Proc. nº 199/2008
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 13 de Março de 2014
Descritores:
-Petição inicial
-Nova petição inicial corrigida
-Indeferimento liminar
SUMÁRIO:
I - Face a um pedido formulado pela Ré de desentranhamento da petição inicial apresentado pelas AA, tendo o juiz da 1ª instância referido, em despacho posterior, que já se tinha esgotado o seu poder judicial com o indeferimento liminar de que fora interposto recurso jurisdicional para o TSI, e que não detinha competência para o apreciar, isso não significa, obviamente, que indeferia o pedido de desentranhamento, mas que já o não podia decidir nessa fase do processo.
II - Se imediatamente após a apresentação de uma petição inicial na secretaria do tribunal, e antes mesmo do pagamento do preparo inicial devido, os autores substituem aquela e apresentam uma outra petição corrigida quanto a um determinado aspecto, tendo o juiz do processo indeferido liminarmente a petição sem dizer a qual delas se referia, deve entender-se que aludia à mais recente.
III - À mais recente, por ser aquela a que os seus apresentantes (AA) queriam atribuir os efeitos da abertura da instância, aquela que quiseram fazer prevalecer em prejuízo da primeira e a única que com o despacho de citação (se o existisse) iria desencadear a relação triangular AA-tribunal-RR.
Proc. nº 199/2008
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
B, aliás, B1, aliás, B2, viúva, natural de Hong Kong, de nacionalidade chinesa, residente em ..., ...... Road, ...º andar, “...” e “...”, ...... Court, Hong Kong, e
“C Inc.”, sociedade comercial constituída no Panamá, com escritório de representação em ...... Street, nº ..., ...... Tower, ...º andar, Penthouse …-…. Hunhom, Kowloon, em Hong Kong,
intentaram no Tribunal Judicial de Base da RAEM acção declarativa comum, com processo ordinário, contra a “D, SA”.
Visando impedir a ré de vender ao Banco F (BF) a sua participação social de 70% no capital do Banco G, SA., sem que previamente esteja concluído o processo de reforma do respectivo livro de Registo das Acções.
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As autoras, antes mesmo de qualquer despacho liminar, apresentaram pedido para a junção de nova petição inicial, visando corrigir o valor indicado no art. 11º da primeira petição. E, acto contínuo, juntaram novo articulado já corrigido (fls. 218 a 238).
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A petição inicial foi, porém, indeferida liminarmente por despacho de19/11/2007 (fls. 243 a 246).
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É contra esse despacho que as autoras da acção se insurgem no presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso tem por objecto o douto despacho proferido no Proc. N.º CV2-07-0067-CAO, o qual indeferiu liminarmente a petição inicial, considerando que era manifesto que a pretensão das AA., ora recorrentes não podia proceder, dado os argumentos avançados pelas mesmas - a) incerteza quanto à qualidade de accionistas, derivada do desaparecimento do Livro de Registo de Acções da Ré, ora recorrida; b) importância da decisão da venda em negociação na vida da sociedade).
2. Porém, as recorrentes suscitaram, também, a nulidade das aquisições de acções nominativas da recorrida por parte de alguns dos actuais membros do Conselho de Administração, uma vez que, tratando-se de sócios não fundadores, as transmissões a seu favor careceria, sob pena de nulidade, de autorização governamental, a qual nunca foi emitida, conforme atesta o ofício n.º 448/CONF/2006, de 29/9/2006, emitido pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos de Macau (Doc. n.º 58, junto aos autos) – cf. art. 14º, n.º 2 da Lei n.º 6/82/M, de 29 de Maio e art.º 17.º, n.º 7 da Lei 16/2001, de 19 de Setembro.
3. Tendo sido suscitada tal questão, o tribunal a quo não podia deixar de se pronunciar sobre ela, pelo que, não o tendo feito, violou o disposto no art. 263º, n.º 3 do CPC de Macau em conjugação com o art. 279º do CC, incorrendo a referida decisão no vício de nulidade previsto na parte da al. d) do n.º 1 do art. 571º do Código de Processo Civil (CPC), por omissão de pronúncia.
4. Entendeu, ainda, o tribunal a quo que o caso dos autos constituía uma “lacuna a integrar ao abrigo do disposto no art. 9º do CC.”, concluindo que “Atenta a similitude da situação prevista no supramencionado regime [o constante dos arts. 861º a 866º do CPC de Macau], é de aplicar analogicamente o art. 864º do CPC ao presente caso.”.
5. Porém, a regulamentação desta disposição assenta na existência duma prévia decisão da anulação provisória do título. Ou seja, ainda que não sendo definitiva, entendeu o legislador que tal resolução é já indício suficiente da qualidade de credor por parte do autor, e, por isso, permite-lhe praticar actos de conservação do seu direito, ou mesmo exigir o respectivo pagamento, ainda que sob prestação de caução.
6. Ora, no caso sub judice, a incerteza quanto à qualidade de accionistas da recorrida não decorre apenas do desaparecimento do seu Livro de Registo de Acções (como parece ter entendido o tribunal recorrido), mas também da nulidade das aquisições de acções que fundam a qualidade de alguns dos seus accionistas e administradores.
7. Mais do que o registo de tais transmissões no respectivo Livro, é a própria validade da aquisição do título que se põe em causa, por incumprimento de um requisito indispensável e exigido imperativamente por lei.
8. No caso concreto, a mera posse dos títulos nominativos e a inscrição do nome nesses títulos não indicia a legalidade da qualidade de accionistas da recorrida das sociedades H Company Limited e I Limited, porquanto não existe na Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos de Macau quaisquer informações ou documentação sobre a transmissão das acções a seu favor, e portanto da necessária autorização do Governo da RAEM.
9. A inexistência de quaisquer registos da indispensável autorização governamental aponta para que tais sociedades não possam ser accionistas nem administradoras da recorrida, por nulidade ope legis das suas aquisições - questão que prejudica qualquer valoração sobre a posse de tais acções.
