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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 40 / 2006

Recorrentes: A
B
C







1. Relatório
   Os três recorrentes A, B e C e outros arguidos foram julgados no âmbito do processo n.º CR3-05-0293-PCC do Tribunal Judicial de Base em que foram absolvidos os três recorrentes do crime de participação e pertença a associação secreta previsto no art.º 2.º, n.º 2 da Lei n.º 6/97/M e os recorrentes A e C também do crime de usura para jogo previsto no art.º 13.º da Lei n.º 8/96/M, mas todos condenados nos seguintes termos:
   Para o arguido A:
   – um crime de sequestro previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 2, al. a) do Código Penal (CP) na pena de 4 anos e 9 meses de prisão;
   – um crime de extorsão qualificada previsto e punido pelos art.ºs 215.º, n.º 2, al. b) e 198.º, n.º 2, al.s a) e f) do CP na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
   – um crime de uso de arma proibida previsto e punido pelo art.º 262.º, n.º 3 do CP na pena de 9 meses de prisão.
   Em cúmulo, é condenado na pena de 5 anos e 9 meses de prisão.
   
   Para o recorrente B:
   – um crime de usura para jogo previsto e punido pelo art.º 13.º da Lei n.º 8/96/M e 219.º, n.º 1 do CP na pena de 9 meses de prisão;
   –um crime de sequestro previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 2, al. a) do Código Penal (CP) na pena de 4 anos de prisão;
   –um crime de extorsão qualificada previsto e punido pelos art.ºs 215.º, n.º 2, al. b) e 198.º, n.º 2, al.s a) e f) do CP na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
   – um crime de uso de arma proibida previsto e punido pelo art.º 262.º, n.º 3 do CP na pena de 9 meses de prisão.
   Em cúmulo, é condenado na pena de 5 anos e 9 meses de prisão.
   
   Para o recorrente C:
   – um crime de sequestro previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 2, al. a) do Código Penal (CP) na pena de 4 anos de prisão;
   – um crime de extorsão qualificada previsto e punido pelos art.ºs 215.º, n.º 2, al. b) e 198.º, n.º 2, al.s a) e f) do CP na pena de 5 anos de prisão;
   – um crime de uso de arma proibida previsto e punido pelo art.º 262.º, n.º 3 do CP na pena de 9 meses de prisão.
   Em cúmulo, é condenado na pena de 5 anos e 9 meses de prisão.
   
   Inconformados com a decisão, os três arguidos recorreram para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 28 de Setembro de 2006 proferido no processo n.º 314/2006, o Tribunal de Segunda Instância negou provimento ao recurso do arguido C e concedeu parcial provimento aos arguidos A e B, absolvendo-os do crime de uso de arma proibida e, em consequência, reduziu as penas únicas para 5 anos e 3 meses de prisão.
   Vêm agora os três arguidos interpor novamente recursos para o Tribunal de Última Instância. O outro arguido D apresentou igualmente recurso, mas acabou por desistir antes de os autos subir para este tribunal.
   
   Os recorrentes A e B formularam as seguintes conclusões, aliás idênticas, nas suas motivações de recurso:
   “1. Existe, no caso, susceptibilidade de impugnação do douto Acórdão proferido pelo Venerando TSI.
   2. Não correspondendo o recurso que ora se interpõe para essa Alta Instância a um recurso de segundo grau de jurisdição, ele circunscreve-se, em princípio, a matéria de direito, podendo, porém, o TUI, intervir em matéria de facto.
   3. A decisão recorrida incorreu em erro de julgamento na reapreciação da prova produzida e na nulidade decorrente da falta de fundamentação.
   4. E ainda do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no n.º 2, al. a) do art.º 400.º do C.P. Penal e na violação do princípio in dubio pro reo.
   5. Não parece razoável o entendimento de que a documentação da audiência não tem qualquer relevância – em termos de reapreciação da matéria de facto pelo TSI – lá quando o recorrente não requerer complementarmente a renovação de prova, pois, se assim fosse, o registo da prova não teria qualquer relevância em termos de abertura da sindicância da prova produzida em 1.ª Instância pelo tribunal colectivo.
   6. A documentação da audiência e o concomitante registo da prova têm um valor intrínseco e deles decorrem consequências próprias, permitindo e impondo, por si mesma, e independentemente de eventual renovação da prova, o reexame crítico das provas produzidas em 1.ª Instância pelo tribunal de recurso.
   7. O princípio da livre apreciação do julgador não deve definir-se negativamente, isto é, como falta de outras regras legais sobre a apreciação das provas, pois não consiste na afirmação do arbítrio, sendo, antes, também, vinculado aos princípios em que se consubstancia o direito probatório.
   8. Não poderia, em consequência do que se deixa exposto, o Venerando Tribunal ora recorrido, ter-se demitido de proceder a essa livre apreciação (crítica), com os argumentos / fundamentos indicados.
   9. Não pode confundir-se a documentação da audiência com a renovação da prova, na interligação que faz entre ambas o aresto ora recorrido.
   10. A ausência de uma regulamentação legal dos termos da transcrição da prova constitui uma mera lacuna do código de Macau mas não pode permitir o entendimento que fez vencimento no acórdão impugnado, pois a lei cria ela mesma um sistema de integração das suas lacunas, no caso através do recurso aos princípios gerais do processo penal.
   11. O aresto empresta a cada passo a meridiana percepção de que pouco importa se os factos apurados correspondem à prova efectivamente produzida.
   12. As dúvidas deixam-se expressas no aresto recorrido, a cada passo, ainda que de uma forma pouco explícita, como quando se recorre a expressões como “parece não haver dúvidas” ou “parece-nos” e outras similares, incompatíveis com a certeza necessária à condenação.
   13. É manifesta a falta de fundamentação que se observa no aresto recorrido, incorrendo na nulidade da al. a) do art.º 360.º por referência ao disposto no art.º 355.º, n.º 2, lá onde se exige que, na sentença penal, se faça uma indicação completa ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.
   14. A factualidade apurada não permite que o recorrente seja condenado como co-autor do crime de sequestro, sendo que a sua comparticipação apenas pode ser enquadrada em termos de cumplicidade.
   15. Não foram dados por provados factos que permitam concluir que o ora recorrente teve conhecimento dos montantes em dívida que eram devidos e vieram a ser parcialmente depositados, pelo que é duvidoso que ao recorrente se pudesse comunicar essa circunstância qualificativa do valor consideravelmente elevado do crime de extorsão.
   17. A decisão recorrida violou as normas dos art.ºs 355.º, n.º 2 do C.P. Penal, do art.º 152.º do C. Penal (ao aplicá-la sem referência às normas regulamentadoras da tentativa) e do art.º 215.º, n.º 2, al. a) do C. Penal (ao aplicar o preceito do n.º 1 agravado por uma circunstância qualificativa do tipo não demonstrada para além de uma dúvida razoável).
   18. Violou ainda o princípio in dubio pro reo e os princípios que devem presidir ao reexame crítico da prova, permitindo a eficácia do recurso que impugne a matéria de facto.”
   Pedindo o provimento do recurso com a anulação da decisão recorrida e o reenvio do processo, ou a alteração do acórdão recorrido no sentido de condenar os recorrentes por crime de sequestro tentado e extorsão simples.
   
