Processo nº 262/2013 Data: 06.03.2014
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “ofensa qualificada à integridade física”, (art. 140° do C.P.M.).
Crime público.
Queixa.
Desistência.
SUMÁRIO
O crime de “ofensa qualificada à integridade física”, p. e p. pelo art. 140° do C.P.M. tem a natureza de “crime público”, (sendo um crime autónomo em relação ao de “ofensa simples”, p. e p. pelo art. 137°), pelo que, não estando o exercício da acção penal dependente de queixa, irrelevante é a sua desistência pelo ofendido.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 262/2013
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. O Digno Magistrado do Ministério Público requereu o julgamento de A (XXX), arguido com os restantes sinais dos autos, imputando-lhe a prática de 1 crime de “ofensa qualificada à integridade física”, p. e p. pelos art°s 140°, n.° 1 e 2, 137°, n.° 1 e 129°, n.° 2, al. h), todos do C.P.M.; (cfr., fls. 31 a 32 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Remetidos os autos ao T.J.B., e perante a desistência da queixa pelo ofendido e não oposição do arguido, foi aquela homologada, determinando-se o arquivamento dos autos; (cfr., fls. 93 a 93-v).
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Inconformado, o Ministério Público recorreu, motivando e concluindo para, em síntese, afirmar, que dada a “natureza pública” do crime imputado ao arguido, irrelevante era a referida desistência da queixa, pedindo assim a revogação da decisão recorrida; (cfr., fls. 98 a 100).
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Sem resposta, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, e em douto Parecer, pugna também o Ilustre Procurador Adjunto pela procedência do recurso; (cfr., fls. 111 a 111-v).
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Cumpre decidir; (nos termos do art. 19° do Regulamento Interno de Funcionamento deste T.S.I., cfr., B.O. n.° 5, II, de 02.02.2000, pág. 113).
Fundamentação
2. Como sabido é, nos recursos penais, o “thema decidendum” é delimitado pelas conclusões pelo recorrente formuladas em sede da sua motivação de recurso, com excepção das questões de que o Tribunal de recurso possa conhecer “ex officio”.
Dito isto, e merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.
Pois bem, vem o Ministério Público recorrer da decisão pelo Mmo Juiz do T.J.B. proferida que, perante a desistência da queixa pelo ofendido dos autos, e julgando-a válida e eficaz, determinou o seu arquivamento.
Diz que tendo o crime imputado ao arguido a natureza de “crime público”, irrelevante era a sua desistência pelo ofendido, pedindo assim a revogação da decisão recorrida.
Nesta conformidade, e sendo assim de se considerar que o “objecto do presente recurso” cinge-se à questão de saber qual a “natureza” do crime de “ofensa qualificada à integridade física” imputado ao arguido, e, consequentemente, se válida é a sua “desistência da queixa”, “quid iuris”?
Ora, sem prejuízo do muito respeito por opinião em sentido diverso, temos para nós que acertado é o entendimento do Exmo. Magistrado recorrente, afigurando-se-nos evidente a procedência do recurso; (aliás, sobre idêntica questão já tivemos oportunidade de nos pronunciar, v.g., no Ac. de 07.03.2013, tirado no Proc. n.° 994/2012, do mesmo relator, e não obstante nova reflexão, motivos não temos para alterar a solução então encontrada).
Vejamos.
Nos termos do art. 37° do C.P.P.M., “o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos seguintes”, estatuindo o (seguinte) art. 38° que:
“1. Quando o procedimento penal depender de queixa, é necessário que a pessoa com legitimidade para a apresentar dê conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