10. Não procedem, portanto, no caso concreto, as razões justificativas da regulamentação da situação prevista no art. 864º do CPC, pois, ao contrário do pressuposto por tal norma, inexistem elementos que indiciem a razoabilidade da decisão de permitir aos beneficiários dos títulos exercer os seu direitos, o que impossibilita a aplicação analógica desse preceito do CPC ao abrigo do art. 9º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil in casu.
11. Deste modo, incorreu o despacho recorrido num erro de determinação da norma aplicável, nos termos do art. 598º, n.º 2, al. c) do CPC, devendo ter sido aplicado ao caso sub judice o n.º 3 do art. 9º do CC, em vez dos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo.
12. Contudo, ainda que se aceitasse a aplicação analógica do art. 864º do CPC ao caso dos autos, o que se admite por mera cautela de patrocínio e em termos meramente hipotéticos, o sentido que dela resultaria seria diverso daquele que lhe deu o Mm.º Juiz a quo.
13. O sentido do art. 864º, n.º 1, do CPC é unicamente permitir ao autor praticar os actos de conservação tendentes à manutenção do status quo do seu crédito. E mesmo que o autor pretenda reclamar o seu pagamento, no caso de o título já estiver vencido ou for pagável à vista, terá de prestar caução, como medida cautelar. Não se retira, portanto, qualquer permissão ao autor para proceder a actos de disposição do seu direito, transmitindo-o ou onerando-o.
14. Sobre a distinção entre actos de conservação (incluídos na administração ordinária ou mera administração) e actos de disposição (administração extraordinária), se pronunciaram XXXXX e XXXXX, sendo unânime a enumeração dos actos que integram um ou outro tipo de administração.
15. Resultaria da hipotética aplicação analógica do art.º 864º do CPC que os titulares das acções nominativas de uma sociedade cujo Livro de Registo de Acções desaparecera apenas poderiam praticar actos tendentes à conservação dos direitos decorrentes do seu título, ou seja, deliberar e levar a cabo actos de conservação do património da sociedade (mera administração ou administração ordinária).
16. Assim, ao interpretar em sentido oposto, incorreu o tribunal a quo em erro de julgamento, por imperfeita análise do direito e incorrecta interpretação e aplicação do art. 864º, n.º 1, do CPC ao caso sub judice, para efeitos do art. 598º, n.º 2, al. b) do CPC.
17. Entendeu ainda o Mm.º Juíz a quo que a pretensão das recorrentes, ao consistir numa negação da capacidade de gozo da recorrida estabelecida no art. 177º do Código comercial, poderia por em causa a sobrevivência económica da recorrida.
18. Acontece, porém, que a legalidade/legitimidade dos órgãos deliberativos e de administração da recorrida, bem como dos respectivos actos, estão profundamente prejudicadas porquanto: a) alguns accionistas e administradores não o poderiam ser, uma vez que as transmissões de acções da recorrida a seu favor são nulas ipsa vi legis; b) o desaparecimento do livro de registo de acções da recorrida impede o cumprimento de disposições legais e estatutárias.
19. Para além disso, esperando que o Conselho de Administração conclua venda da participação social que a recorrida detém no Banco G, SA, para depois se proceder à respectiva impugnação, como parece sugerir o tribunal a quo, corre-se o risco de a própria sociedade recorrida, por não puder cumprir o acordado dada a nulidade dos seus actos, incorrer em avultados prejuízos decorrentes de eventuais indemnizações à entidade terceira a título de responsabilidade contratual.
20. Assim, até que tais questões não sejam definitivamente esclarecidas, tais órgãos devem remeter-se meramente à prática dos actos referentes a matérias correntes da sociedade, de acordo com a doutrina da necessidade, devendo abster-se de decisões que interfiram com aspectos estruturais da sociedade, numa medida de evidente razoabilidade, tendente a proteger os interesses da sociedade e dos próprios accionistas.
21. Pelo que, não decidindo neste sentido, incorreu o despacho ora em crise em novo erro de julgamento, pois o art. 177º do Código Comercial em nada impede o deferimento da pretensão das recorrentes.
22. O despacho de indeferimento liminar visa realizar o princípio da economia processual, pois se o malogro da pretensão aí deduzida se apresenta de tal forma fatal e inevitável, há pois que admitir que o prosseguimento do processo com a sua instrução e discussão constitui um desperdício manifesto da actividade judicial (pode ler-se no sumário do douto Acórdão desse Venerando Tribunal de 3 de Fevereiro de 2005, explicitado no processo n.º 10/2005, recurso em processo civil);
23. Contudo, sendo o indeferimento liminar por evidente improcedência da pretensão apresentada um indeferimento baseado em razões de fundo (mérito da pretensão), não é de se proferir tal decisão quando a questão em causa tenha soluções controvertidas na doutrina e na jurisprudência (lê-se, no ponto 2 do sumário do citado Ac.), subscrevendo-se: nessa Alta Instância o entendimento preconizado pelo Prof. Alberto dos Reis no se1tido de que o indeferimento baseado em razões de fundo (mérito da pretensão) é um poder jurisdicional a exercer em casos extremos.
24. Atenta a matéria alegada e as questões apresentadas, na petição inicial, pelas AA, ora recorrentes, verifica-se que não foram todas equacionadas pelo douto Tribunal “a quo”, tudo indicando que foi inadequada a decisão proferida de que se recorre.
TERMOS EM QUE, contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, se requer que, independentemente do sentido que a solução deva ou possa vir a ter em definitivo, nomeadamente no que concerne às consequências da proibição da Ré, ora Recorrida, de vender a participação social que detém no Banco G, SA até que esteja concluído o processo de reforma do Livro de Registo de Acções da Ré e em que medida tal pretensão corresponde à subversão de todo o regime legal das pessoas colectivas, tendo em consideração todas as questões apresentadas pelas AA, na p.i., se julgue que não é evidente que a pretensão das mesmas não possa proceder e daí que não seja admissível o indeferimento liminar nos termos da alínea d) do n.º 1 do art.º 394.º do Código de Processo Civil, concedendo-se, assim, provimento ao recurso e, em consequência revogando-se a decisão recorrida e determinando-se a substituição do despacho de indeferimento por outro que mande prosseguir o processo, nos termos legais.».
