打印全文
Proc. nº 388/2011
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 13 de Março de 2014
Descritores:
-Recurso interlocutório
-Restaurante
-Relação contratual
-Responsabilidade civil do dono
-Condições higiénicas e sanitárias

SUMÁRIO:

I - Interposto pelo autor recurso jurisdicional da sentença que julgou improcedente a acção, não haverá lugar à apreciação de recurso interlocutório interposto pelo réu de despacho que indefere parcialmente a realização de uma perícia médico-legal se a sentença vier a ser confirmada, face ao disposto no art. 628º, nº2, do CPC.

II - Em matéria de sanidade, higiene alimentar e limpeza, é considerada infracção o mau estado de conservação e limpeza das instalações, equipamentos e utensílios de um restaurante.

III - É contratual a relação que se estabelece entre o cliente e o dono do restaurante, ficando este de fornecer àquele a refeição (obrigação principal) e de proporcionar-lhe ainda condições de segurança, higiene e limpeza nas instalações do estabelecimento, incluindo as sanitárias (obrigação acessória).

IV - Se o cliente, após a refeição, foi à casa de banho do restaurante e nele foi encontrado caído no chão e inanimado, com lesões que no hospital se apurou serem cranianas e encefálicas, nenhuma culpa se pode imputar ao dono do restaurante, nem sequer a título de presunção (cfr. arts. 486º, nº1 e 788º, nº1 do CC), se, ao contrário do que ele invocou, não se tiver provado que caiu e que a queda se deveu ao facto de o piso da instalação sanitária se encontrar molhado e escorregadio.