   O recorrente C apresentou as seguintes conclusões de motivação:
   “1. Existe, no caso, susceptibilidade de impugnação do douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância para essa Instância Suprema.
   2. Mau grado não corresponda o recurso que ora se interpõe a um recurso de segundo grau de jurisdição, e circunscrevendo-se, em princípio, a matéria de direito, pode o TUI intervir em matéria de facto, desde que se verifique qualquer dos fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 400.º do C.P.P..
   3. O douto TJB incorrera em erro de julgamento que fizeram o douto acórdão padecer do vício de erro notório na vertente erro de julgamento e violação da legis artis previsto na al. c) do n.º 2 do art.º 400.º do Código de Processo Penal.
   4. Para tanto argumentara que o TJB não poderia ter dado como provados, relativamente ao ora recorrente, os crimes de sequestro, extorsão e arma porquanto, no decurso da audiência de julgamento, não foi produzida qualquer prova demonstrativa da prática daqueles factos pelo ora recorrente.
   5. E procedera a uma análise crítica exaustiva da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, a qual foi documentada e permitia, por isso, uma reavaliação total daquela.
   6. Inexistia dificuldade em atingir uma outra convicção sobre a prova, diferente da do TJB pois conclusão diferente importaria a conclusão de que a gravação da audiência de julgamento não tem qualquer significado.
   7. Tal gravação tem o significado de permitir ao tribunal de recurso, com toda a amplitude, a reapreciação da matéria de facto e de direito e o reexame crítico da prova.
   8. O TSI dispunha de todos os elementos que constituíam os fundamentos do precedente recurso, cuja análise lhe permitiam amplamente o conhecimento concreto das motivações do recorrente.
   9. Não se faz qualquer referência directa ao arguido ora recorrente nas declarações para memória futura do ofendido.
   10. Ainda que fotografia n.º XXXXX constasse dos autos, é profundamente insuficiente o reconhecimento por fotografia, consubstanciando uma verdadeira insuficiência de corpo de delito um reconhecimento por fotografia quando o reconhecimento pessoal era possível.
   11. Um reconhecimento fotográfico é altamente perigoso e gravemente atentatório dos direitos de defesa do reconhecido.
   12. Nas declarações para memória futura do ofendido não se faz qualquer referência ao recorrente, a não ser que se parta do pressuposto que o recorrente deve ter-se por integrado na alusão genérica a “outros indivíduos” ou que a ele corresponde a inexistente fotografia XXXXX.
   13. Não consta de fls. 634 nem de qualquer outra fls. dos autos qualquer fotografia com o n.º XXXXX, do que decorre que o TSI partiu de um pressuposto de facto inexistente e de uma prova inexistente para a condenação do recorrente, incorrendo em nulidade de acórdão.
   14. Ao assumir a correcção do que consta das declarações para memória futura do ofendido, o acórdão recorrido assume ele próprio a obscuridade ou ambiguidade que se observa naquelas declarações.
   15. As declarações para memória futura estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal de 1.ª Instância (o Tribunal a quo) mas essa livre apreciação delas compete a qualquer dos tribunais de instância, pelo que não poderia o Tribunal ora recorrido, ter-se demitido de proceder a essa livre apreciação (crítica), com os argumentos / fundamentos indicados.
   16. Observa-se tal nulidade por violação do comando do n.º 2 do art.º 355.º do C.P.P. – falta de fundamentação de facto ou erro de julgamento de um facto – ao fundar a condenação do recorrente em pressuposto de facto e em prova inexistentes e / ou em oposição entre os fundamentos e a decisão (nulidade que, por força da norma do art.º 571.º, n.º 3 por referência às al.s b) e c) e ao n.º 2 do art.º 355.º do C.P. Penal, só pode ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário).
   17. Trate-se de inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada (n.º 3 do art.º 400.º), sendo que, por força do art.º 109.º do C.P.P., a nulidade torna inválido o acto em que se verificar.
   18. Se o TSI tivesse reparado que a fotografia em questão não constava do processo teria decidido de outra maneira.
   19. O acórdão ora recorrido é ainda nulo por total falta de fundamentação e por obscuridade, havendo incorrido em erro de julgamento.
   20. A ausência de uma regulamentação legal dos termos da transcrição da prova constitui uma mera lacuna do código de Macau mas não pode permitir o entendimento que fez vencimento no acórdão impugnado, porque a isso se opõem os princípios gerais do processo penal em matéria de produção de prova.
   21. A decisão recorrida violou o art.º 355.º, n.º 2 do C.P. Penal e os art.ºs 152.º e 215.º do C. Penal ao aplicar estas últimas disposições num quadro que impunha a sua desaplicação.”
   Pedindo o provimento do recurso com a absolvição dos crimes de sequestro e de extorsão ou a anulação da decisão recorrida relativa aos imputados crimes e o reenvio do processo para novo julgamento.
   
   O Ministério Público emitiu a seguinte resposta:
   “1 – Do recurso interposto pelo arguido D
   Resulta dos autos que, após a apresentação da motivação do recurso, veio o recorrente desistir do mesmo, o que é permitido nos termos do n.º 1 do art.º 405.º do CPPM.
   A desistência em causa deve ser julgada válida e relevante, dado que foi feita no prazo legal, ou seja, antes do momento de o processo ser concluso ao relator (no caso vertente, do Tribunal de Última Instância) para exame preliminar,.
   Assim sendo, dispensamo-nos de pronunciar sobre as questões de fundo suscitadas pelo recorrente no seu recurso.
   
   2 – Dos recursos interpostos pelos arguidos A e B
   Repare-se que são idênticas as questões suscitadas nos recursos interpostos pelos arguidos A e B.
   
   Começam os recorrentes por abordar a questão de correlação e complementaridade feitas no acórdão recorrido entre o registo da prova e a renovação da prova.
   Neste aspecto, não nos parece que merece censura o entendimento do Tribunal recorrido.
   Resulta claramente do n.º 1 do art.º 415.º do CPPM que a renovação da prova depende da verificação simultâneas das várias condições, incluindo a documentação da prova oralmente produzida na 1.ª instância e a verificação de algum dos vícios referidos no n.º 2 do art.º 400.º do CPPM.
   Daí que o registo da prova não implica necessariamente a renovação da prova.
   Como se sabe, a documentação da prova não se destina a permitir ao tribunal superior o controlo da prova, mas a permitir esse controlo ao tribunal de julgamento, quer para avivar a memória da prova já produzida, quer para permitir a preparação das inquirições seguintes (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal de Macau, pág. 723).
   E só com a renovação da prova é que o tribunal de recurso vai proceder à audição das declarações oralmente prestadas em audiência de julgamento, reapreciando assim as provas produzidas em primeira instância.
   Salvo o devido respeito, parece-nos que não têm razão as considerações deduzidas pelos recorrentes sobre a questão.
   E também é de julgar improcedentes os seus argumentos a propósito de violação do princípio da livre apreciação da prova.
   
   Imputam os recorrentes a violação do princípio in dubio pro reo, invocando as expressões utilizadas pelo Tribunal de Segunda Instância ‘parece não haver dúvidas’, ‘parece-nos’, o que levaram os recorrentes a afirmar que o Venerando TSI os condenou num quadro não inteiramente isento de dúvidas.
   A nosso ver, da utilização das expressões em causa não se pode extrair a ilação de que a condenação do recorrente se estriba num mero juízo de probabilidade da prática do facto e não no juízo de certeza necessário para a condenação.
   Após uma leitura de todo o texto do aresto ora impugnado, evidentemente é de concluir que o TSI entende estarem dados como provados todos os factos imputados aos recorrentes que revelam claramente o seu envolvimento como co-autor na prática dos crimes, afastando a existências das eventuais dúvidas que possam militar a favor dos recorrentes.
   Por outro lado, é consabido que o princípio in dubio pro reo é visto como um dos princípios relativos à prova, segundo o qual um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido.
   Daí que, como não está em causa a questão da prova, não se deve colocar aqui a questão de aplicação e eventual violação do princípio in dubio pro reo.
   
   E não se vê como e em que termos se pode falar na manifesta falta de fundamentação invocada pelo recorrente, que gera a nulidade da al. a) do art.º 360.º, por referência ao disposto no n.º 2 do art.º 355.º, ambos do CPPM.
   Salvo o devido respeito, cremos que a sentença recorrida está bem fundamentada, tendo o Tribunal cuidado de expor os motivos, de facto e de direito, que fundamentam a sua decisão.
   Foi escrupulosamente cumprido o disposto no n.º 2 do art.º 355.º do CPPM.
   