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A D, ora recorrida, apresentou resposta ao recurso, em cujas alegações formulou as conclusões que seguem:
«1. O contrato de compra e venda das acções representativas do capital social da sociedade G, S.A. de que a ora Recorrida era dona foi celebrado em 29 de Agosto de 2008;
2. O pedido que se acha deduzido pelas Recorrentes nos presentes Autos é, singelamente, o de que a ora Recorrida seja (sic) “ (...) proibida de vender a qualquer pessoa singular ou colectivo, e assim ao Banco F, S.A. a participação social que detém no Banco G sem que esteja previamente concluído o processo / de reforma do Livro de Registo de Acções.”
3. Porque assim é, o pedido deduzido é originariamente impossível, ou inútil, circunstância esta legalmente qualificada como excepção peremptória, conducente à absolvição da Recorrida do pedido, nos termos do conjugadamente disposto nos nºs 1 e 3 do Artigo 412º e cujo conhecimento oficioso, designadamente em via de recurso, resulta do disposto no Artigo 415º do mesmo Diploma.
4. Na hipótese em que deva entender-se que a utilidade ou possibilidade do pedido deduzido nos presentes Autos poderia ter subsistido até ao momento em que, por forca da verificação das condições suspensivas a que foi originariamente subordinado, o referido contrato produziu plenamente os seus efeitos, dever-se-á, então concluir pela impossibilidade, ou inutilidade, superveniente do pedido, com a consequente extinção da instância, nos termos do disposto na alínea e) do Artigo 229º do Código de Processo Civil.
5. Requer-se que esse Venerando Tribunal promova o desentranhamento de uma segunda Petição Inicial, entranhada nos Autos em 11 de Novembro de 2007, sem despacho de admissão e sem que se achasse verificado qualquer dos pressupostos de que, nos termos do disposto no Artigo 396º do Código de Processo Civil depende a admissibilidade da reforma da Petição Inicial.
6. Não corresponde à verdade que o Tribunal a quo não se haja pronunciado sobre a questão, suscitada pela ora Recorrentes, relativa à existência de dúvidas suas sobre a qualidade de accionistas da ora Recorrida de pessoas que integram o respectivo Conselho de Administração, por essa via, em omissão de pronúncia justificativa da declaração de nulidade da Sentença recorrida;
7. Procede-se à identificação dos trechos da Sentença recorrida em que, justamente, o Tribunal a quo sobre essa mesma questão se pronúncia, não obstante o facto de que, a final, o pedido deduzido pelas Recorrentes tenha implicado uma redução expressa da causa de pedir - “ (...) ser a Ré proibida de vender (...) sem que esteja previamente concluído o processo de reforma do Livro de Registo de Acções”;
8. De todo o modo, o facto de que o Tribunal recorrido não haja debatido com as ora Recorrentes, ponto por ponto, a respectiva argumentação de direito quanto àquela mesma matéria não constitui omissão de pronúncia relevante nos termos e para o efeito do disposto na alínea d) do no. 1 do Artigo 571º do Código de Processo Civil, o que, aliás, coerentemente se confirma pela análise e explicação da disciplina constante da primeira parte do Artigo 567º daquele mesmo Código e pela do no. 2 do Artigo 563º do mesmo Código;
9. Procede-se à ilustração e fundamentação da conclusão anterior pela análise, no curso das contra-alegações, das passagens relevantes da alegação das Recorrentes e pelos termos de fundamentação do despacho recorrido.
10. A argumentação das Recorrentes relativa à eventual invalidade de uma qualquer deliberação dos sócios da ora Recorrida sobre a alienação de acções representativas do capital social do Banco G, S.A, são factual e juridicamente irrelevantes por carência absoluta de objecto: não houve lugar a qualquer deliberação dos sócios, nem antes, nem após a celebração do contrato de compra e venda;
11. Faz-se notar, ex abundante, que uma deliberação dos sócios nessa matéria teria sido, aliás, salvo na hipótese em que houvesse sido provocada por iniciativa e sob proposta do Conselho de Administração da ora Recorrida, nula, nos termos do conjugadamente disposto no Artigo 216º a contrario sensu, no nº 1 do Artigo 235º, nos Artigos 465º e 449º e na alínea d) do no 1 do Artigo 228º, todos do Código Comercial;
12. Atento (i) o regime de Vinculação da sociedade pelos actos praticados pelos respectivos representantes legais fundamentalmente previsto e disciplinado no Artigo 236º do Código Comercial e (ii) a insusceptibilidade, por parte do adquirente das acções de que a ora Recorrida era titular no capital social do Banco G S.A., de conhecer uma acção destinada a Proibir essa mesma aquisição à data em que esta foi contratada, determinam, de per se, a improcedência do pedido de que a Ora Recorrida seja Proibida de Proceder à alienação em questão;
13. O facto da pendência de processo especial para reforma do livro de registo de acções da ora Recorrida é irrelevante para Sustento do pedido deduzido nos presentes Autos;
E assim, fundamentalmente porque:
a) Por um lado, o facto do extravio de tal livro não impede, nem a verificação, pela ora Recorrida, da identidade dos propostos participantes nas reuniões da respectiva assembleia geral, nem a verificação da respectiva qualidade de accionistas, nem, tão pouco, o apuramento da percentagem de capital por cada um deles detida, ou, ainda, sequer, a expressão quantificada, por referência à titularidade das acções, do respectivo voto; e
b) Por outro lado, e pelas mesmas fundamentais razões, não impede o provimento de qualquer dos mesmos em cargos societários, designadamente naqueles para cujo respectivo provimento os Estatutos da ora Recorrida exigem a titularidade de um determinado número de acções.
