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Processo nº 759/2013 Data: 16.01.2014
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “burla”.
“Modo de vida”.
Contradição insanável da fundamentação.
Reenvio.



SUMÁRIO

1. Comete o crime de “burla qualificada” do art. 211°, n.° 4, al. b) do C.P.M. o “agente que fizer da burla modo de vida”.

2. O conceito “modo de vida”, podendo ser alcançado através da prova de um conjunto de factos, é, em si, um “facto”, podendo ser alegado e provado.

3. Incorre-se em “contradição insanável da fundamentação” se em sede da decisão da matéria de facto se dão como provados “factos” que permitem concluir que o arguido fazia da burla modo de vida, dando-se, seguidamente, como não provado que “cometia as burlas como modo de vida”.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 759/2013
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. B (B), com os sinais dos autos, respondeu em audiência colectiva no T.J.B., vindo a ser condenada pela prática em concurso real de 1 crime de “burla (agravada)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 3, do C.P.M., na pena de 2 anos e 6 meses de prisão cada, e de 1 outro de “uso de documento de identificação alheio”, p. e p. pelo art. 251°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 7 meses de prisão.
Em cúmulo, foi a arguida condenada na pena única de 2 anos e 9 meses de prisão; (cfr., fls. 491 a 499-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido, e porque inconformados, recorreram a arguida e o Ministério Público.

Em sede de conclusões, (que limitam o objecto do seu recurso), imputa a arguida ao Tribunal a quo a violação dos art°s 40°, 48° e 65° do C.P.M.; (cfr, fls. 515 a 521-v).

Por sua vez, diz o Ministério Público que incorreu o Colectivo do T.J..B em “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a sua correcção e a alteração da qualificação jurídica da conduta da arguida para a prática de “burla qualificada”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. b), (como inicialmente acusada); (cfr., fls. 524 a 532-v).

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Neste T.S.I., emitiu o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte Parecer:

“Face aos dois recurso interpostos, um pelo Ministério Público e outro pela arguida, vamos pronunciar, em primeiro, o recurso do Ministério Público e em seguir, o recurso da arguida:
*****
Analisando os fundamentos invocados pela nossa Ilustre Colega junto à Primeira Instância, não podemos deixar de acompanhar o seu douto entendimento, no sentido de dever anular a decisão recorrida.
Relativamente à questão de verificação ou não de cinco crimes de burla em cúmulo material, bem como dois crimes de uso de documento alheio em cúmulo, pensamos que o tribunal "a quo" não andou bem na sua decisão.
No que se concerne ao crime de burla, o tribunal "a quo" entendeu que só existia, por parte da arguida, um único dolo subjectivo na sua actuação, pelo que só deve ser condenada pela prática de um único crime de burla.
Nesta matéria, somos de total concordância com a posição da nossa Ilustre Colega e talvez só valha a pena de acrescentar que, sendo certo a arguida tinha como o seu plano criminoso a venda de todos os produtos fraudulentos, mas não quer dizer que naquele momento, já tinha na sua cabeça qualquer plano concreto ou alguns eventuais "ofendidos" determinados.
Para nós, não basta este dolo "geral e abstracto" para afirmar que o agente só tinha um único dolo nas suas várias acções, capaz de abrangé-lo todos os actos isolados, pois, é natural que o agente queria obter o maior proveito possível através da sua acção.
Até na vida real, quase é inconcebível um caso de dolo único no caso semelhante, especialmente, quando os actos ilícitos todos são praticados separadamente. (cfr. os acórdãos, o n° 25/2013, o n° 40/2011 e o n° 38/2007, onde se discutiam situações semelhantes)
Com efeito, só é concebível uma caso típico do dolo único quando só com um único acto ilícito do agente é ofendido, ao mesmo tempo, patrimónios ou outros bens jurídicos não pessoal de mais que uma pessoa. Ou no caso de o agente viola, sucessivamente, o bem jurídico patrimonial da mesma pessoa mais do que uma vez.
Pois, só nestes casos poderia eventualmente afirmar que não houve renovação do dolo ou unificação dos dolos. (como pressuposto negativo do dolo único)
No caso em apreço, a cena que nós enfrentamos é diferente, ficou provado que a arguida praticou, em tempos diferentes, cinco actos de burla em relação aos cinco ofendidos também diferentes, e a única conexão, se houvesse, era o idêntico modus operantis das condutas.
E muito embora a intenção do agente é vender todos os produtos fraudulentos e de maneira mais escondida possível, mesmo assim, não se descortina qualquer factor que é capaz de ligar todos estes actos separados por um fio do "dolo único", visto que pura e simplesmente, houve já renovação do dolo.
De facto, através do primeiro ilícito cometido, a arguida ficou psicologicamente mais confiante em si própria e a ambição dela também ficou cada vez mais ilimitada, pois, isto é uma explicação plausível sobre o motivo pelo qual ela voltasse a surgir novas ideias de repetição do acto, renovando o seu dolo, e assim sucessivamente.
De tudo ficou dito, manifesto é que houve erro na qualificação jurídica dos factos feito pelo tribunal "a quo", os mesmos devem ser integrados na prática de cinco crimes de burla nos termos do art° 29, n ° 1 do C.P.M ..
*****
No que respeitante à circusntância agravante de modo de vida:
Em primeiro lugar, não nós pareça que se tivesse verificado qualquer vício de erro notório na apreciação da prova sobre a matéria de facto, pois, sendo certo que não deu como provado o facto de que a arguida praticava os ilícitos de burla como modo de vida, mas não deve ignorar que tal expressão é, no fundo, uma expressão conclusiva de uma realidade fáctica tirada de outros factos objectivos, portanto, o importante é analisar se ficaram provados factos puramente objectivos suficientes e capazes de chegar a tal "conclusão" .
Pois, não é por causa de na acusação constava esta expressão "modo de vida" que fez com que se verificava a circunstância agravante. Pelo contrário, é por causa de verificar outros factos objectivos nesse sentido que a tome como uma circunstância agravante de "modo de vida".
Nesta sede, somos de parecer que o tribunal "a quo" não andou bem na conclusão tirada por ter sido esquecido articular todos os factos objectivos pertinentes. No fundo, o que teria sucedido foi uma errada aplicação do direito.
Como dizia o Prof. José Faria da Costa no "Comentário Conimbricense do Código Penal na pag. 71:
" Temos vindo a defender que a noção modo de vida deve ser olhada menos como categoria dogmática atinente ao direito e mais como noção indesmentivelmente ligada a um valor estritamente sociológico. Uma tal forma de apreciar este elemento faz com que afastemos qualquer ligação, materialmente fundada, entre o modo de vida e a habitualidade."
No caso em apreço, muito embora o tribunal "a quo" não deu nenhuma explicação sobre o porque é que não ficou provada a circunstância agravante, mas parece que não ficou satisfeito só com o número plural dos crimes cometidos e daí se deduz que o tribunal não exige só a habitualidade ou a reiteração dos comportamentos, mas algo mais.
Vamos ver, se algo mais ficou provado nesse sentido na decisão recorrida.
Em primeiro lugar, temos como ponto de partida de que a arguida cometeu cinco vezes do mesmo crime em menos de 48 horas (entre 18/01/2013 a 20/01/2013) em relação aos cinco ofendidos distintos.
Em segundo lugar, ficou também provado que a arguida se encontrava desempregada durante seis meses à data dos factos.
Em terceiro lugar, ficou também provado que arguida sobrevivia à custa da sua poupança e tinha a arguida dois filhos a seu cargo.
Em quatro lugar, ficou provado que a arguida ter planeado previamente o modo de execução dos crimes, tudo ocorreu não por mero acaso ou espontaneidade e até que alguns crimes foram cometidos com a exibição do documento alheio.
Para nós, com os factos objectivos acima relatados, tudo leva a crer que a circunstância agravante de modo de vida ficou cabalmente demonstrada.
E como dizia o T.U.I. em vários seus acórdãos, por exemplo: o n° 25/2013, o n° 40/2011 e o n° 38/2007:
" Sem deixar de reconhecer que o conceito referido pode ser alcançado mediante a prova de um conjunto de factos que levem o Tribunal a concluir que o agente - tanto pela quantidade dos crimes de burla praticados, como da regularidade da sua prática, e do facto de o agente não exercer qualquer actividade, por conta própria ou alheia -, também se afigura que o conceito contém factos puros e simples que, como tal, podem ser alegados e provados, ... "
Assim sendo, deve ser alterada a decisão de não verificação da circunstância agravante de modo de vida, condenando a arguida como autora material, e na forma consumada e em cúmulo material, de prática de cinco crimes de burla, previsto e punido nos termos do art° 211, n° 4, al. b) do C.P.M.
*****
Quanto à qualificação jurídica dos crimes de uso de documento falsificado.
Nesta sede, temos quase a mesma cena do crime de burla acima já analisada.
Efectivamente, não nos descortinamos como é que o uso, por duas vezes, em circunstâncias totalmente diferentes, em relação aos sujeitos também diferentes, do documento alheio, possa auferir aí um dolo único.
E muito embora que a arguida tivesse a intenção de uso ilimitado de tal documento quando era necessário, tratava-se de um plano inicial sem nenhum conteúdo concreto.
Porém, ao decidir usar, por duas vezes, tal documento alheio em situações e tempos diferentes, para se identificar a si própria perante terceiros concretos, e nas circunstâncias de tal uso se destinava ao encobrir a sua verdadeira identidade no momento de prática do crime de burla (não é uma relação de crime-meio e crime-fim), houve, para nós, necessariamente uma renovação do dolo.
Pelo que nesta parte da decisão recorrida também carece de ser corrigida, condenado a arguida como autora material, na forma consumada, de prática de dois crimes de uso de documento de identificação alheia.
Na sequência de eventual procedência do recurso, há de reformular tanto as penas parcelares como a pena única resultante do cúmulo.
Para nós, atendendo às circunstâncias -concretas do caso, nomeadamente, a confissão parcial dos factos, o grau de culpa da arguida, a gravidade dos factos e considerando a moldura penal estatuída nos art° 211, nº s 1 e 4 e art°251, n° 1 do C.P.M., parece-nos ajustada uma pena de não menos de dois anos e seis meses para cada um dos crimes de burla e mantendo a pena de sete meses de prisão para cada um dos crimes de uso de documento de identificação alheio.
E observando o preceito legal do art° 71, nº 1 e 2 do C.P.M, a pena única não deve ser fixada em menos de cinco anos de prisão.
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E no que se diz respeito ao recurso interposto pela arguida:
A única questão levantada pela arguida é sobre a suspensão de execução da pena.
Ora, independentemente da procedência ou não do recurso interposto pelo Ministério Público, pensamos que a pena aplicada pelo tribunal "a quo" não deve ser suspensa na sua execução.
Em primeiro lugar, e como nós já referimos antes, a arguida não confessou integralmente os facto acusados, daí que não se verifica qualquer arrependimento relevante em termos da diminuição da culpa, até fazendo com que é difícil ao tribunal formular o juízo de prognose favorável em relação ao futuro comportamento da recorrente.
Em segundo, dado que o fenómeno de burla, especialmente, através de empenhamento dos objectos fraudulentos em casas de penhor ainda é um fenómeno criminal frequente na R.A.E.M., de modo que sempre é grande a expectativa da sociedade em salvaguardar o bem jurídico de património entretanto violado, isto é, subsiste ainda grande necessidade em termos de prevenção geral.
Tudo conjugado, torna-se manifesta a improcedência do recurso interposto pela recorrente, e o mesmo deve ser rejeitado.
Eis o nosso parecer”; (cfr., fls. 551 a 555).