   Alegam ainda os recorrentes que a factualidade apurada nos autos não permite a sua condenação como co-autor do crime de sequestro, sendo que a sua comparticipação apenas pode ser enquadrada em termos de cumplicidade.
   Salvo o devido respeito, não podemos concordar com tal entendimento, já que, face à matéria de facto provada e à disposição legal do art.º 25.º do CPM, afigura-se-nos que a intervenção dos recorrentes se enquadra perfeitamente em termos da co-autoria.
   Por um lado, não é verdade que os recorrentes apenas vieram a ter intervenção após a consumação do sequestro.
   Como se sabe, está em causa um crime permanente típico, cujo momento consumativo (privação ou restrição da liberdade de locomoção do sujeito passivo) perdura ou se protrai por um tempo mais ou menos longo.
   Por outras palavras, o crime não se consuma enquanto o ofendido se encontre ainda privado da liberdade.
   Por outro lado, resulta da factualidade apurada nos autos que os recorrentes, conjuntamente com os restantes arguidos e indivíduos, intervieram directamente no sequestro do ofendido, tendo feito vigilância deste, fazendo com que o ofendido perdeu completamente a liberdade de locomoção.
   Nota-se que os próprios recorrentes também admitem que eles chegaram a desenvolver funções de vigilância sobre o ofendido, durante a sua retenção por outros arguidos.
   Nos termos do art.º 26.º do CPM, se o agente prestar, dolosamente e por qualquer forma, auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso, é considerado como cúmplice.
   O cúmplice somente favorece, facilita ou presta mero auxílio à execução do crime e só quando ultrapassa este limite e pratica uma parte necessária da execução da actividade criminosa é que se torna co-autor do crime.
   Face à matéria de facto assente nos autos, forçosamente é de concluir que, de facto, os recorrentes tiveram participação directa na prática dos factos ilícitos, executando por si e conjuntamente com os outros os factos que integram o crime de sequestro. O seu contributo ao facto não se limitava em prestar mero auxílio a outrem, mas sim executar directamente os actos.
   Assim, improcedem os argumentos dos recorrentes.
   
   Finalmente, afirmam os recorrentes que não foram dados por provados factos que permitam concluir que eles tiveram conhecimento dos montantes em dívida que eram devidos e vieram a ser parcialmente depositados em contas bancárias, pelo que é duvidoso que lhes se pudesse comunicar a circunstância qualificativa do valor consideravelmente elevado do crime de extorsão.
   Ora, resulta da matéria de facto provada que, durante o período em que ficou privado da liberdade, o ofendido foi agredido pelos recorrentes, conjuntamente com os outros, sendo que todos os arguidos combinaram, por acordo de vontade e com conjugação de esforço, utilizar violência e ameaça grave para constranger o ofendido e a sua mulher a entregar uma quantia superior a MOP$150.000,00.
   Parece-nos que a globalidade dos factos apurados nos autos permite tirar a ilação de que os recorrente tinham conhecimento do montante dos valores exigidos ao ofendido, tendo actuação conjunta e concertada com os outros arguidos, com finalidade a extorquir o ofendido.
   E mesmo admitindo o seu desconhecimento sobre o valor total e concreto da quantia pretendida, afigura-se-nos que, com a sua participação directa no acto, os recorrentes aderiram e aceitaram, pelo menos, o resultado final de tal extorsão, sendo-lhe indiferente a quantia exacta que afinal conseguiram.
   Daí que aos recorrentes se deve comunicar a circunstância qualificativa do crime de sequestro em causa.
   
   3 – Do recurso interposto pelo arguido C
   Aborda também o recorrente a questão relacionada com o registo da prova e a amplitude da apreciação da matéria de facto.
   Valem aqui para todos os efeitos as nossas considerações, sobre a mesma questão, já deduzidas na resposta aos recursos interpostos pelos arguidos A e B.
   
   Invoca o recorrente o vício de erro notório na vertente erro de julgamento e violação da legis artis previsto na al. c) do n.º 2 do art.º 400.º do CPPM, alegando que no decurso da audiência de julgamento, não foi produzida qualquer prova demonstrativa da prática dos crimes de sequestro, extorsão e arma.
   No entanto, consta das declarações para memória futura prestadas pelo ofendido e lidas em audiência de julgamento que o ora recorrente foi indicado pelo ofendido como pessoa que o agrediu mais fortemente.
   Conforme as declarações do próprio ofendido (fls. 764v e 765 dos autos), ‘entre os arguidos presentes, D, B, E, F, G, H e outros indivíduos chegaram a agredi-lo’.
   E mostradas as fotografias constantes de fls. 634 dos autos, declarou o ofendido que o indivíduo com o número de XXXXX também o agrediu.
   Mais tarde, voltou a dizer que o referido indivíduo com o número de XXXXX e outras pessoas não presentes o agrediram mais fortemente (1ª linha de fls. 765).
   É verdade que resulta dos presentes autos a referência do ora recorrente com o número de XXXXX (fls. 134), não obstante, compulsada a fls. 634 dos autos, não ter visto a fotografia da pessoa com o número XXXXX.
   No entanto, o que se importa é que o Tribunal de primeira instância formou a sua convicção sobre a intervenção do recorrente na prática dos factos.
   Tal como afirma o Tribunal ora recorrido, ‘independentemente de qualquer outra razão, sempre esbarraríamos no presente caso com a dificuldade de produzir agora uma outra convicção perante elementos de que o Tribunal não dispõe, não sendo caso de renovação da prova’.
   E está em causa uma questão de prova, que fica em princípio fora do poder de cognição do Tribunal de Última Instância.
   Acrescenta que não nos parece poder falar aqui na insuficiência de corpo de delito só porque o reconhecimento do ora recorrente foi feita por fotografia, e não por reconhecimento pessoal.
   Mesmo admitindo tal insuficiência, que constitui uma nulidade dependente de arguição, certo é que, tal como reconhece o próprio recorrente, não foi impugnada em devido tempo (art.º 107.º n.º 2, al. d) e n.º 3 do CPPM).
   E deve improceder a pretensão do recorrente em analisar agora a questão, já que não se trata duma questão de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas sim de insuficiência de prova.
   Sendo uma prova legal, as declarações para memória futura prestadas pelo ofendido nos termos do art.º 253.º do CPPM e lidas em audiência estão sempre sujeitas à valoração do Tribunal conforme o critério da livre apreciação da prova.
   
   Também não se vislumbra a verificação da nulidade por violação do comando do n.º 2 do art.º 355.º do CPPM.
   Por um lado, o erro de julgamento de um facto, a verificar, não integraria, a nosso ver, na matéria de fundamentação.
   Por outro lado, o Tribunal ora recorrido não deixou de fazer uma exposição, ainda concisa, de motivos de facto e de direito que fundamentaram a sua decisão.
   
   Pelo exposto, parece-nos que se deve julgar improcedente o recurso.
   
   Concluindo:
   1. A desistência do recurso feita pelo arguido D deve ser julgada válida e relevante.
   2. Deve ser negado provimento aos recursos interpostos pelos arguidos A, B e C.”
   