14. Tal é assim, por seu turno, fundamentalmente porque:
a) as acções representativas do capital social de sociedade anónima são títulos de crédito,
b) As ora Recorrentes não suscitaram a falsidade dos títulos representativos de acções do capital social da ora Recorrida que se acham emitidos e na possa legítima das pessoas relativamente às quais afirmam ter dúvidas de que sejam accionistas da ora Recorrida;
c) Não aniquilada por sentença judicial ou, sequer tentado o aniquilamento, em processo judicial que se ache pendente, a relação jurídica fundamental que naqueles títulos se incorpora;
d) Não foi declarada a invalidade dos negócios por causa dos quais os respectivos e actuais titulares nominativos se tornaram proprietários das acções sobre cuja titularidade as ora Recorrentes afirmam ter dúvidas.
15. De resto, nem o teor narrativo do Documento junto com a Petição Inicial sob o número 58 (amplamente glosado pelas Recorrentes nestas alegações), nem a respectiva e necessária subordinação às regras de direito probatório substantivo previstas nos Artigos 357º no. 1, 370º, 340º e 471º todos do Código Civil, permitem contrariar as conclusões anteriores ou extrair delas conclusão quanto a melhor merecimento do pedido deduzido pelas Recorrentes;
16. A pretendida (pelas Recorrentes) insusceptibilidade de aplicação por analogia do regime previsto no Artigo 864º do Código Comercial pelo facto de que possam subsistir dúvidas quanto à validade dos actos de aquisição de acções representativas do capital social da ora Recorrida baseia numa suposta equivalência valorativa entre (i) as dúvidas das Recorrentes e (ii) a anulação provisória de títulos;
17. Porém, como antes notado, nenhum dos títulos emitidos em nome das pessoas cuja identidade accionista das ora Recorridas foi anulado, provisória ou definitivamente nem, tão pouco, se acha requerida a declaração de invalidade de quaisquer actos aquisitivos;
18. De resto, a disciplina constante do no. 1 do Artigo 864º do Código Comercial mais não faz do que pressupor e firmar o entendimento diametralmente oposto àquele que as Recorrentes pretendem fazer valer: a possibilidade de tutela cautelar de direitos do sujeito relativamente a quem foi admitida a anulação provisória do título e, bem assim, a exigência de caucionamento para liquidação de direitos patrimoniais incorporados no título, resulta da consideração da natureza cartular dos direitos incorporados em títulos de crédito, com a consequente manutenção da legitimação pelos mesmos conferida (designadamente nos termos do disposto nos Artigos 1064º e seguintes do Código Comercial.
19. Não tem fundamento e acha-se, ao contrário, expressamente excluída a possibilidade de restrição da actuação do Conselho de Administração de sociedade anónima a actos que, sob o ponto de vista da teoria geral do direito civil, devam qualificar-se como de mera administração;
20. Tal é assim, designadamente porque:
a) A lei não prevê qualquer inibição aos poderes de deliberação e/ou de representação do Conselho de administração na situação em que se ache pendente processo tendente à reforma do livro de registo de acções da sociedade de que se trate;
b) Tão pouco a lei não prevê tal inibição para a situação em que se achem em disputa dúvidas, fundadas ou não, quanto à qualidade de accionistas de membros do Conselho de Administração de sociedade cujos estatutos exijam a titularidade de um determinado número de acções para o provimento em cargo social;
c) A lei expressamente qualifica actos (qualificáveis, sob o ponto de vista jurídico-civil, como) de disposição como actos de administração (Artigo 465º do Código Comercial), atento o âmbito geral de poderes do Conselho de Administração da sociedade anónima.
Nestes termos, e nos mais em Direito consentidos que Vós, Excelentíssimos Juízes, muito doutamente suprireis, se requer:
a) Seja o presente recurso julgado improcedente, por não provado e por legalmente não justificado, com a integral confirmação do Despacho e a consequente absolvição da ora Recorrida do pedido;
Mais requerendo seja ordenada a condenação da Recorrente nas custas de lei e na liquidação de procuradoria condigna».
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A fls. 417 foi lavrado despacho nesta instância determinando a notificação das AA sobre eventual inutilidade superveniente da lide, na sequência da posição da D tomada nas suas contra-alegações de recurso (ver fls. 328).
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As notificadas limitaram-se a oferecer o merecimento dos autos (fls. 420).
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Da reclamação (fls. 433-439)
Nesta instância foi proferido despacho pelo relator, determinando a notificação da AA para se pronunciarem sobre o requerimento de fls. 258-260 ou 267-275, uma vez que sobre ele ainda não se tinham manifestado (fls. 423 e vº).
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A D, contudo, reclama desse despacho para a conferência estribado na circunstância de o despacho de fls. 318 proferido na 1ª instância estar já transitado no sentido do indeferimento da pretensão de desentranhamento.
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A parte contrária, sobre a reclamação limitou-se a oferecer o merecimento dos autos (fls. 458).
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Cumpre decidir.
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II - Os factos
Do despacho recorrido
A decisão impugnada tem a seguinte fundamentação:
«Pela presente acção, pretendem as AA. que a R. seja proibida de vender a qualquer pessoa singular ou colectiva, nomeadamente ao Banco F, SA, a participação que aquela detém no Banco G, SA.
Para o efeito alegam ser do seu conhecimento que a R. está em negociações para se proceder à venda da sua participação de 70% no capital social do Banco G, SA e que a R. muito provavelmente irá discutir sobre essa venda em Assembleia Geral ou em Conselho de Administração a fim de a concretizar.
Além disso, alegam as RR. que, por o livro de registo de acções da R. se encontrar desaparecido desde 2001, não há meios para se certificar da qualidade de accionista, nem da capacidade de voto e do número de votos dos que irão participar na Assembleia Geral da R. para discutir sobre a referida venda. Pelo mesmo motivo, entendem as RR. que também não é possível averiguar se os membros do Conselho de Administração que reunirão para discutir sobre o mesmo assunto são realmente accionistas da R., qualidade exigida para se ser administradores da R..