2. Para o efeito previsto no número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
3. A queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais”.
E, atento o assim preceituado, e abordando questão relacionada com a ora em causa, teve já este T.S.I. oportunidade de afirmar que “sendo o crime de “furto” (simples) p. e p. pelo art.° 197.°, n.° 1 do CPM, um crime de natureza “semi-pública” (cfr. n.° 3 do referido art.° 197.°), para que por ele possa o Ministério Público promover o respectivo processo penal, imprescindível é que, nos termos do art.° 38.°, n.° 1 do CPPM, tenha o ofendido, oportunamente, apresentado a devida queixa, pois que, neste caso, tal “”manifestação de vontade”, constitui condição de procedibilidade, uma condição “sine qua non” do exercício da acção penal ”, e que, “a denúncia criminal, em relação a crimes particulares ou semi-públicos, tem carácter pessoal (cfr. art.° 38.°, n.° 3 do CPP) – o que determina a falta de legitimidade do M.° P.° para a acção penal e gera uma situação que dá lugar à absolvição da isntância”; (cfr., os Acs. de 12.12.2002, Proc. n.° 133/2012 e de 20.10.2005, Proc. n.° 210/2005).
Por sua vez, preceitua o art. 105°, n.° 1 do C.P.M. que:
“Quando o procedimento penal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
Dos preceitos legais citados (assim como do que até aqui se expôs), pode-se extrair a regra segundo a qual a legitimidade do Ministério Público para a promoção da acção penal só depende de queixa do ofendido, (ou de outra pessoa a quem a lei reconhece o direito de a apresentar), nos casos que exista disposição legal (expressa) que exija o preenchimento de tal requisito.
Nos demais casos, (e abstraindo agora das situações em que é exigida acusação particular), a promoção do procedimento criminal tem carácter estritamente público; (constituindo nulidade insanável o seu não exercício quando devido – art. 106°, al. c) do C.P.P.M.).
Em anotação ao enunciado no atrás transcrito art. 105° do C.P.M. salientam L. Henriques e S. Santos o que segue (e que vale a pena aqui recordar):
“Este artigo foca a questão de saber a quem compete a iniciativa do desencadeamento da investigação da prática de um crime e a decisão de o submeter ou não a julgamento: saber se essa iniciativa deve pertencer a uma entidade pública (representando o interesse da comunidade organizada) ou a qualquer entidade particular, designadamente ao ofendido pela infracção.
Foi consagrado o princípio da oficialidade, o que significa que a iniciativa e o impulso processuais da investigação prévia e da submissão a julgamento das infracções criminais competem oficiosamente às entidades públicas a quem a lei confere o encargo daquela investigação e aos tribunais criminais.
Considerando-se o direito penal como direito de "protecção" dos bens fundamentais da comunidade e o processo penal como " um assunto da comunidade jurídica", em nome e no interesse da qual se tem de esclarecer o crime e perseguir e punir o criminoso, toma-se de imediato compreensível que a generalidade das legislações actuais, e entre elas a nossa, vote no sentido de reputar a promoção processual das infracções tarefa estadual, a realizar oficiosamente e portanto em completa independência da vontade e da actuação de quaisquer particulares» (FIGUEIREQO DIAS, Direito Processual Penal, pág. 117).
Mas o princípio da oficialidade sofre limitações que resultam, além do mais, da existência de crimes semi-públicos e de crimes particulares, indicados na Parte Especial. Fala a Doutrina a esse propósito em:
- crimes públicos: aqueles em que o M.°P.° desencadeia oficiosamente o procedimento criminal e exerce com plena autonomia a acção penal;
- crimes semi-públicos: aqueles em que a legitimidade do M.°P.° para exercer a acção penal necessita de ser integrada com uma queixa (n.° 1 deste artigo);
- crimes particulares: aqueles em que a legitimidade do M.°P.° para exercer a acção penal necessita de ser integrada não só com uma queixa, mas também com uma acusação particular.
Na parte especial do Código indica o legislador quais os crimes que exigem queixa (crimes semi-públicos) e quais os que exigem acusação particular (crimes particulares), sendo públicos os restantes.