   Nesta instância o Ministério Público mantém a posição assumida na resposta.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Foram dados como provados os seguintes factos pelos Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância:
   Em 8 de Dezembro de 2004, o ofendido I, com a apresentação de J e de K, conheceu L (alcunha “L1” ou “L2”) e o subordinado deste – arguido B, em Zhuhai.
   Em 23 de Dezembro de 2004, L (alcunha “L1” ou “L2”), J e K deslocaram-se a Zhejiang para instigar o ofendido I a vir a Macau para jogar em casino de Macau.
   Em 24 de Dezembro de 2004, o ofendido I e o seu amigo M deslocaram-se a Zhuhai, e com o arranjo de J e do arguido B, eles hospedaram-se no Hotel(1).
   L (alcunha “L1” ou “L2”) disse que podia emprestar ao ofendido I uma quantia de HKD$300.000,00 (trezentas mil dólares de Hong Kong), tendo como condição o pagamento de toda a quantia emprestada no prazo de 15 dias, sob pena de pagar mais 3% da quantia emprestada para cada dia de atraso como juros, e o pagamento de 5% da quantia ganha a título de juros durante o jogo, o que o ofendido I aceitou.
   Em 25 de Dezembro de 2004, pelas 19H00, levado por L (alcunha “L1” ou “L2”), J e arguido B, o ofendido I chegou a uma mesa de bacará da Sala de VIP, situada no 3.º andar do Hotel(1), onde L (alcunha “L1” ou “L2”) entregou apenas uma quantia de HKD $20.000,00 (vinte mil dólares de Hong Kong) ao ofendido I para jogar.
   Durante todo o jogo, o ofendido, apenas por três vezes, acrescentou uma ficha de HKD$1.000,00 (mil dólares de Hong Kong) que estava na mão dele a cada aposta, e as restantes apostas foram feitas por L (alcunha “L1” ou “L2”).
   Até às 03H00 da madrugada do dia seguinte (dia 26 de Dezembro de 2004), o ofendido I perdeu todo o dinheiro que tinha pedido emprestado acima referido, e depois de tomar um copo de bebida oferecido por J, ele perdeu os sentidos. No estado de desmaio, ele só percebia que L (alcunha “L1” ou “L2”) continuava a jogar, e ouvia alguém lhe dizer ao lado da sua orelha: “perdeu mais um milhão ( ... ) perdeu mais um milhão ( ... )”.
   Finalmente, depois de ter recuperado os sentidos, o ofendido I só ficou a saber que já tinha pedido emprestado a L (alcunha “L1” ou “L2”) e aos arguidos uma quantia total de HKD$3.000.000,00 (três milhões dólares de Hong Kong).
   L (alcunha “L1” ou “L2”) exigiu ao ofendido I que assinasse um recibo de empréstimo, no montante de HKD$3.000.000,00 (três milhões dólares de Hong Kong), sob pena de não poder sair de Macau, e J disse ao ofendido I que todos eles eram membros da sociedade secreta, por isso, o ofendido I acabou por assinar o referido recibo de empréstimo por ter medo.
   Em 3 de Janeiro de 2005, J telefonou ao ofendido I para exigir o pagamento das dívidas, senão ele ia procurá-lo em Zhoushan com L (alcunha “L1” ou “L2”) e K. Como o ofendido I não tinha capacidade para pagar o empréstimo, L (alcunha “L1” ou “L2”), J e K exigiram ao ofendido que pagasse primeiro uma quantia de HKD$90.000,00 (noventa mil dólares de Hong Kong) como juros no prazo de 2 dias.
   Pelo telefone, J disse ao ofendido I que se ele não pagasse o dinheiro emprestado, ele iria matá-lo. Perante tais palavras, o ofendido sentia que a sua vida estava ameaçada, pelo que não se atrevia a voltar para Zhoushan e refugiu-se em Dinghal.
   Mesmo assim, J ainda conseguiu encontrar o ofendido I, ocasião em que manifestou a disposição de ajudar o ofendido I a procurar empréstimo de um amigo no sentido de pagar o dinheiro que ele tinha pedido emprestado.
   O ofendido I aceitou a proposta de J e acompanhou-o a Hangzhou, de forma a procurar apoio.
   Porém, quando chegaram a Hangzhou, J alterou o que tinha proposto, sugerindo ao ofendido I que pedisse novamente empréstimo a outrém para jogar.
   Em 14 de Janeiro de 2005, J dirigiu-se a Zhejian, instigando mais uma vez o ofendido I a vir a Macau para jogar, de forma a ganhar o que tinha perdido.
   Em 15 de Janeiro de 2005, pelas 18H46, acompanhado por J, o ofendido I entrou em Macau pelo Aeroporto Internacional de Macau, onde ele foi recebido por “N” e um indivíduo não identificado e foi depois conduzido para o lobby do Hotel(2).
   Em seguida, foi conduzido pelo arguido A para [Endereço(1)].
   Mais tarde, L (alcunha “L1” ou “L2”), os arguidos E, H, G, D, F e 4 ou 5 indivíduos não identificados chegaram e agrediram no copo do ofendido I a socos e pontapés, incluindo cabeça, cara, costas, cinto, dois lados da região abdominal e coxas.
   Na altura, dentre L (alcunha “L1” ou “L2”), os arguidos E, H, G, D, F e outros 4 ou 5 indivíduos não identificados, houve um que espancou o ofendido I com um bastão biarticulado, de cor preta e um outro que ameaçou e espancou o ofendido I com uma lanterna de cor preta.
   J retirou dum estojo feito de jornais dobrados uma faca aguda, com o cabo de cor preta e o comprimento de 40 cm, e agitou-a em frente ao ofendido I, enquanto L (alcunha “L1” ou “L2”) disse em tom severo ao ofendido I: “Ou você paga imediatamente o dinheiro emprestado ou vou cortar as suas pernas e mãos ( ... )”.
   Na altura, o ofendido foi espancado até em coma e depois de voltar a si, L (alcunha “L1” ou “L2”) entregou o telefone ao ofendido I, exigindo-lhe que fornecesse o número de telefone da mulher dele para exigir a quantia de HKD$3.000.000,00 (três milhões dólares de Hong Kong).
   L (alcunha “L1” ou “L2”) e J disseram ao ofendido I em tom severo: “Se você dizer aos seus familiares a participar à polícia, vou matar toda os seus familiares ( ... )”.
   Em seguida, o ofendido I foi posto numa cama situada no fundo da referida fracção, tendo de ficar na cama, não podendo movimentar-se livremente.
   Com a disposição dos arguidos E, A e um homem não identificado, P, os arguidos H, G, D e F, foram divididos em grupos de 4 a 6 pessoas, cada destes encarregava-se, por turno de 8 horas, de vigiar o ofendido I na referida fracção; e durante tal período, os arguidos B e C apareciam frequentemente na referida fracção para guardar e vigiar o ofendido I.
   O ofendido foi vigiado rigorosamente por P e pelos arguidos E, A, B, H, G, D, F e C sempre com 2 deles sentavam-se ao lado da janela e outros dois na outra cama, privando o ofendido I de toda a liberdade de acção.
   Em 16 de Janeiro de 2005, à noite, como não conseguiu tolerar mais as agressões a ele praticadas, o ofendido I forneceu aos arguidos o número de telefone da sua mulher O – XXXXXXXXXXX.
   Pelo telefone, L (alcunha “L1” ou “L2”) disse à mulher do ofendido I: “Prepare três milhões. Se não tiver dinheiro, o seu marido vai perder a vida ( ... )”.
   Pouco depois, J telefonou à mulher do ofendido I, O, dizendo-lhe que o ofendido I tinha sido raptado por um grupo de pessoas de Shanghai e de Macau, se não pagasse três milhões, o ofendido I seria morto.
   Em 17 de Janeiro de 2005, ao meio-dia, sob a coacção dos referidos arguidos, o ofendido I telefonou várias vezes à sua mulher O, pedindo-lhe para arranjar dinheiro.
   Desde 18 de Janeiro de 2005, o ofendido I via-se obrigado a telefonar à sua mulher O a cada duas horas, apressando-a a arranjar dinheiro, e nessas ocasiões, os arguidos não deixavam de espancar o ofendido I, para que a mulher deste ouvisse o grito de dor do marido e arranjasse aceleradamente o dinheiro.
   Em 18 de Janeiro de 2005, para a segurança da vida do ofendido I, a sua mulher O depositou, conforme a exigência de L (alcunha “L1” ou “L2”), RMB¥150.000,00 (cento e cinquenta mil de RMB) na conta bancária do Banco(1), n.º XXXXXXXXXXXXXXXXX, fornecida por L (alcunha “L1” ou “L2”), com o titular de Q, (vide fls. 39 dos autos).
   Em 20 de Janeiro de 2005, conforme a exigência de L (alcunha “L1” ou “L2”), O depositou RMB¥70.000,00 (setenta mil RMB) na conta bancária do Banco(2) n.º XXXXXXXXXXXXXXXXXXX, fornecida por L (alcunha “L1” ou “L2”), com o titular de Q.
   Em 24 e 25 de Janeiro de 2005, conforme a exigência de L (alcunha “L1” ou “L2”), O depositou RMB¥20.000,00 (vinte mil RMB) na conta bancária do Banco(2) n.º XXXXXXXXXXXXXXXXXXX, fornecida por L (alcunha “L1” ou “L2”), com o titular de R.
   Em 30 de Janeiro de 2005, o ofendido I viu-se obrigado a telefonar à sua mulher O, pedindo-lhe para transferir uma quantia de quinhentas mil para sua liberdade.
   Depois disso, todos os dias, à meia-noite, o ofendido I via-se obrigado a telefonar à sua mulher O, exigindo-lhe para depositar dinheiro nas contas bancárias acima referidas. Naquelas ocasiões, os arguidos não deixaram de espancar o ofendido, para que a mulher deste ouvisse o grito de dor do marido e depositasse aceleradamente o dinheiro nas referidas contas bancárias.
   Em 7 de Fevereiro de 2005, conforme a exigência de L (alcunha “L1” ou “L2”), O depositou RMB¥20.000,00 (vinte mil RMB) na conta bancária do Banco(1) n.º XXXXXXXXXXXXXXXXX, fornecida por L (alcunha “L1” ou “L2”), com o titular de Q.