Segundo as AA., por a venda acima referida traduzir numa decisão que altera aspectos estruturais da sociedade ou da vida societária ou assume na R. uma particular relevância, na situação de incerteza acima referida, não se pode permitir que a R. tome qualquer decisão no sentido da venda da referida participação social.
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São, portanto, os seguintes argumentos invocados pelas AA. para ver o seu pedido procedente:
(i) Incerteza quanto à qualidade de accionista, à capacidade de voto e ao número de votos dos que irão participar na Assembleia Geral da R., incerteza essa resultante do extravio do livro de registo de acções e, consequentemente, incerteza quanto à qualidade de administradores da R. dos que irão reunir em Conselho de Administração porque os mesmos têm que ser accionistas da R.; e
(ii) A venda em negociação irá alterar aspectos estruturais da sociedade ou da vida societária ou a venda assumirá na R. uma particular relevância.
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(i) Incerteza quanto à qualidade de accionistas
Conforme as RR. o livro de registo de acções da R. extraviou-se estando ainda pendente a acção para a sua reforma. Sem o livro de registo, está-se perante uma situação em que não se pode de forma expedita saber quem é e quem não é accionista da R..
Porém, será que com isso fica afastada a possibilidade de se fazer essa determinação para efeitos de a R. poder reunir e o seu Conselho de Administração tomar decisões?
Julga-se que não. Senão vejamos.
Nos termos dos artºs 393º, nº 2, e 411º, nº 1, do Código Comercial, o capital social de uma sociedade anónima é dividida em acções representadas por títulos nominativos ou ao portador.
O capital social da R., enquanto sociedade anónima, é dividida em acções representadas por títulos nominativos - cfr. artº 6º, nº 1, do Estatuto da R..
Como se sabe, os títulos representativos das acções são títulos de crédito onde são incorporadas as respectivas acções e pelos quais o respectivo portador é investido na qualidade de accionista - cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio, Universidade de Coimbra, 1975, pgs 3 e ss.
Assim, a titularidade do direito passa necessariamente pela posse do título. Isto é, o exercício do direito nele incorporado pressupõe a detenção do título. Nesta conformidade, fácil é de ver que a qualidade de accionista pode ser aferida a partir da apresentação das acções por parte de quem se arroga dessa qualidade.
Ora, isso aplica-se tanto aos títulos ao portador como aos títulos nominativos. A particularidade existente nas acções nominativas reside apenas no facto de se exigir que do título bem como do registo do emitente conste o nome da pessoa que se arroga titular do direito nele incorporado. Com efeito, nos termos do artº 1065º, nº 3, do Código Comercial, “São títulos nominativos aqueles em que a pessoa do credor é indicada no título e no registo do emitente e que não são emitidos à ordem nem declarados como tal pela lei.” Essa exigência é reiterada nos artºs 417º, nº 1, d) e i), e 424º, nº 2, do Código Comercial em relação às acções nominativas.
Porém, com o que se acaba de dizer, não deverá antes proceder o argumento invocado pelas AA.? É que, com o desaparecimento do livro de registo de acções, e antes da sua reforma, não se consegue saber quem conste desse livro como titular das acções da R.. Assim, nunca se consegue garantir que os portadores das acções donde consta o seu nome têm as acções registadas como suas no registo da R. e como tal qualificados para participarem na Assembleia Geral.
Ora, a lei é omissa em relação à situação dos presentes autos em que o livro de registo das acções desapareceu. Cabe, assim, perguntar se é de exigir que o nome de cada um dos accionistas, que preenchem os dois restantes requisitos, isto é, estar na posse das acções e ter o seu nome indicado nessas acções, conste do livro de registo de acções da R. quando é manifesto que até à conclusão da reforma do mesmo tal requisito não pode ser preenchido.
Dada a importância que a questão reveste designadamente a eventual paralisação do funcionamento de uma sociedade, cabe aquilatar se se trata de uma lacuna carecedora de integração. Como ensina Baptista Machado, essa pesquisa pode fazer-se por recurso à analogia - cfr. Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1990; pg 200.
A situação dos presentes autos é análoga à situação prevista nos artºs 861º a 866º do CPC em que se prevê o caso de destruição ou desaparecimento de títulos. Dada a natureza cartular do título, o respectivo titular não pode exercer os direitos nele incorporados por não estar na posse desse título, como não podia deixar de ser, face à sua destruição ou desaparecimento. No entanto, através da norma do artº 864º do CPC, o legislador tomou certas providências para permitir ao titular o exercício do direito nele incorporado acautelando, ao mesmo tempo, os interesses de terceiros conflituantes com os do titular. Tanto num como noutro caso está em causa a eventual paralisação do exercício do direito por força do extravio de certo documento.
Tendo em conta os interesses agora em causa, afigura-se que o legislador não teria deixado de regular a situação dos autos se a tivesse previsto. Há, pois, uma lacuna a integrar ao abrigo do disposto no artº 9º do CC.
Atenta a similitude da situação prevista no supramencionado regime, é de aplicar analogicamente o artº 864º do CPC ao presente caso.
Ora, se durante o processo de anulação do título é permitido àqueles que nem sequer detêm o título exercer o direito nele incorporado ainda que mediante sujeição a certas medidas cautelares, por maioria de razão, deve-se permitir o exercício dos direitos por parte dos portadores de títulos nominativos de uma sociedade cujo livro de registo de acções desapareceu. É que, em relação a esses últimos, a sua qualidade de accionista está indiciada pela posse das acções e pelo facto de o seu nome constar dessas acções. Assim, aplicando analogicamente a supramencionada norma e podendo a qualidade de accionistas dos participantes ser evidenciada pela exibição dos respectivos títulos nominativos, não se vê qualquer fundamento em impor à R. que se abstenha de tomar qualquer tipo de decisões por parte dos seus órgãos sociais.
