pode ter acidentes com o “desenho” característico do estado de embriaguês e, consequentemente o juiz nunca, ou quase nunca, terá elementos para “imputar o que aconteceu ao álcool”.
Julgar a matéria de facto não é, por natureza, apenas um acto consistente em espelhar nos factos provados ou não provados o que passou pela frente do juiz. A ideia de “julgamento” tem ínsito precisamente o acrescentar da consciência ponderada de quem julga ao que por ali passou (Cfr-se, a este propósito, A. Varela, Sampaio e Nora e Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 435). Muito do que se dá ou pode dar como provado não foi objecto de produção de prova que imediatamente o revele. Basta pensar nos factos do foro íntimo, nos factos hipotéticos, nos factos de percepção extremamente rara e aí por diante.

Para além deste inerente ponderar, sempre mais ou menos intenso, estão ao alcance do juiz de facto as presunções naturais, que podem ser extraídas nos termos do artigo 351.º do Código Civil, desde que o respectivo conteúdo não haja sido recusado em resposta negativa a matéria perguntada na BI (...)
   A este Tribunal resta, pois, a apreciação em abstracto sobre se a relação de causalidade nos casos em que for estabelecida é adequada a produzir o evento, como o produziu.
Nos casos em que não for naturalisticamente estabelecida ficam, por natureza, vazios de sentido tais poderes.
Não havendo vícios formais a apontar a esta decisão negatória, nada há a censurar.
(...)»

Acabou aquele aresto por concluir, contra a seguradora, que pelo facto de o acidente se ter dado na hemifaixa esquerda atento o sentido de marcha do segurado da autora, conjugado com a taxa de alcoolemia a que ela seguia, com inerente diminuição da acuidade visual e estreitamento do campo visual, sem que da Relação chegasse qualquer relação causal entre um facto e outro, tal era insuficiente para se considerar integrado o pretendido direito de regresso.
   Mas a solução é que menos interessa para o nosso caso.
   
   8. E o que menos interessa, porque cada caso é um caso.
   Caso diferente e solução contrária – também não interessando aqui a solução encontrada, esta já, pró-seguradora - foi então o acidente tratado no 2º acórdão e que passamos a referir. Trata-se do acórdão do STJ, processo n.º 380/08.0YXLSB.C1.S1, de 7/6/2011.
   O importante é o princípio que aí se estabelece e que na sua formulação não se afasta do enunciado no caso acima visto.
   O importante é reter que se é certo que a mera prova da taxa de alcoolemia é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que, em termos de apreciação crítica dos factos relevantes, o juiz esteja impedido de os relacionar e de, reportando-se aos factos em apreço, pela forma como ocorreu determinado acidente e, em face da inexistência de outra explicação razoável, conclua por aquele nexo. Trata-se afinal de inferir factos desconhecidos a partir de factos conhecidos (artigo 349º CC).

    O nexo de causalidade entre o álcool e o acidente deve aferir-se da conjugação de diversos elementos, designadamente a prova testemunhal produzida, a própria dinâmica do acidente, o grau de alcoolemia registado, com os elementos científicos irrefutáveis, as regras da experiência, as normas legais aplicáveis e a teleologia do legislador subjacente às normas.