   No mesmo dia, a pedido de O, um amigo dela depositou RMB¥150.000,00 (cento e cinquenta mil RMB) numa conta bancária do Banco(1).
   Naquele período, os arguidos tinham telefonado várias vezes à mulher do ofendido I, O, através dos números 00853-XXXXXXX, XXXXXXXXXXX, XXXXXXXXXX, XXXXXXXX, XXXXXXXX, XXXXXXXX, XXXXXXXXXXX, advertindo-a, com palavras ameaçadoras, de que não podia participar à polícia.
   No período de o ofendido ser sequestrado, os arguidos não deixaram o ofendido I tomar refeições se eles não recebessem o dinheiro transferido.
   Os arguidos E, F, B, D, G, H, C, e mais 4 ou 5 indivíduos não identificados espancaram o ofendido I durante o período supracitado, as condutas destes provocaram lesões directas e necessárias descritas no relatório de médico-legal a fls. 466, que necessitaram de 15 dias para convalescer, o qual se dá aqui por reproduzido para os devidos efeitos legais.
   Até 8 de Fevereiro de 2005, pelas 11H00, L (alcunha “L1” ou “L2”) disse ao ofendido I que ele já recebesse uma quantia total de RMB¥420.000,00 (quatrocentas e vinte mil RMB), transferida pela mulher dele, O, mas o ofendido I ainda contraia uma dívida de RMB¥3.030.000,00 (três milhões e trinta mil RMB) e para isso, ele exigiu ao ofendido I que assinasse um recibo de empréstimo.
   Além disso, L (alcunha “L1” ou “L2”) exigisse ao ofendido I que escrevesse uma carta, em que se referiu que ele voluntariamente veio a Macau e pediu empréstimo para jogos, e estava disposto a pagar o dinheiro emprestado (vide o auto de apreensão a fls. 564), sob pena de o ofendido I não poder ser libertado.
   L (alcunha “L1” ou “L2”) também disse ao ofendido I: “vou matar toda a sua família se você participar à polícia depois de voltar para o Interior da China ( ... )”.
   O ofendido I aceitou, e depois, na companhia de “N” e do arguido A, o ofendido dirigiu-se às Portas do Cerco de Macau de táxi e saiu de Macau sozinho pelo posto fronteiriço.
   Depois de sair de Macau, o ofendido I recebeu chamadas incessantes de L (alcunha “L1” ou “L2”), J e K, nas quais lhe exigiram a devolução do empréstimo acima referido:
   – Em 18 de Fevereiro de 2005, pelas 16H28, L (alcunha “L1” ou “L2”) telefonou de Shanghai ao ofendido I, através do número de telefone XXXXXXXXXXX;
   – Em 25 de Fevereiro de 2005, pelas 15H57, L (alcunha “L1” ou “L2”) telefonou de Shanghai ao ofendido I, através do número de telefone XXXXXXXXXXX;
   – Em 26 de Fevereiro de 2005, pelas 19H28, L (alcunha “L1” ou “L2”) telefonou de Shanghai ao ofendido I, através do número de telefone XXXXXXXXXXX;
   – Em 28 de Fevereiro de 2005, pelas 15H56, L (alcunha “L1” ou “L2”) telefonou de Shanghai ao ofendido I, através do número de telefone XXXXXXXXXXX;
   – Pelas 17H41 do mesmo dia, J telefonou por duas vezes de Shanghai ao ofendido I, através do número de telefone XXXXXXXXXXXXX;
   – Em 2 de Março de 2005, pelas 13h40, L (alcunha “L1” ou “L2”) telefonou de Shanghai ao ofendido I através do número de telefone XXXXXXXXXXX;
   – Em 4 de Março de 2005, pelas 10H05, L (alcunha “L1” ou “L2”) telefonou de Macau ao ofendido I;
   – Em 4 de Março de 2005, pelas 16h35 e 17h05, o suspeito S (S1) telefonou de Zhuhai através do número de telefone XXXXXXXXXXX ao ofendido I;
   – Pelas 17H11 do mesmo dia, S (S1) telefonou de Zhuhai através do número de telefone XXXXXXXXXXX ao ofendido I;
   – Em 7 de Março de 2005, pelas 17H45, K telefonou de Shanghai através do número de telefone XXXXXXXXXXX ao ofendido I;
   – Em 14 de Março de 2005, entre 18H00 e 22H00, L (alcunha “L1” ou “L2”), J e K telefonou por mais de dez vezes ao ofendido I, através dos números de telefone 00853XXXXXXX e XXXXXXXXXXX e finalmente, pelas 22H49, o ofendido I acabou por atender a chamada, na qual eles (sic);
   – Em 15 de Março de 2005, pelas 12H10, J telefonou de Shanghai através do número de telefone XXXXXXXXXXX ao ofendido I.
   O arguido B, em conjunto com os indivíduos não identificados, sabiam perfeitamente que não podiam fornecer, por acordo de vontades e com a distribuição de tarefa, ao ofendido I o dinheiro ou outro recurso destinado ao jogo, com o intuito de tentar obter benefícios pecuniários ilícitos.
   Os arguidos E, A, B, C, H, G, D, F, em conjunto com os indivíduos não identificados, detiveram o ofendido I em espaço fechado contra a vontade deste, privando o ofendido da liberdade ambulatória por mais de 2 dias, durante esse período, os referidos arguidos torturaram e maltrataram-no desumanamente.
   Os arguidos E, A, B, C, H, G, D, F, em conjunto com os indivíduos não identificados, combinaram, por acordo de vontades e com esforço conjunto, a utilizar violência, ameaça grave e armas para constranger os ofendidos I e O a entregarem uma quantia mais de MOP$150.000,00 (cento e cinquenta mil patacas), bem como sabendo perfeitamente que os ofendidos I e O não tinha obrigação imposta por lei para entregar a referida quantia.
   Os arguidos E, A, B, C, H, G, D, F bem sabiam as naturezas e características da faca, lanterna e bastão biarticulado, tomando conhecimento de que os referidos instrumentos podiam ser usados como armas de agressão, e bem sabendo que não podiam deter, combinar e usar tais armas para o objectivo acima referido.
   Os arguidos E, B, H, G, D, F, C sabiam perfeitamente que não podiam ofender na forma dolosa o ofendido I nem podiam recorrer à violência contra o ofendido que lhe causou lesões e fracturas.
   Os arguidos E, A, B, C, H, G, D, F agiram de forma livre, voluntária e dolosa, em conjugação de vontades e de esforços.
   Os arguidos E, A, B, C, H, G, D e F bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
   O 1.º arguido E frequentava o Curso de Formação em Técnicas Profissionais num instituto antes de ser preso, auferindo mensalmente um subsídio de MOP$2.000,00.
   É solteiro, ninguém fica a seu cargo.
   O arguido manteve-se em silêncio na audiência de julgamento sobre os factos que lhe foram imputados, é primário.
   O 2.º arguido A era bate-fichas no casino antes de ser preso, auferindo mensalmente MOP$5.000,00 a MOP$6.000,00.
   É casado, tem a seu cargo a mãe e uma filha.
   O arguido manteve-se em silêncio na audiência de julgamento sobre os factos que lhe foram imputados, é primário.
   O 3.º arguido B era bate-fichas no casino antes de ser preso, auferindo mensalmente MOP$5.000,00 a MOP$6.000,00.
   É solteiro, tem a seu cargo os pais.
   Confessou parcialmente os factos, é primário.
   O 4.º arguido era empregado de mesa antes de ser preso, auferindo mensalmente MOP$5.500,00.
   É solteiro, ninguém fica a seu cargo.
   O arguido manteve-se em silêncio na audiência de julgamento sobre os factos que lhe foram imputados, não é primário.
   O 5.º arguido H era empregado de mesa antes de ser preso, auferindo mensalmente MOP$3.000,00 a MOP$4.000,00.
   É solteiro, ninguém fica a seu cargo.
   O arguido manteve-se em silêncio na audiência de julgamento sobre os factos que lhe foram imputados, é primário.
   O 6.º arguido G era desempregado antes de ser preso, solteiro, ninguém fica a seu cargo.
   O arguido manteve-se em silêncio na audiência de julgamento sobre os factos que lhe foram imputados, é primário.
   O 7.º arguido U era entregador antes de ser preso, auferindo mensalmente MOP$6.000,00.
   É solteiro, ninguém fica a seu cargo.
   O arguido manteve-se em silêncio na audiência de julgamento sobre os factos que lhe foram imputados, é primário.
   O 8.º arguido D era servente de cozinha antes de ser preso, auferindo mensalmente MOP$3.500,00 a MOP$4.500,00.
   É solteiro, ninguém fica a seu cargo.
   O arguido manteve-se em silêncio na audiência de julgamento sobre os factos que lhe foram imputados, é primário.
   O 9.º arguido F era servente de cozinha antes de ser preso, auferindo mensalmente MOP$4.500,00.
   É solteiro, ninguém fica a seu cargo.
   O arguido manteve-se em silêncio na audiência de julgamento sobre os factos que lhe foram imputados, não é primário.
   O 10.º arguido V era operário da reparação de elevador, auferindo mensalmente MOP$4.000,00.
   É solteiro, tem a seu cargo os pais.
   O arguido manteve-se em silêncio na audiência de julgamento sobre os factos que lhe foram imputados, é primário.
   O 11.º arguido W é condutor, auferindo mensalmente MOP$10.000,00.
   É solteiro, tem a seu cargo os pais.
   O arguido manteve-se em silêncio na audiência de julgamento sobre os factos que lhe foram imputados, é primário.
   O 12.º arguido X é empregado em Karaoke, auferindo mensalmente MOP$4.500,00.
   É solteiro, tem a seu cargo a mãe.
   O arguido manteve-se em silêncio na audiência de julgamento sobre os factos que lhe foram imputados, é primário.
   O 13.º arguido C é desemprego, solteiro, tem a seu cargo os pais e dois filhos.
   O arguido negou os factos, é primário.
   