Assim, é manifesto que a pretensão das AA. não pode proceder com o supramencionado argumento.
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(ii) Da eventual decisão pela venda em negociação
Entendem as AA. que a R. deve abster-se de decidir pela referida venda, visto que a mesma se traduz numa alteração de aspectos estruturais da sociedade ou da vida societária ou a venda assume na R. uma particular relevância.
Antes de mais, não se vislumbra qualquer fundamento legal para impor tal proibição, apesar da alegada importância da venda.
Além disso, vê-se que, com o pedido formulado, pretendem as AA., por via preventiva, eximir-se do ónus de impugnar eventuais deliberações e actos da R..
A R. é a entidade soberana para decidir sobre o que fazer e não fazer dentro da sua actividade comercial. Enquanto pessoa colectiva, a R. pode tomar qualquer tipo de deliberações através dos seus órgãos sociais, tendo especialmente em conta as circunstâncias do mercado e as suas necessidades, a fim de melhor servir os interesses sociais. Para esse efeito e para salvaguardar os interesses dos accionistas, há uma fase de formação da vontade que passa necessariamente pela análise e discussão, designadamente em Assembleia Geral da R., a fim de confirmar ou infirmar a bondade e utilidade de qualquer proposta. É essa a sede privilegiada para serem apresentadas as preocupações e objecções das AA e de qualquer accionista. A isso acresce a possibilidade de impugnação das deliberações sociais tomadas.
Ora, impedir que a R. discuta e tome decisões, ainda que apenas sobre algumas matérias, é subverter todo o regime legal das pessoas colectivas, pois traduz-se numa negação da sua capacidade de gozo estabelecida no artº 177º do Código Comercial precisamente para permitir a prossecução do seu fim. É, no fundo, condenar a R. ao fracasso. Pergunta-se, como pode a R. manter-se ou progredir se estiver impedida de dar resposta a alterações que aconselham a disposição das acções que detém no Banco G, SA ou a prática de outros actos, ainda que com importantes implicações na vida societária?
Pelo que, também é manifesto que o pedido não pode proceder com esse fundamento.
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Nos termos expostos e ao abrigo do disposto no artº 394º, nº 1, d), do CPC, por ser manifesto que o pedido das AA. não pode proceder, indefiro liminarmente a p.i..
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Da reclamação
- Imediatamente após a apresentação da petição inicial, e aguardando os autos que fossem pagas as guias para depósito do preparo inicial, vieram as AA apresentar nova petição inicial (fls. 220-237).
- Tal petição era em tudo igual à anterior, menos no art. 11º do articulado, onde foi eliminado o valor indicado na primeira petição de 4,54 biliões de dólares de Hong Kong – valor que alegadamente o Banco F, SA se preparava para pagar à Ré pela compra da participação que esta detinha no Banco G, SA..
- Consequentemente, a esta acção foi agora dado o valor de Mop$ 1.000.001,00 (fls. 237), em vez do inicialmente conferido de Mop$4.680.000,00.
- A ré, a fls. 258-260, manifestou-se contra a apresentação da segunda petição inicial, que na sua óptica deve ser rejeitada e desentranhada, com a consequente emissão de novas guias para preparo inicial às autoras, o que requer.
- Por despacho de 19/11/2007 foi a petição indeferida liminarmente (fls. 243 a 246).
- A D, ré na acção, após o recebimento do recurso interposto pelas AA, veio a fls. requerer que a 2ª petição fosse desentranhada e ordenada a emissão de novas guias para o pagamento do preparo inicial por parte das AA (fls. 258-260 e 273-275).
- As AA apresentaram as alegações do recurso interposto e o M.mo Juiz do processo, sobre o assunto, proferiu o seguinte despacho:
“Relativamente aos pedidos de desentranhamento e de emissão de novas guias para o preparo inicial, uma vez que foi já proferido despacho de indeferimento liminar, o poder jurisdicional encontra-se esgotado.
Pelo que este Tribunal deixou de ter competência para apreciar esses pedidos” (fls. 318 vº).
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III - O Direito
1 - Da reclamação
Em nossa opinião, antes mesmo do conhecimento do recurso, importa apreciar a questão que foi objecto da reclamação, uma vez que da sua eventual procedência ou improcedência podem advir consequências, nomeadamente no plano das custas. Efectivamente, se for de rejeitar a segunda petição, então permanecerá operativa apenas a primeira, o que conferirá à acção um muito mais avultado valor.
Pois, para a reclamante, o assunto do desentranhamento estava já decidido pelo dito despacho do juiz da 1ª instância de fls. 318vº e, deste modo, o despacho do relator de fls. 413 e vº (que mandou ouvir as AA sobre o requerimento da D relativo ao desentranhamento da 2ª petição) atentaria contra o caso julgado.
Mas, não tem razão nenhuma, tal como em poucas palavras, que mais não são precisas, iremos demonstrar.
Efectivamente, a intenção do juiz foi não emitir pronúncia expressa sobre o pedido de desentranhamento da 2ª petição, por se ter esgotado na sua óptica o seu poder judicial com o indeferimento liminar.
Ao argumentar não possuir competência para a decisão nessa fase admitiu (implicitamente) que aquele pedido já só poderia ser decidido na instância de recurso. Bem ou mal foi o que escreveu o titular do processo no TJB.
Mas se isto é assim, não se pode agora vir defender que aquele despacho equivale a indeferimento. A existência do indeferimento é desmentida pela clareza da literalidade das palavras do despacho em causa. Não houve indeferimento; houve sim, em vez disso, um diferimento da decisão para a instância competente, que não a do TJB.
Isto significa, obviamente, que se não pode julgar procedente a reclamação. Significa também que temos nós, TSI, que decidir o pedido de desentranhamento que a 1ª instância não conheceu por achar não deter competência para o fazer.