    Na verdade, aí, nesse acórdão, não se deixou de consignar:
«Como é sabido, “perante a orientação jurisprudencial que prevaleceu no Acórdão uniformizador 6/02, o direito de regresso atribuído à seguradora no confronto do beneficiário do seguro obrigatório de responsabilidade civil que tenha agido sob a influência do álcool – obrigando-a a garantir o efectivo pagamento das indemnizações devidas aos lesados, como reflexo da função de protecção social do seguro obrigatório, mas facultando-lhe, de seguida, a repercussão do sacrifício patrimonial que teve de suportar sobre o beneficiário do seguro a quem seja de imputar a lesão – não é um efeito automático da violação objectiva das normas penais ou contra – ordenacionais que dispõem sobre as condições psicológicas e de domínio do comportamento de veículos automóveis, (proibindo-a sempre que se ultrapasse determinado limiar de alcoolemia), nem assenta numa presunção legal de causalidade do grau de alcoolemia apurado quanto ao condutor relativamente à eclosão do acidente.”1
E, assim sendo, da doutrina que acabou por ter sido adoptada nesse acórdão, pode dizer-se que hoje é dado como assente (no âmbito daquele DL 522/85) que, para o alegado direito de regresso da seguradora que satisfez a indemnização seja reconhecido, tem a mesma, para além de provar a culpa do condutor na produção do evento danoso, ainda de alegar e provar factos de onde resulte o nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e o evento dele resultante.2
Isto é, recai efectivamente sobre a seguradora o ónus da prova quanto aos factos constitutivos do direito de regresso que exercita, demonstrando que o grau de alcoolemia do condutor funcionou como causa real, efectiva e adequada ao desencadear do acidente.
O nexo de causalidade entre o álcool e o acidente afere-se da conjugação de diversos elementos, designadamente a prova testemunhal produzida, a própria dinâmica do acidente, o grau de alcoolemia registado, com os elementos científicos irrefutáveis, as regras da experiência, as normas legais aplicáveis e a teleologia do legislador subjacente às normas.
Ora é do conhecimento comum que o álcool influencia os comportamentos, actuando sobre o cérebro, mesmo que os seus efeitos não sejam visíveis; todavia, quando a concentração do álcool no sangue atinge os 0,5 g/l já são perceptíveis.
Não obstante, os dados científicos irrefutáveis quanto à interferência do álcool nas capacidades e reflexos necessários à condução do automóvel, o Tribunal dispôs de meios de prova concretos que lhe permitiram dar por assente que o réu, em virtude do álcool, tinha a respectiva capacidade de condução comprometida, sendo determinante a interferência do álcool na condução ilícita do réu e, em consequência, no acidente dos autos.
Mas se é certo que a mera prova da taxa de alcoolemia é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que, em termos de apreciação crítica dos factos relevantes, o juiz esteja impedido de os relacionar e de, reportando-se aos factos em apreço, pela forma como ocorreu determinado acidente e, em face da inexistência de outra explicação razoável, conclua por aquele nexo. 3 Trata-se afinal de inferir factos desconhecidos a partir de factos conhecidos (artigo 349º CC).
Como se considera no citado acórdão.4, “é inteiramente lícito às instâncias servirem-se nesta sede de presunções judiciais ou naturais, nelas fundando as suas conclusões acerca das circunstâncias que conduziram ao acidente em regras ou máximas de experiência, por essa via completando, articulando e interligando o que directamente decorre da livre valoração das provas «atomisticamente» produzidas em audiência”. O único limite que naturalmente vigora nesta matéria e que nada tem a ver com a situação processual ora em análise é “que decorre de a Relação não poder ultrapassar a falta de prova do nexo de causalidade, recorrendo a presunções judiciais, tornando assim contraditório o julgamento da matéria de facto, que não alterou”.5
Na verdade, o que o referido acórdão uniformizador impõe é a realização de uma avaliação concreta, casuística e prudencial de todas as circunstâncias envolventes do acidente, de modo a determinar e em que medida é que o concreto estado de alcoolemia apurado quanto ao condutor pode ter sido determinante das infracções estradais e erros ou falhas na condução cometidos e que decisivamente desencadearam ou contribuíram para o acidente.
Ora foi manifestamente isto que as instâncias realizaram no caso em apreço, tendo tomado em conta todo o circunstancialismo concreto envolvente do embate verificado, ponderando adequadamente a influência que o relevante grau de alcoolemia demonstrado envolvia na capacidade de controle e domínio da viatura, concluindo, em termos que consideramos perfeitamente razoáveis e adequados, não apenas que tal grau de alcoolemia, em abstracto, era adequado para ditar um afrouxamento das suas capacidades, provocando-lhe desatenção e falta de reacção na condução mas também que, em concreto, tal grau de alcoolemia influenciou o comportamento do condutor do automóvel com a matrícula 00-00-00, reduzindo-lhe as capacidades de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias e lhe causou lentidão na capacidade de reacção e perturbação dos reflexos, sendo por causa do estado de alcoolemia em que se encontrava que perdeu o controle da trajectória do referido veículo, quando o pôs em andamento, guinando para a berma do lado direito da faixa de rodagem e de seguida invadindo a faixa onde seguia o veículo «SUZUKY», nela se atravessando, impedindo assim qualquer manobra que evitasse o embate.
Tal matéria de facto apurada significa que, no litígio subjacente aos presentes autos, foi plenamente demonstrada uma específica e concreta ligação causal entre o estado de alcoolemia do condutor e as deficiências e erros de condução que despoletaram o acidente, ou seja, a taxa de álcool no sangue influenciou, efectiva e decisivamente, o tipo de condução praticado, funcionando, deste modo, como causa efectiva e naturalística do acidente em discussão.
Deste modo, perante a matéria de facto apurada pelas instâncias quanto ao nexo de causalidade «naturalístico» entre o estado de alcoolemia do condutor do veículo UT e as falhas de condução por ele cometidas e que despoletaram o acidente, está cumprido o ónus da prova que incidia sobre a seguradora, relativamente aos pressupostos condicionadores do exercício do direito de regresso, com base na citada norma legal, improcedendo, nesta sede, a argumentação deduzida pelo recorrente.»
    