   Factos não provados: Os restantes factos constantes da acusação, nomeadamente:
   A partir de data não apurada, Y, P e os arguidos E, A, B, T, C começaram a seguir um cabecilha duma sociedade secreta – L (alcunha “L1” ou “L2”).
   Para alargar os poderes da sociedade acima referida, o arguido E começou a recrutar “subordinados”.
   O arguido E recrutou os arguidos H, G, U, D, F, V e X como seus “subordinados”.
   Com a associação encabeçada por L (alcunha “L1” ou “L2”), os arguidos acima referidos, tendo distribuído tarefas por acordo conjunto, começaram a dedicar-se às actividades de troca de fichas e de concessão de empréstimo em casino de Macau, chegando a obrigar os clientes de casino a pagar as dívidas por meio de sequestro.
   Y, os arguidos E, A, B e C responsabilizavam-se por emprestar dinheiro a clientes de casino, e P, os arguidos T, H, G, U, D, F, V e X encarregavam-se de sequestrar e vigiar os clientes de casino quando estes não conseguiram pagar de imediato as dívidas.
   Encabeçada por L (alcunha “L1” ou “L2”), a referida associação também dedicava-se às actividades de troca de fichas e de concessão de empréstimo em casino de Macau com outra associação de concessão de empréstimo encabeçada por S (alcunha “S1”), chegando a obrigar os clientes de casino a pagar as dívidas por meio de sequestro.
   A partir de data não apurada, o arguido W começou a seguir S (alcunha “S1”) e dedicar-se às actividades acima referidas a título da associação acima referida.
   Desde Maio de 2004, J começou a ajudar L (alcunha “L1” ou “L2”) a procurar clientes de casino que necessitavam de dinheiro para jogar, e começou a instigar frequentemente o seu conterrâneo em Zhejiang, ofendido I, a vir a Macau para jogar em casino de Macau.
   O referido dinheiro de jogo foi fornecido em empréstimo por L (alcunha “L1” ou “L2”) e S (alcunha “S1”), por isso, durante o jogo, o arguido W, por ordem do seu patrão – S (alcunha “S1”), apareceu de vez em quando para fazer vigilância.
   Ao chegar à referida fracção, o arguido E mandou os arguidos A e D a correr as cortinas de janela e fechar bem a porta principal e as janelas da referida fracção, a fim de evitar o ofendido I pedir socorro e escapar-se.
   Desde às 18H46 do dia 15 de Janeiro de 2005 até às 11H00 do dia 8 de Fevereiro do mesmo ano, isto é, no período em que o ofendido I foi sequestrado na fracção acima referida, o arguido W ia frequentemente à referida fracção, ordenando os arguidos B e C a espancar o ofendido I a socos e pontapés e agredi-lo com o bastão biarticulado e a lanterna supracitados; e por duas vezes, o ofendido foi espancado até ficar em coma mas os arguidos jogavam água nele para acordá-lo.
   Durante o longo período de 24 dias de ser sequestrado, L (alcunha “L1” ou “L2”), J, K e o arguido W iam à referida fracção a cada dois dias, geralmente às 12H00, 14H00, 20H00 ou 23H00, exigindo ao ofendido I que telefonasse à mulher para arranjar dinheiro, e na maioria dos casos, foi o arguido W que conversou com a mulher de I no telefone.
   Os arguidos E, A, B, T, C, H, G, U, D, F, V, X, W, em conjunto com os indivíduos não identificados acima referidos, associaram-se voluntariamente e praticaram os factos acima mencionados e para isso, distribuíram tarefas juntamente, chegando a consenso comum e praticando desde o início até ao fim os referidos factos a título da associação.
   Os arguidos E, A, B, T, C, H, G, U, D, F, V, X, W, em conjunto com os indivíduos não identificados, mesmo utilizaram violência para atingir o objectivo.
   Os arguidos E, A, B, T, C, H, G, U, D, F, V, X, W conluiaram-se em conjunto com os indivíduos não identificados, tomando perfeito conhecimento de que os seus actos conjuntos foram praticados para objectivo ilícito, bem como sabiam, concordando e aceitando a ocorrência dos referidos crimes, nomeadamente dedicaram-se às actividades de empréstimo ilícito para jogo.
   Os arguidos E, A, T, C, H, G, U, D, F, V, X, W, em conjunto com os indivíduos não identificados, sabiam perfeitamente que não podiam fornecer, por acordo de vontades e com a distribuição de tarefa, ao ofendido I o dinheiro ou outro recurso destinado ao jogo, com o intuito de tentar obter benefícios pecuniários ilícitos.
   Os arguidos T, U, V, X, W, em conjunto com os indivíduos não identificados, detiveram o ofendido I em espaço fechado contra a vontade deste, privando o ofendido da liberdade ambulatória por mais de 2 dias.
   Os arguidos T, U, V, X, W, em conjunto com os indivíduos não identificados, combinaram, por acordo de vontades e com esforço conjunto, a utilizar violência, ameaça grave e armas para constranger os ofendidos I e O a entregarem uma quantia mais de MOP$150.000,00 (cento e cinquenta mil patacas), bem como sabendo perfeitamente que os ofendidos I e O não tinha obrigação imposta por lei para entregar a referida quantia.
   Os arguidos T, U, V, X, W bem sabiam as naturezas e características da faca, lanterna e bastão biarticulado, tomando conhecimento de que os referidos instrumentos podiam ser usados como armas de agressão, e bem sabendo que não podiam deter, combinar e usar conjuntamente tais armas para o objectivo acima referido.
   Os arguidos E, A, B, T, C, H, G, U, D, F, V, X, W, em conjunto com os indivíduos não identificados, combinaram, por acordo de vontades e em comunhão de esforços, a utilizar meios de ameaça grave (só permitiram o ofendido I a sair depois de assinar o recibo de empréstimo; ameaçando o ofendido para a devolução do empréstimo através das chamadas incessantes depois de libertá-lo; não permitindo o ofendido a participar à polícia), para constranger os ofendidos I e O a entregarem a quantia de RMB¥3.030.000,00 (três milhões e trinta mil RMB), todos eles bem sabiam que os ofendidos I e O não tinham obrigação imposta por lei para entregar a referida quantia. A não concretização da intenção destes não foi da sua própria vontade.
   O arguido W sabia perfeitamente que não podia ofender na forma dolosa o ofendido I nem podiam recorrer à violência contra o ofendido que lhe causou lesões e fracturas.
   Os arguidos T, U, V, X, W agiram de forma livre, voluntária e dolosa, em conjugação de vontades e de esforços.
   Os arguidos T, U, V, X, W bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
   