A exigência de queixa e de acusação particular vai buscar o seu fundamento:
- à diminuta gravidade da infracção - certas infracções (por ex. ofensas à integridade física simples, dano, injúrias, etc.), atenta a sua pequena gravidade, não violam de modo directo e imediato bens jurídicos fundamentais da comunidade, a merecer, por parte desta, uma reacção automática. Esta reacção só surge mediante expressa manifestação de vontade das pessoas directamente ofendidas;
- especial natureza dos valores em causa - certos crimes atingem valores em relação aos quais se impõe especial discrição (por ex., os crimes sexuais). Aí a promoção processual, sem ou contra a vontade do ofendido, pode ser inconveniente para interesses seus dignos de toda a consideração. Daí que se lhe dê prevalência”; (cfr., “C.P.M. Anotado”, pág. 262 a 263 e, também sobre a matéria, L. Henriques in “Anotação e Comentário ao C.P.P.M.”, 2013, Vol I., pág. 272 e segs.).
Não se olvida que o art. 108°, n.° 2 do C.P.M. permite ao queixoso a “desistência da queixa”, (sendo que a “desistência impede que a queixa seja renovada”).
Contudo, esta (desistência) só será “válida” e “eficaz”, produzindo o efeito de extinguir o procedimento criminal, nos casos em que a lei condiciona a promoção deste à apresentação daquela, pois que relativamente aos crimes de natureza (procedimental) pública, a desistência da queixa é ineficaz.
Em causa estando o crime de “ofensa qualificada à integridade física”, (do art. 140° do C.P.M.), importa então apurar da sua “natureza”.
Pois bem, como crime “contra a integridade física” – integrado no Capítulo III do C.P.M. – inegável é que o mesmo tem como “tipo padrão” o crime de “ofensa simples à integridade física”, p. e p. pelo art. 137°, onde se prescreve que:
“1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. O procedimento penal depende de queixa.
3. O tribunal pode dispensar de pena quando:
a) Tiver havido lesões recíprocas e não se tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou
b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor”.
Por sua vez, no art. 140° do C.P.M. onde se prevê o crime de “ofensa qualificada à integridade física” imputado ao arguido, estatui-se que:
“1. Se a ofensa prevista nos artigos 137.º, 138.º ou 139.º for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com a pena aplicável ao crime respectivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
2. São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 129.º”.
E do cotejo do assim preceituado logo se constata a diferença no que toca à “natureza dos ilícitos” do art. 137° e 140° do C.P.M..
Com efeito, certo sendo que são “públicos” os crimes a que a lei penal não confere, expressamente, outra natureza, (exigindo “queixa” ou “acusação particular”), e tendo-se presente o que atrás se deixou dito sobre tal matéria, (citando-se L. Henriques e S. Santos), há que ter em conta que enquanto no n.° 2 do art. 137° se estatui (expressamente) que “o procedimento penal depende de queixa”, (sendo assim um crime “semi-publico”), nada se diz no art. 140°, (o mesmo sucedendo, v.g., com o ilícito do art. 138° que prevê o crime de “ofensa grave à integridade física”).
Ora, verificando-se que o legislador condicionou o procedimento penal à existência de “queixa” (do ofendido) no art. 137°, deixando de o fazer – (logo) em relação ao art. 138°,139° e – no art. 140° ora em questão, (voltando a consagrar tal “pressuposto” no art. 142°, onde se regula o crime de “ofensa à integridade física por negligência”), adequado se nos mostra de considerar que tal “diferença” não pode deixar de significar uma clara e (intencional) vontade de o regular de forma distinta, sob pena de absoluta inutilidade do estatuído no art. 8° do C.C.M., (nomeadamente, no seu n.° 3), onde se preceitua que:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Dest’arte, sendo também este, tanto quanto julgamos saber, o entendimento da doutrina sobre a questão – cfr., v.g., Miguel Garcia in “Direito Penal - Passo a Passo”, pág. 165 e segs. e Maia Gonçalves in “C.P. Anot. e Com.”, 18ª ed., pág. 574, onde comentando o crime de “ofensa à integridade física por negligência”, cuja descrição legal é idêntica à do art. 142° do C.P.M., afirma que a disposição do n.° 4, onde se estatui que o “procedimento criminal depende de queixa”, atribuindo ao crime a natureza de crime semi-público, “não podia deixar de ser formulada em vista de norma idêntica para os crimes dolosos de ofensa à integridade física simples”, tendo “ainda o alcance de deixar bem explícito que o crime de ofensa à integridade física por negligência é sempre semi-público, portanto também nos casos em que resulta uma ofensa grave, contrariamente ao que sucede com o crime doloso, em que só o crime de ofensa à integridade física simples reveste a natureza de semi-público” – mais não parece necessário consignar para se justificar a solução que se mostra adequada, (de considerar o crime em questão um “crime público”), não se podendo assim manter a decisão recorrida.