    9. Estamos, pois, em condições de julgar sobre o referido nexo causal, ponderando todo o processo dinâmico causal produtor do evento fatídico.
Não somos a acompanhar o juízo feito na douta sentença recorrida, ao elaborar o raciocínio de que não se provou o tal nexo causal.
Como vimos, esse juízo há-de ser extraído da globalidade de todos os factos e das regras da experiência comum e da causalidade natural.
Desde logo se assinala que, não obstante a dificuldade da prova em se determinar exactamente que o acidente se ficou a dever a uma acção ou omissão, derivada de perda de reflexos e atenção em virtude da taxa de álcool no sangue, tudo aponta, perante o circunstancialismo do caso, no quadro de facto acima delineado, que tal se tenha ficado a dever exactamente ao estado de embriaguez do condutor.
No quadro desenhado não se vê outra explicação para o acidente e todos sabemos também que os factos se evidenciam também pelas aparências, pelas presunções e pelas causas naturais. E por mais voltas que se dêem não se encontra outra explicação para o acidente.
No fundo, foi isso mesmo que foi proclamado como a boa doutrina nos arestos acima analisados.
Cabe-nos a reapreciação da matéria de facto e neste aspecto somos a divergir do julgamento observado na 1ª instância que se nos afigura pecar por excesso de cautela e de prudência, em prejuízo dos interesses de uma das partes no litígio, no caso a Seguradora, que é uma empresa comercial e não tem por fim prover fins mutualistas ou assistenciais.
A taxa de álcool era muito expressiva: 1,69gr/lt.
Às 7.30 da manhã, já era dia, o piso encontrava-se em boas condições, havia pouco trânsito e estava bom tempo.
O condutor, de 29 anos de idade (cfr. doc. de fls 55) não abrandou a marcha e foi colher a senhora que atravessava na passadeira.
No processo-crime, onde foi condenado (por um crime p. e p. pelo art. 66º, n.º 2 do Código da Estrada e n.º 1 e 2 do artigo 134º do CP), provou-se que o recorrido conduzia sob o efeito do álcool e o acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva sua.
No limite, em teoria, podíamos admitir que houve uma qualquer outra causa excludente do nexo causal entre o álcool e o acidente, mas entrávamos aí num domínio onde jamais seria possível provar tal nexo, só aí com infabilidade total, se não se fizesse uma abordagem objectiva, cautelosa, guiados pelas regras do bom senso, da prudência, da experiência comum e das regras da ciência.
Isto é, quando a globalidade dos factos, tudo conjugado, aponta para que o acidente resultou da diminuição da faculdades e sentidos do réu condutor do automóvel por causa do álcool, seja em função da taxa de álcool, seja em função das condições objectivas e subjectivas, nada se configurando no sentido de a afastar, há que concluir no sentido daquela causalidade.
Estamos num domínio de prova muito difícil e admite-se que só por presunções chegaremos àquela relação de causa-efeito. Admite-se que será muito mais fácil partir de uma presunção de causalidade a partir do momento em que o condutor é portador de uma taxa de álcool relevante, como é o caso.
Em termos científicos, segundo dados fornecidos pela ANSR.PT (Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária portuguesa), passamos a citar, per saltum, a acção do álcool no sistema nervoso origina feitos nefastos que prejudicam o exercício da condução. Um dos primeiros efeitos do álcool é o frequente estado de euforia, sensação de bem-estar e de optimismo, com a consequente tendência para sobrevalorizar as próprias capacidades, quando, na realidade, estas já se encontram diminuídas. É, talvez, um dos estados mais perigosos.
Sob a influência do álcool as capacidades de atenção e de concentração do condutor ficam diminuídas. A presença de álcool no sangue reduz a acuidade visual, quer para perto, quer para longe e leva à alteração dos contornos dos objectos, quer estáticos, quer em movimento. A visão estereoscópica é prejudicada, ficando o condutor incapaz de avaliar correctamente as distâncias e as velocidades. O campo visual vai diminuindo com a eliminação progressiva da visão periférica (lateral) podendo, com o aumento da intoxicação alcoólica, chegar à visão em túnel, situação em que a visão do condutor abrange única e exclusivamente um ponto à sua frente, reduzindo, assim, a fonte de informação contida no espaço envolvente. Estudos efectuados sobre o campo de visão, a uma velocidade estabilizada, comprovam que este sofre, com uma TAS de 0,50g/l, uma redução de cerca de 30%. Pequenos aumentos da TAS traduzem-se em grandes reduções do campo visual. A identificação da informação, recebida pelos órgãos dos sentidos, fica prejudicada e torna-se mais lenta. O condutor sob o efeito do álcool muito dificilmente tem consciência das suas limitações
    Designa-se por tempo de reacção o tempo que medeia entre a percepção de um estímulo e o início da resposta a esse estímulo. Face a um obstáculo ou situação imprevista que possa surgir, quando em circulação, travagem brusca do veículo que circula à frente, um obstáculo imprevisível ou qualquer outro factor inesperado - o condutor deve estar apto a reconhecer prontamente a situação de perigo potencial, analisá-la, tomar uma decisão e actuar correctamente de forma a minimizar os riscos. O álcool prejudica estas capacidades aumentando, assim o tempo de reacção.
    As bebidas alcoólicas ingeridas pelo condutor afectam, ao nível do cérebro e do cerebelo, as capacidades perceptivas e cognitivas, as capacidades de antecipação, de previsão e de decisão e as capacidades motoras de resposta a um dado estímulo, podendo afectar o próprio equilíbrio. Fica, assim, incapaz de avaliar correctamente as diferentes situações de trânsito pelas dificuldades na recolha de informação, na sua análise e ainda na tomada de decisão da resposta motora adequada e na sua concretização.
    Em caso de necessidade de efectuar uma travagem brusca devido, por exemplo, ao aparecimento de um obstáculo imprevisível na faixa de rodagem, o tempo de reacção será, nessa situação, o tempo que decorre entre a identificação, por parte do condutor, do obstáculo e o momento de accionar o travão, acção que tem como objectivo a imobilização atempada do veículo. A alcoolemia tornando mais lento o processo de identificação e aumentando o tempo de reacção leva, consequentemente, a um alongamento da distância de reacção (distância percorrida pelo veículo durante o tempo de reacção do condutor).
    O álcool desempenha um verdadeiro papel de analgésico ao nível dos centros nervosos e se, numa determinada fase, pode contribuir para criar um estado de euforia, este é posteriormente substituído por uma fadiga intensa que pode chegar até ao entorpecimento. Da mesma forma, o álcool potencia o estado de fadiga quando este já se faz sentir.
    Sob o efeito do álcool a coordenação psicomotora do condutor é afectada o que se pode traduzir em travagens bruscas desnecessárias, grandes golpes do volante, manobras feitas com recurso ao acelerador e outros comportamentos desajustados a uma condução segura.
    O risco de envolvimento em acidente mortal aumenta rapidamente à medida que a concentração de álcool no sangue se torna mais elevada.
    0,50g/l ............... o risco aumenta 2 vezes
    0,80g/l ............... o risco aumenta 4 vezes
    0,90g/l ............... o risco aumenta 5 vezes
    1,20g/l ............... o risco aumenta 16 vezes
    