   
   2.2 Desistência do recurso pelo recorrente D
   O recorrente D, depois de apresentar a motivação do recurso, veio desistir por meio de requerimento ainda antes de os presentes autos subir para este Tribunal de Última Instância.
   De acordo com o disposto no art.° 405.° do Código de Processo Penal (CPP), o arguido pode desistir do recurso interposto até ao momento de o processo ser concluso ao relator para exame preliminar.
   Sendo tempestivo o requerimento da desistência do recurso apresentado pelo recorrente D, é de julgar válida a desistência do recurso.
   
   
   2.3 Os recursos interpostos pelos recorrentes A e B
   2.3.1 Erro de julgamento na reapreciação da prova produzida
   Os recorrentes alegam que o tribunal recorrido demitiu da função de controlar as provas produzidas em primeira instância, concretamente não procedeu ao reexame da prova contida nas declarações para memória futura prestadas pelo ofendido, quando os mesmos não requereram complementarmente a renovação de prova perante o tribunal de recurso.
   No fundo, entendem os recorrentes que é obrigatório para a instância superior examinar criticamente as provas produzidas em primeira instância desde que haja documentação destas.
   
   Nos termos do art.º 39.º da Lei n.º 9/1999: “Excepto disposição em contrário das leis de processo, o Tribunal de Segunda Instância, quando julgue em recurso, conhece de matéria de facto e de direito.”
   É certo que, em princípio, os poderes de cognição do Tribunal de Segunda Instância incidem sobre a matéria de facto. Mas tais poderes são sempre exercidos nos termos das disposições processuais, enquanto não sejam excepcionados por lei.
   No recurso de processo penal, não é possível ao Tribunal de Segunda Instância alterar os factos fixados pelo tribunal de primeira instância senão no caso de renovação da prova.
   Sobre a renovação da prova, prescreve o art.º 415.º do CPP:
   “Quando tenha havido documentação das declarações prestadas oralmente perante o tribunal singular ou o tribunal colectivo, o Tribunal de Segunda Instância admite a renovação da prova se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 400.º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo.”
   Segundo este preceito, a razão de ser da renovação da prova na segunda instância reside na existência dos vícios previstos no n.º 2 do art.º 400.º do CPP na decisão recorrida e a documentação das declarações prestadas perante o tribunal de primeira instância constitui a sua condição material.
   
   Os recorrentes fundamentam a alegada possibilidade de o Tribunal de Segunda Instância poder reapreciar as provas produzidas em primeira instância, independentemente do pedido de renovação da prova, no novo regime de recurso de Portugal introduzido na reforma de processo penal operada pela Lei n.° 59/98, que afasta nitidamente do sistema de Macau, no aspecto de modificabilidade da matéria de facto pelas Relações. Obviamente esta parte de fundamentação dos recursos é votada à improcedência.
   O regime actual de recursos penais para o Tribunal de Segunda Instância da RAEM é semelhante ao de Portugal antes da reforma na parte respeitante ao recurso da sentença de tribunal singular perante as Relações.
   Com a reforma de processo penal de Portugal de 1998, passa a prever expressamente no art.° 431.° do CPP português os casos em que as Relações podem modificar a matéria de facto fixada pela primeira instância, para além da situação em que tem havido lugar à renovação da prova.
   Mas a modificabilidade da matéria de facto pelo nosso Tribunal de Segunda Instância continua a limitar a esta última situação, ou seja, no caso de haver renovação da prova.
   Assim, sempre conforme o nosso CPP, nomeadamente o seu art.° 415.°, n.° 1, o efeito da documentação da prova conhece o limite na renovação da prova perante o Tribunal de Segunda Instância, não podendo estender ao âmbito não consentido pelo legislador.
   
   
   2.3.2 Violação do princípio in dubio pro reo e a nulidade por falta de fundamentação
   Os recorrentes entendem que as expressões “parece não haver dúvidas” ou “parece-nos” constantes do acórdão recorrido são incompatíveis com a certeza necessária à condenação e que se deve prevalecer o princípio in dubio pro reo.
   
   Ora, vistas bem as expressões referidas no acórdão recorrido, facilmente se percebe que o tribunal recorrido não está a manifestar a sua dúvida sobre a prática dos crimes de sequestro e de extorsão qualificada pelos recorrentes, mas apenas exprimir a sua visão sobre os factos provados e tirar as respectivas conclusões. Assim não há violação do tal princípio.
   
   Sobre a falta de fundamentação do acórdão recorrido, os recorrentes limitam-se a referir a disposição do art.° 355.°, n.° 2 do CPP, sem especificar concretamente em que consiste a nulidade invocada, sendo certo que o acórdão recorrido está bem fundamentado, pelo que é manifestamente improcedente esta parte dos recursos.
   
   
   2.3.3 Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada em relação ao crime de sequestro
   O recorrente A sustenta que ele só pode ser considerado como cúmplice do crime de sequestro, alegando que, consumado o tal crime, só veio a desenvolver funções de vigilância sobre o ofendido, durante a sua retenção pelos credores no apartamento, e o crime teria sido realizado com ou sem a sua intervenção.
   Nos mesmos termos defende o outro recorrente B que não se encontrava em Macau no dia da prática do facto de sequestro em si mesmo, só pode ser condenado como cúmplice do crime por ter apenas intervenção na vigilância do ofendido posterior a tal consumação.
   
   A lei incrimina por crime de sequestro quem detiver, prender, mantiver detida ou presa outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade (art.° 152.°, n.° 1 do CP). Assim, estão no âmbito dos seus elementos objectivos típicos tanto os actos de detenção ou prisão, como da sua manutenção.
   “O crime de sequestro é, precisamente, o exemplo clássico do crime permanente ou duradouro. A sua consumação material (o resultado / dano privação da liberdade) ocorre (inicia-se) com a efectiva privação da liberdade e só termina com a libertação da vítima.”1
   Segundo os factos provados, para além de ter sido sempre o recorrente A a levar o ofendido de carro ao lugar de sequestro e acompanhá-lo de táxi deste lugar até à fronteira das Portas do Cerco quando foi libertado, os dois recorrentes vigiavam, juntamente com outros indivíduos e em turnos, o ofendido no referido lugar durante o período em que este estava privado de liberdade.
   Assim, os dois recorrentes praticaram realmente os actos de privação de liberdade sobre o ofendido enquanto o crime de sequestro permanecia. Eles não estavam apenas a prestar auxílio material ou moral à prática por outrem do crime na qualidade de cúmplice, tal como está previsto no art.º 26.º do CP, mas antes eram mesmo autores que executaram o facto típico do crime, tomaram parte directa na sua execução, por acordo e juntamente com outros indivíduos (art.º 25.º do CP).
   É manifesto que os recorrentes não podem ser considerados como cúmplices do crime de sequestro.
   