De facto, não sendo o crime em questão “semi-público”, mas sim “público”, irrelevante – inoperante – é a “desistência de queixa” de quem quer que seja, ao Ministério Público assistindo pois legitimidade para (de forma autónoma) promover o procedimento criminal. (Aliás, não se olvide também que no art. 37°, al. c) e e) da “Lei da Criminalidade Organizada”, Lei n.° 6/97/M, 30.07, se declara ser “crime público” a “ofensa simples à integridade física de que resulte doença ou impossibilidade para o trabalho por mais de 10 dias” e a “ofensa simples à integridade física contra agente ou funcionário investido de autoridade pública”, sendo este o caso dos autos).
Dir-se-á, porém, que o crime em questão reveste a natureza de crime “semi-público”, uma vez que os elementos qualificativos se referem à culpa e não ao tipo, sendo um complemento do tipo legal original, (o crime de “ofensa simples à integridade física”), que também reveste natureza semi-pública.
Ora, (também) não se mostra de acolher tal raciocínio.
Com efeito, o crime em causa constitui um “tipo penal autónomo”, no qual o legislador quis punir de forma mais severa uma conduta mais grave, qualificando e agravando o tipo legal que lhe serve de base, sempre que o Tribunal considere verificadas e provadas as respectivas agravantes, sendo que as semelhanças entre os dois tipos terminam (exactamente) aqui. Isto é, ao tipo legal fundamental, (“ofensa simples”), vão se buscar os seus elementos típicos – ofensa no corpo ou na saúde, com todas as suas envolventes, mas criou-se um “tipo de crime novo”, resultante do acrescentamento de novos elementos que incidem sobre a culpa e que exigem uma valoração própria e independente; (no sentido de ser um crime “público” e “autónomo” do de “ofensa simples à integridade física”, vd., v.g., os Acs. da Rel. do Porto de 16.12.1987, de 25.03.1992, de 13.11.1996, de 18.10.2000, de 27.10.2004 e de 29.11.2006, e da Rel. de Lisboa de 22.11.1995, de 02.05.2000, de 11.12.2001 e de 22.05.2003, in “www.dgsi.pt”, aqui citados como mera referência).
Na verdade, são numerosos os casos em que a lei penal faz depender de queixa o procedimento criminal por determinados crimes na sua variante “simples”, (isto é, não qualificada ou agravada), consagrando o carácter público do procedimento relativo aos crimes “qualificados” ou “agravados”; (neste sentido, cfr., o Ac. Rel de Lisboa de 13.10.2010, Proc n.° 36/09, no sítio já referido).
Tal é (v.g.) o que sucede com grande parte dos crimes contra a propriedade e contra o património, como sejam os crimes de “furto”, “abuso de confiança”, “dano”, “burla”, “burla relativa a seguros” e “abuso de cartão de garantia ou de crédito”; (cfr., art°s 197°, 198°, 199°, 205°, 207°, 211°, 212° e 218° do C.P.M.).
Decisão
3. Nos termos e fundamentos expostos, acordam julgar procedente o recurso.
Sem tributação, uma vez que o arguido não deu causa ao recurso, não tendo também apresentado resposta pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
Macau, aos 6 de Março de 2014
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng (subscrevo a decisão com base na posição jurídica já veiculada no acórdão de 19/7/2012 deste TSI no Processo n.º 549/2012).
Choi Mou Pan (Vencido, mantenho-me a posição tomada na declaração contida no processo nº 210/2011)
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Proc. 262/2013 Pág. 19