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Cumpre conhecer.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 493-v a 495-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Dois são os recursos interpostos nos presentes autos.

Um, pela arguida, imputando ao Acórdão recorrido o vício de violação aos art°s 40°, 48° e 65° do C.P.M., e o restante, pelo Ministério Público, assacando ao mesmo veredicto o vício de “erro notório na apreciação da prova” e de “erro na qualificação jurídico-penal”.

3.1. Atentas as questões colocadas, e como se mostra lógico, é de começar pelo “recurso do Ministério Público”, e pelo assacado vício de “erro notório na apreciação da prova”.

Vejamos.

Repetidamente tem este T.S.I. dito que “o erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 05.12.2013, Proc. n.° 714/2013 do ora relator).

No caso, e pronunciando-se em relação ao vício agora em questão, considera o Ilustre Procurador Adjunto que certo sendo que o Tribunal a quo deu como “não provado” que a arguida “praticava os crimes de burla como modo de vida”, (o que se confirma), e ainda que esteja tal decisão em oposição com outra factualidade dada “como provada”, (que expressamente indica no seu douto Parecer, e, mostrando-se igualmente de confirmar, aqui se dá como reproduzida), implicando a constatação que a arguida “praticava os crimes de burla como modo de vida”, tal não encerra nenhum “erro notório na apreciação da prova” dado constituir tal conceito uma “conclusão” que, de qualquer forma, não devia (nem constar da acusação, nem) da decisão da matéria de facto.

Será de se acompanhar o assim entendido?

Sem embargo do muito respeito por opinião em sentido diverso, cremos que a resposta terá que ser de sentido negativo.

Aliás, como em relação ao conceito “modo de vida” já decidiu o Vdo T.U.I. no seu douto Acórdão de 10.10.2007, Proc. n.° 38/2007, “sem deixar de reconhecer que o conceito referido pode ser alcançado mediante a prova de um conjunto de factos que levem o Tribunal a concluir que o agente «faz da burla modo de vida» - tanto pela quantidade dos crimes de burla praticados, como da regularidade da sua prática, e do facto de o agente não exercer qualquer actividade, por conta própria ou alheia -, também se afigura que o conceito contém factos puros e simples que, como tal, podem ser alegados e provados…”.

Nesta conformidade, e mostrando-se de acompanhar o Ilustre Procurador Adjunto quando considera que a restante factualidade dada como provada permite a consideração de que a arguida “praticava burlas como modo de vida”, impõe-se concluir que ao dar como não provado tal aludido “modo de vida”, incorreu o Tribunal a quo em “contradição insanável da fundamentação” por incompatibilidade do assim decidido com outra matéria de facto dada como provada, (a indicada no Parecer), e, sendo o aludido vício insanável, outra solução não parece existir que não seja o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.M., prejudicadas ficando a apreciação de outras questões colocadas pelo Ministério Público e pela arguida, (já que tanto a questão da “qualificação jurídico-penal” assim como a da “medida da pena” exigem, para a sua decisão, uma matéria de facto sem vícios).

Decisão

4. Nos termos que se deixam expostos, acordam determinar o reenvio dos autos nos exactos termos consignados.

Custas pela arguida com taxa que se fixa em 4 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor Oficioso no montante de MOP$1.200,00.

Macau, aos 16 de Janeiro de 2014

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng (vencido, por subscrever inteiramente a posição vertida no douto parecer do M.P.).



Proc. 759/2013 Pág. 18

Proc. 759/2013 Pág. 1