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2 - Do pedido de desentranhamento
Face à decisão da reclamação tomada agora mesmo, por uma questão de puro encadeamento lógico, preciso é que, então, analisemos nesta instância a pretensão manifestada a propósito do desentranhamento e da eventual consequente emissão de novas guias para o pagamento do preparo inicial.
Vejamos.
A questão da regularidade da apresentação da 2ª petição nunca foi objecto de atenção expressa por parte do tribunal “a quo”. Quer dizer, as autoras, antes de qualquer intervenção judicial, vieram ao processo apresentar um segundo articulado. Ora, esta 2ª peça é exactamente igual à primeira, com a diferença que emerge do texto do art. 11º, pois na primeira elas imputavam às acções que a D pretendia vender o valor de HK$ 4,54 biliões, enquanto na segunda diziam que esse valor era ainda indefinido.
Claro que esta singela diferença arrasta consigo uma enormíssima consequência: enquanto, aquele valor daria à acção o valor equivalente de HK $ 4,54 biliões, o acolhimento da 2ª petição faria baixar o valor para aquele que as autoras declararam, ou seja, Mop$ 1.000.001,00.
Verdade é que o despacho impugnado não fez referência a qual das petições dedicou o seu dispositivo. Ele limitou-se a indeferir liminarmente a petição, sem dizer expressamente a qual se referia.
Vale a pena fazer desentranhar uma delas? E fará sentido decidir o requerimento da D de fls. 273-275?
Pois muito bem. Tanto quanto nos parece, à D é indiferente que a 2ª petição fique nos autos. Na realidade, o que ela pretende é que o tribunal apenas considere a 1ª petição, para que o próprio preparo inicial seja reforçado pelas autoras. Portanto, o que parece mover a D é unicamente uma questão tributária, mais do que uma questão de boa ordem processual, para a qual só o juiz é responsável directo e por cuja violação, desde que sem ofensa dos direitos das partes, ele responde em sede, por exemplo, de fiscalização do seu “munus” em trabalho de inspecção judicial.
Estamos de acordo com o M.mo Juiz quando afirma que, com a sua decisão de indeferimento liminar, ficou esgotado o seu poder para o pretendido desentranhamento ou para a manutenção da 2ª petição inicial.
Mas, também é verdade que essa impossibilidade de intervenção jurisdicional nos coloca uma preocupação acrescida. Que é esta: a qual das petições se referiu o julgador quando procedeu ao indeferimento liminar? Se não pode mais intervir, é caso para perguntar: será necessário que os autos baixam à 1ª instância com vista a “esclarecer” a qual delas o julgador se referiu?
Talvez se pudesse pensar que sim, com o argumento de que aquele esclarecimento não teria a marca do exercício do “poder” judicial, do poder dispositivo enquanto titular do processo. Seria antes a tradução do dever de acatar a decisão do tribunal superior de forma a ajustar o andamento do processo ao rito necessário e imprescindível ao conhecimento do recurso jurisdicional pendente e, em última análise, corresponderia ao poder de intervenção “esclarecedor” a que se refere o nº2, do art. 569º, do CPC.
Pensamos, todavia, que se não justifica a baixa dos autos para esse efeito e que este TSI está em condições de resolver questão.
Em primeiro lugar, o M.mo Juiz autor daquele despacho já não é titular do processo, uma vez que presentemente é juiz presidente de colectivo do TJB.
Em segundo lugar, pedir esse elemento quanto a este aspecto pode ser aviltante, se entendermos que o esclarecimento indicado no preceito se refere mais ao âmbito da dialéctica entre o julgador e as partes a quem a decisão judicial é dirigida; não entre o julgador “a quo” e o julgador “ ad quem”. Perante uma decisão recorrida, o que haverá de ver-se é se ela está de acordo com os preceitos legais aplicáveis ao caso, cabendo aos juízes do tribunal superior fazer a melhor interpretação dela, no exercício da tarefa de hermenêutica nos mesmos termos em que o faz, exemplo, em relação às normas legais e às cláusulas contratuais em litígio.
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Ora, sendo assim, pensamos que o pensamento do julgador foi o de admitir a 2ª petição em substituição da 1ª.
Realmente, se a 2ª petição vinha acompanhada de requerimento pedindo a aceitação da “corrigenda apresentada”, o facto de o Juiz nada ter dito quanto a esse respeito haverá de significar que a estava a aceitar tacitamente.
Se logo na sua 1ª intervenção ele não se manifestou contra a junção da nova petição, parece poder deduzir-se de um modo muito claro que a quis aceitar; Se assim não fosse, tê-la-ia rejeitado expressamente.
Como nenhum juiz não se guia nessa intervenção (nessa e em nenhuma outra) movido por razões de cariz tributárias, a não ser nos casos em que lhe é imposto o dever de agir em matéria de valor da acção, para si o que era importante era saber se a pretensão manifestada na petição era de manter ou de indeferir liminarmente, independentemente do mais elevado valor que o primeiro dos articulados apresentasse. Daí que tenha aceitado a apresentação da segunda petição.
Aliás, quando o juiz é dedicado e perspicaz, antes de avançar para a decisão, não deixa de analisar o processo com muita atenção, passo a passo, folha a folha. Como o processo ainda estava no seu início, certamente não deixou ele de verificar que as guias de preparo inicial de fls. 239-241 correspondentes ao valor da 1ª petição não foram pagas e que, em vez disso, a de fls. 243, essa respeitante ao valor dado à acção com a 2ª petição, fora efectivamente paga. Isso serve também de apoio à tese de que o M.mo Juiz sabia que, com a decisão posterior (fls. 243-246), estava a dirigir a sua atenção ao articulado mais recente a respeito do qual fora pago o respectivo preparo inicial. Se assim não considerasse, certamente não deixaria de ordenar o pagamento do preparo inicial pelo valor correspondente ao da acção tal como configurada na 1ª petição, tal como resulta do art. 34º do RCJ.