     Continua a ciência a ensinar, - dados do IDMEC IST – Instituto de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico - Núcleo de Investigação dos Acidentes Rodoviários -, que
     - Até cerca de 0,8~0,9g/l é muito difícil apercebermo-nos dos efeitos do álcool;
     - A partir de 0,3g/l já estamos sob a influência do álcool;
     - 0,5g/l = 2x Risco de acidente mortal;
     - 1,2g/l = 16x Risco de acidente mortal.
     - 2.0g/l = 50x Risco de acidente mortal.
    Um estudo norte-americano realizado pelo NHTSA (National Highway Traffic Safety Administration), é muito claro no que diz respeito ao efeito causado pelo álcool nos condutores. Neste artigo mostra-se a influência do teor de álcool no sangue, na probabilidade de morte e de envolvimento num acidente rodoviário. O risco relativo de morte num acidente rodoviário aumenta com o aumento do teor de álcool no sangue e diminui com a idade dos condutores. Para o grupo de mais de 35 anos a taxa de 0.5 g/l (BAC = 0.05%) corresponde um risco de morte de 5%, no entanto, para uma taxa de 1.25 g/l (BAC = 0.125%) essa probabilidade aumenta para cerca de 30%.
    Segundo outro estudo, realizado pela Alcohol Concern (agência Inglesa relacionada com a influência da ingestão de álcool em excesso na sociedade), o consumo de álcool reflecte-se directamente na probabilidade de ocorrência de lesões em diversos tipos de acidentes, nomeadamente, os rodoviários. A influência do álcool no tempo de reacção e nas capacidades psicomotoras também é analisada, referindo-se que para uma taxa de alcoolemia entre 0.8 e 1.2 g/l o estado cujo regresso veio exercer psicológico predominante é o eufórico acompanhado pela diminuição da capacidade de visão periférica, bem como da diminuição da percepção dos obstáculos e da avaliação de distâncias.
    Numa publicação governamental norte-americana (Department of Safety) , efectua-se um resumo do efeito do álcool na condução:
Taxa [g/l]
Número de Bebidas
Risco de Acidente
Comentários
0.1 – 0.3
1 nos 15 minutos anteriores
Aumenta para jovens e para pessoas com reduzida tolerância ao álcool
-
0.4 – 0.7
2 nos 30 minutos anteriores
Risco elevado para pessoas com reduzida tolerância ao álcool
Estado de euforia, com perda de capacidade de decisão, perda de algum controlo muscular e perda de focagem ocular.
Acima de 0.8
Impossibilidade de efectuar acções simples. Poder de raciocínio e de decisão severamente afectados.
Indivíduos completamente inaptos para a condução.
1.0 – 1.2
4 nas 2 horas anteriores
Risco 7x superior ao normal
Muitos indivíduos julgam-se na plenitude das suas capacidades psicomotoras.
1.3 – 1.5
5 a 7 nas 3 horas anteriores
Risco 25x superior ao normal
Pouco controlo muscular, com elevado estado de euforia e cambaleando.
1.6 – 2.5
8 a 12 nas 4 horas anteriores
Risco 50x superior ao normal
Indivíduos confusos, necessitando de ajuda, até para se manterem em pé. Probabilidade elevada de acidentes derivados ao consumo de álcool.