   
   2.3.4 Comunicabilidade da circunstância qualificativa do crime de extorsão
   Em relação ao crime de extorsão qualificada, os recorrentes entendem que não foram dados por provados factos que permitam concluir que eles tivessem conhecimento dos montantes em dívida e vieram a ser parcialmente depositados em contas bancárias, pelo que é duvidoso que os recorrentes tivessem conhecimento dos valores em causa para serem condenados pelo crime agora em causa por circunstância qualificativa de valor consideravelmente elevado prevista na al. a) do n.° 2 do art.° 198 do CP.
   
   Sobre a questão o tribunal recorrido concluiu que:
   “Da factualidade apurada nos autos é possível tirar a ilação de que os recorrentes tinham conhecimento do montante dos valores exigidos pelos arguidos, tendo todos actuado em conjunto com finalidade de extorquir o ofendido.”
   Em relação ao poder de tirar ilação dos factos provados pelo Tribunal de Segunda Instância, o nosso tribunal já decidiu nos termos seguintes:
   “É lícito ao Tribunal de Segunda Instância, depois de fixada a matéria de facto, fazer a sua interpretação e esclarecimento, bem como extrair as ilações ou conclusões que operem o desenvolvimento dos factos, desde que não os altere.
   O Tribunal de Última Instância, atentos os seus poderes de cognição limitados à matéria de direito e não de facto, só pode censurar as conclusões ou desenvolvimento feitos pelo Tribunal de Segunda Instância sobre a matéria de facto fixada se este infringir o seu limite, tirando conclusões que não correspondam ao seu desenvolvimento lógico.”2
   
   A ilação tirada pelo Tribunal de Segunda Instância não afastou tal orientação. Na realidade, da factualidade provada verifica-se facilmente que os dois recorrentes, em conjugação com outros arguidos, privaram o ofendido da liberdade, usando violência e ameaça grave, de modo a constranger o ofendido a entregar dinheiro no valore superior a 150.000,00 patacas. A vigilância exercida sobre o ofendido não tem outra finalidade senão como meio de pressão para o ofendido lhes entregar o dinheiro que se planearam extorquir. Nada a censurar a ilação a que chegou o tribunal recorrido.
   
   Assim sendo, devem ser rejeitados os recursos interpostos pelos recorrentes A e B por manifesta improcedência.
   
   
   2.4 O recurso interposto pelo recorrente C
   O ora recorrente suscitou no seu recurso sobretudo duas questões: a falta de reapreciação da prova produzida em primeira instância e a nulidade de sentença por falta de fundamentação de facto ou erro de julgamento de um facto.
   
   
   2.4.1 Reapreciação da matéria de facto
   Em relação à primeira questão, o recorrente considera que a gravação da audiência de julgamento de primeira instância permite ao tribunal de recurso a reapreciação da matéria de facto sem limites e o Tribunal de Segunda Instância devia proceder ao exame crítico da prova.
   Sobre a questão vale inteiramente para aqui o acima exposto no ponto 2.3.1 sobre a mesma questão, para o qual se remete, o que determina a improcedência manifesta do recurso nesta parte.
   
   
   2.4.2 Nulidade de sentença
   Sob esta questão, o recorrente alega que o tribunal de primeira instância não poderia ter dado provados os crimes de sequestro, extorsão qualificada e uso de arma proibida a ele imputados, porquanto no decurso da audiência de julgamento não foi produzida qualquer prova demonstrativa da prática daqueles factos pelo recorrente. O Tribunal de Segunda Instância partiu de um facto ou prova inexistente para condenar o recorrente, pois não existe na fls. 634 a fotografia n.° XXXXX referida nas declarações para memória futura do ofendido para identificar o ora recorrente.
   
   Ora, nas declarações para memória futura prestadas pelo ofendido perante o juiz de instrução criminal constante das fls. 762 a 766, aquele referiu expressamente que no local onde foi privado da liberdade, o indivíduo de n.° XXXXX na fotografia constante das fls. 634 chegou a agredi-lo. E mais referiu que foi o referido indivíduo de n.° XXXXX um dos indivíduos que o agrediu mais severamente.
   Nas fls. 634 e 635 estão coladas várias fotografias do arquivo da Polícia Judiciária, todas dos arguidos dos presentes autos, conforme a nota do investigador desta Polícia escrita na folha anterior.
   É verdade que neste momento não se encontra nenhuma fotografia de indivíduo de n.° XXXXX a fls. 634, apesar de se poder verificar vestígios de cola no lugar onde devia estar a tal fotografia.
   No entanto, não é verdade que inexiste qualquer fotografia de indivíduo de n.° XXXXX nos autos. Precisamente nas fls. 134 está junta uma ficha da Polícia Judiciária do próprio recorrente com os seus elementos de identificação e a sua fotografia de n.° XXXXX colada. Curiosamente está gravada nesta folha mais uma outra fotografia solta de n.° XXXXX inteiramente igual àquela colada, com vestígio de cola no seu verso.
   Uma vez que em ambas as folhas, de n.°s 134 e 634, referem-se a informações da mesma Polícia Judiciária sobre o suspeito ou os arguidos do presente caso, as fotografias de n.° XXXXX devem respeitar a mesma pessoa, ou seja, ao ora recorrente.
   Aliás, o facto de das fls. 634 constar uma fotografia n.° XXXXX nunca foi antes contestado, mesmo no recurso interposto por ora recorrente perante o Tribunal de Segunda Instância, patrocinado pelo mesmo advogado. Só por razão que agora se desconhece desapareceu a referida fotografia das fls. 634. Assim, não se deve considerar que o tribunal recorrido decidiu com base numa prova ou facto inexistente.
   
   Decidido este ponto, estamos em condições de apreciar o fundo da presente questão.
   Sobre a alegada insuficiência de corpo de delito ou diligências essenciais para a descoberta da verdade, já há muito passou o prazo para a sua arguição, nos termos do art.° 107.°, n.°s 2, al. d) e 3 do CPP, que o próprio recorrente também reconhece na sua motivação.
   Nas declarações para memória futura prestadas pelo ofendido perante o juiz de instrução criminal, foi referido o recorrente por meio da tal fotografia dos presentes autos.
   Tais declarações foram valoradas pelo colectivo de primeira instância e estão sujeitas a sua livre apreciação.
   A afirmação do recorrente de que não há prova para lhe imputar os crimes de sequestro, extorsão qualificada e uso de armas proibidas constitui uma questão de insuficiência de prova, insindicável pelo tribunal de recurso.
   Improcedem manifestamente os fundamentos do recurso também nesta parte.
   
   Em consequência, deve o recurso do ora recorrente também rejeitado por manifesta improcedência.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em:
   – Julgar válida a desistência do recurso apresentada pelo recorrente D;
   – Rejeitar os recursos de A, B e C.
   Nos termos do art.° 410.°, n.° 4 do Código de Processo Penal, são estes três recorrentes condenados a pagar individualmente 4UC.
   Custas pelos recorrentes solidariamente com a taxa de justiça fixada em 1UC para o recorrente D e 4UC para cada um dos restantes recorrentes.
   Extraia certidão das páginas 43 a 46 do presente acórdão e das fls. 134, 634 e 762 a 766 dos presentes autos e remeta ao Conselho dos Magistrados Judiciais para efeitos tidos por convenientes.


   Aos 15 de Dezembro de 2006.


Juízes : Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 409.
2 Acórdãos do TUI dos processos n.°s 13/2001 de 31 de Outubro de 2001, Acórdãos do Tribunal de Última Instância da RAEM – 2001, p. 946 e 8/2003 de 28 de Maio de 2003, Acórdãos do Tribunal de Última Instância da RAEM – 2003, p. 796.
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Processo n.° 40 / 2006 43