Neste sentido, mandar desentranhar a 2ª petição por nós seria o mesmo que atentar contra a lógica da decisão recorrida. Porquê? Porque isso significaria que o indeferimento recaiu sobre a primeira petição. Ora, isso representaria uma inqualificável anomalia, na medida em que ficaria nos autos uma petição inicial a que ainda não fora dado destino judicial.
Por fim, não deixamos de sublinhar a circunstância de que do referido despacho, que não se pronunciou sobre o pretendido desentranhamento com o citado fundamento, não foi interposto pela interessada D nenhum recurso.
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Um outro argumento se nos oferece ainda apresentar.
A instância inicia-se pela propositura da acção e esta considera-se proposta logo que seja recebida na secretaria do tribunal (art. 211º, nº1, do CPC).
Todavia, nesse momento apenas ainda existe uma pretensão, sem que o demandado saiba qual seja. Na realidade, tudo se está a passar nas suas costas. Só com a citação passa a existir uma relação judiciária bilateral entre partes. Por isso, o acto de propositura da acção só produz efeitos em relação ao réu a partir da citação (art. 211º, nº2, do CPC).
O réu, rigorosamente, nada tem que ver com o que se passa antes de ser citado. Daí que lhe seja estranho que o autor tenha apresentado uma petição inicial diferente da que foi efectivamente parar às suas mãos. O que se passou até o réu ser citado não releva para a sua esfera, se assim nos podemos pronunciar, porque tudo se passou numa antecâmara relacional estabelecida entre demandante e tribunal, e onde apenas pontuam os poderes de iniciativa do autor (claro está, no respeito por determinados valores jurisdicionais, como os bons princípios de ordem processual) e os deveres do magistrado em vista da ordem e correcção do ritualismo processual. Pode até acontecer que o réu nunca venha a ser citado, ficando sem saber, sequer, que contra si havia sido instaurada qualquer acção.
Dito isto, o que releva para a forma da relação triangular – autor, tribunal e réu – é a citação.
Ora, a ré da acção quando foi citada apenas teve que se pronunciar sobre o pedido formulado na petição que lhe foi enviada pelo tribunal, mesmo que o juiz não tenha intervindo previamente por qualquer razão, nomeadamente para permitir, ou não, a substituição de uma primeira petição inicial.
É verdade que o M.mo Juiz não fez qualquer expressa pronúncia no despacho de fls. 243 (despacho liminar, ora sob recurso jurisdicional). Todavia, conhecendo ele as vicissitudes de um processo que ainda estava no seu início, não pôde ele deixar de atentar que havia duas petições iniciais. Se não afastou a segunda, tendo podido rejeitá-la, então tem que se entender, logicamente, que foi sobre ela que se pronunciou. O indeferimento liminar recaiu, pois, sobre a segunda petição.
Sendo assim, não é possível o desentranhamento, nem, consequentemente, a emissão de novas guias de preparo inicial.
Por conseguinte, a pretensão da recorrida D manifestada a fls. 273-275 não pode merecer de nós o desentranhamento pretendido, assim como não pode proceder o consequente pedido de determinação do pagamento do complemento do preparo inicial da acção relativamente ao efectuado a fls. 243.
E isto significa, do mesmo modo, que os autos estão, neste momento em condições de decidir o recurso, caso se não nos depare alguma questão que a tanto obste, o que já de seguida veremos.
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3 - Do recurso jurisdicional
No recurso interposto pelas AA da acção, além da nulidade por omissão de pronúncia invocada, está em causa essencialmente saber se podia a 1ª instância indeferir liminarmente a petição.
Veio, todavia, a ré, D, nas suas contra-alegações esclarecer o tribunal que o pedido formulado na petição inicial se encontra neste momento prejudicado, face à circunstância de ela mesma ter já procedido à venda das acções a que toda a pretensão das AA se referia.
As AA foram notificadas para se pronunciarem sobre eventual inutilidade superveniente da lide, não se opondo expressamente a tal decisão e oferecendo o merecimento dos autos (fls. 420).
Vejamos.
Efectivamente, a pretensão das AA manifestada nos autos era a de que a ré D fosse “proibida de vender a qualquer pessoa singular ou colectiva, e assim ao Banco F, SA, a participação social que detém no Banco G sem que esteja previamente concluído o processo de reforma do respectivo Livro de Registo das Acções”.
Acontece que tais acções foram objecto de contrato de compra e venda celebrado entre a ré, D e o Banco F no dia 29 de Agosto de 2007, embora sujeito à verificação das condições expostas nas alíneas a) a c), do referido contrato (fls. 2-6 do apenso “traduções”.
Condições que já ocorreram, pelo que o contrato adquiriu plena eficácia. Efectivamente, a Autoridade Monetária de Macau autorizou o pedido de aquisição das referidas acções no dia 18/01/2008 (fls. 473), tendo inclusive sido autorizada a fusão entre o Banco “G” e o “Banco F”, conforme Ordem Executiva nº 30/2009 (fls. 464).
Ficou assim prejudicado o efeito útil da acção e, por conseguinte, também do próprio recurso (cfr. art. 229º, al. e), do CPC).
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IV - Decidindo
Face ao exposto acordam em:
a) Julgar improcedente a reclamação de fls. 433;
Custas pela reclamante D (art. 17º, 5, RCT).
b) Indeferir os pedidos de desentranhamento da 2ª petição inicial da acção de fls. 220-238 formulado pela D e de emissão de novas guias para preparo inicial a cargo das AA da acção;
Taxa de justiça pela ré D, ora recorrida, em 3 UC (art. 15º do RCT).
c) Julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Custas pela ré D (arts. 377º, nº1, “fine” do CPC e 17º, nº2, RCT).
TSI, 13 de Março de 2014
José Cândido de Pinho (Relator)
Tong Hio Fong (Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong (Segundo Juiz-Adjunto)