Estes são elementos que nos levam também a considerar, ponderando todo o circunstancialismo fáctico, que se impõe a conclusão de que o acidente foi causado pelo álcool, para mais, não tendo sido avançada outra explicação, tendo o recorrido permanecido inerte nos autos.
Tomando a posição, como tomámos, da necessidade da comprovação da causalidade entre o álcool e o acidente, tal não obsta a que se pondere e conjugue a matéria de facto
10. Em nome da coerência não devemos deixar de referir uma aparente diferença de posição em relação ao processo nº 372/2011, de 23 /2/2012 e de novo julgado nesta Instância em 11/7/2013.
Punha-se aí igualmente a questão do direito de regresso da seguradora e, entendendo nós que necessário se mostrava comprovar a causalidade entre o álcool e o acidente, descortinámos ou pensámos existirem contradições na matéria de facto, tendo-se remetido o processo à 1ª Instância para esclarecimento e dilucidação das nossas interrogações sobre a matéria de facto. Superiormente, em seu alto critério, o V.º TUI assim não entendeu, ordenando que apreciássemos nós.
Produzido, então, julgamento, foi sufragado o entendimento tido na 1ª Instância, no sentido de se ter como não comprovado o tal nexo causal por nós reputado dever ser demonstrado. Só que, cada caso é um caso, deparávamo-nos aí com uma situação bem diferente da actual, fosse em termos de lugar, de tempo, de modo, de condições de visibilidade (noite, aproximação de uma curva, invasão da faixa contrária) e, acima de tudo, a diferença da taxa de álcool tinha algum significado, pois que ali a condutora detinha 0,89 contra os actuais 1,69, para além de não se ter comprovado, naquele caso, que houvera diminuição da atenção e da capacidade de reacção.
Não é o que se observa no presente caso.
Nesta conformidade, nos termos e fundamentos expostos, o recurso não deixará de improceder.

IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento ao recurso, e, revogando a decisão recorrida, condena-se o Réu, B, ora recorrido a pagar à Autora, C.º de Seguros da A,SA, quantia de MOP 1.068.878,00 (um milhão sessenta e oito mil oitocentos e setenta e oito patacas), peticionada nos autos, correspondente ao montante pago pela Seguradora, cujo regresso veio exercer, acrescida dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde as datas em que efectuou os pagamentos.
    Custas pelo recorrido.
Macau, 13 de Fevereiro de 2014,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho

1 - Ac. do STJ, de 7/04/2011, Revista 329/06-7ª Secção, www.dgsi.pt.
2 - Ac. STJ de 6/05/2010, processo 2148/05.6, in www.dgsi.pt/jstj.
3 - Ac. da RL de 25/02/2010, in www.dgsi.pt.
4 - Ac. do STJ, de 7/04/2011, Revista 329/06-7ª Secção, www.dgsi.pt.
5 - Ac. do STJ, de 7/07/2010, Processo 2273/03.8TBFLG.G1.S1.

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325/2011 44/44