Proc. nº 388/2011

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, com os demais sinais dos autos, intentou no TJB (Proc. nº Cv1-07-0046-CAO) acção declarativa com processo ordinário contra “B”, pedindo a condenação deste no pagamento de uma quantificada indemnização em virtude de um acidente ocorrido na casa de banho do estabelecimento, cuja produção imputou culposamente à ré.
*
Após o saneamento dos autos, foi proferido despacho a indeferir a pretensão da Ré no sentido de se proceder a uma perícia relativamente à matéria dos arts. 7º a 12º e 14º a 33º e 35º da base instrutória (fls. 170 e 171).
*
Contra esse despacho interpôs a Ré o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso interposto do despacho de fls. 170 e 171 proferido nos autos, restringido porém à parte da decisão em que não foi admitida a realização da perícia médico-legal à matéria constante dos artigos 7.º a 12.º e 14.º a 33.º, e 35.º da Base Instrutória, por se ter entendido que esta matéria pode ser provada por documentos ou prova testemunhal;
2. Com essa decisão, salvo melhor opinião, violou-se o disposto nos artigos 3.º, 5.º, 499.º e 558.º todos do CPC, o que acarreta a ilegalidade da dita decisão, razão pela qual o despacho do Tribunal a quo deverá, nessa parte, ser revogado;
3. Com efeito, dada especial complexidade das questões do foro médico em discussão nos presentes autos, em particular as implicadas na matéria de facto alegada nos artigos 7.º a 12.º e 14.º a 36.º da Base Instrutória, a Ré veio oportunamente requerer a realização de uma perícia médico-legal, ao abrigo do disposto nos artigos 496.º, n.º 3, 490.º, n.º 3 e n.º 1 do artigo 498.º, todos do CPC;
4. Porém, por despacho de fls. 170 e 171 proferido nos autos, foi deferida a realização da referida perícia médico-legal quanto à matéria vertida nos artigos 34.º, 36.º, 37.º e 38.º da Base Instrutória e indeferida quanto à restante matéria por se ter entendido que esta pode ser provada por documentos ou prova testemunhal.
5. Sucede que, atento o disposto no n.º 1 do artigo 499.º do CPC a realização da diligência requerida pela Ré só podia ser legalmente indeferida, sem audição da parte contrária, com fundamento em um de dois pressupostos: impertinência ou intenção dilatória;
6. Acontece que, a decisão de indeferimento não se fundamentou em nenhum destes pressupostos;
7. Ao invés de indeferir desde logo a pretensão da ora Recorrente, o Mmo Juiz a quo deveria ter ouvido a parte contrária acerca da pertinência do exame pericial;
8. Ao decidir pelo indeferimento da realização da perícia médico-legal à matéria dos artigos 7.º a 12.º e 14.º a 33.º e 35.0 da Base Instrutória, o Tribunal, a quo violou o disposto nos artigos 3.º, n.º 3,5.º e 499.º, n.º 1, todos do CPC;
9. Quanto à matéria vertida nos artigos 7.º a 12.º da Base Instrutória, no modesto entendimento da ora Recorrente, o nexo de causalidade entre os danos alegados pelo Autor e o evento que os produziu apenas se poderá provar por meio de peritos dado que matéria de facto pressupõe conhecimentos médico-científicos no domínio da neurocirurgia;
10. Porquanto, não consta dos autos se as soluções ou tratamentos médicos adoptados e a intervenção cirúrgica a que o Autor foi submetido foram os mais adequados do ponto de vista médico para eliminar ou atenuar as lesões físicas sofridas pelo Autor;
11. E, bem assim, se foi acertada a decisão médica de dar alta hospitalar ao Autor, tendo em conta o estado clínico que na altura apresentava, ou se, pelo contrário, seria aconselhável manter o seu internamento hospitalar por mais tempo.
12. Ora, será admissível fazer-se prova do estado clínico do Autor, das soluções médicas que deveriam ter sido adoptadas e da premência e importância da intervenção cirúrgica a que foi submetido por prova de testemunhas indiferenciadas?
13. Quanto à matéria vertida nos artigos 14.º a 33.º e 36.º da Base Instrutória, os relatórios médicos juntos pelo Autor aos autos encontram-se desacompanhados de qualquer outro meio de prova complementar de carácter técnico;
14. Por sua vez, no requerimento de prova do Autor, não foi requerido o depoimento dos médicos subscritores daqueles relatórios médicos;
15. Pelo que afigura-se-nos, salvo melhor opinião que deveria ter sido ordenada a perícia médico-legal requerida pela Ré, ora Recorrente, com o objecto proposto e para esclarecimento dos factos melhor identificados no seu requerimento de 11 de Março de 2008, que ora se dá por integralmente reproduzido.
O recurso sub judice terá assim, forçosamente, que proceder, substituindo-se o despacho ora recorrido na parte da decisão em que não foi admitida a realização da perícia médico-legal à matéria constante dos artigos 7.º a 12.º e 14.º a 33.º, e 35.º da Base Instrutória, assim se fazendo, como é timbre deste Tribunal, JUSTIÇA!».
*
Não houve contra-alegações.
*
O processo prosseguiu a sua normal tramitação, vindo a ser proferida sentença que julgou improcedente a acção e absolveu a ré do pedido.
*
Dessa sentença interpôs o autor da acção o presente recurso jurisdicional, cujas alegações terminou com as seguintes conclusões:
«A. A responsabilidade civil da Ré, ora recorrida, pelos danos decorrentes do acidente ocorrido nas instalações sanitárias do “Restaurante XXX” é extra-contratual, com o regime previsto no art.º 486.º, n.º 1 do CCM.
B. O que significa que ao lesado compete apenas provar (art.º 335.º, n.º 1 do CCM) a existência do dever de vigilância e do dano causado pelo acto antijurídico da pessoa a vigiar.
C. Na situação concreta, a existência do dever de vigilância decorre da lei, visto que o dever de a Ré manter a higiene e segurança das instalações sanitárias resulta do disposto nos art.º 54º, 80.º, alínea j) e 82.º, n.º 1 do Decreto-Lei nº 16/96/M, de 1 de Abril e dos parágrafos 2.1.1 e 2.4.7 das Directivas sanitárias para estabelecimentos similares de hotelaria (Macau), que impõem que os pavimentos das instalações sanitárias se mantenham sempre secos.
D. Por outro lado, os danos sofridos pelo A em virtude da omissão do dever de vigilância da Ré ficaram provados [resposta aos quesitos 4.º a 14.º, 16.º, 18.º a 36.º, 40.º, 44.º a 54.º, 58.º e 61.º a 63.º da Base Instrutória].
E. Ainda que se entenda tratar-se de responsabilidade contratual, em ambos os casos impende sobre a Ré uma presunção legal de culpa (art.º 486.º, n.º 1 do CCM e 788.º, n.º 1, do CCM), mas sem qualquer restrição no modo de ilisão.
F. A presunção de culpa contém simultaneamente uma presunção de causalidade, na medida em que se presume que o não cumprimento do dever de vigilância do estado das instalações sanitárias é a causa do dano, pois, de outro modo, obrigar a vítima a provar o nexo de causalidade entre a culpa do titular do estabelecimento hoteleiro ou similar e o dano sofrido, seria equivalente a exigir-se a prova da culpa, o que esvaziaria o alcance da presunção estabelecida na lei.
G. Esta presunção juris tantum podia ser ilidida numa das situações previstas no art.º 486.º, n.º 1 do CCM para a prova liberatória, bastando à Ré demonstrar (1) que cumpriu o seu dever de vigilância ou (2) que os danos se teriam produzido ainda que o tivesse cumprido (relevância negativa da causa virtual do dano).
H. Mas tal não ficou demonstrado no caso “sub judice”, não sendo suficiente para ilidir a presunção de culpa da Ré a mera alegação não comprovada [resposta negativa ao quesito 64.º da Base Instrutória] de que «o chão dos sanitários do restaurante se encontrava seco».
I. Assim, a Ré não ilidiu a presunção do art.º 486.º, n.º I do CCM, o que implica a sua responsabilização, reunidos que estão todos os demais pressupostos da obrigação de indemnização.
J. A sentença recorrida ao absolver a Ré do pedido violou, portanto, o disposto no art.º 337.º, n.º 1 ex vi do art.º 486.º, n.º 1 ex vi do art.º 480.º, n.º 1, in fine, todos do CCM, pelo que deverá se revogada.
NESTES TERMOS e no mais de direito que V. Ex.as mui douta e certamente suprirão, ser dado provimento ao presente recurso, com as legais consequências.
Assim, mais uma vez, farão V. Ex.as a costumada Justiça.».
*
A ré respondeu ao recurso formulando as seguintes conclusões alegatórias:
«1. Vem o presente recurso interposto da sentença de fls. 428 a 435 dos autos, que julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu a Ré, “RESTAURANTE XXX, LIMITADA”, ora Recorrida, dos pedidos formulados pelo Autor, A, ora Recorrente;
2. Ao contrário do que defende o Autor, ora Recorrente, nas suas alegações de recurso, no caso concreto a eventual responsabilidade civil da Ré só pode ser de natureza extracontratual e por factos ilícitos, cujo princípio geral vem estabelecido no artigo 477.º, n.º 1 do Código Civil (CC);
3. Pois, como muito bem se descortinou na sentença ora recorrida “ (...) o que está em causa é a alegada violação das regras de segurança geral a que o restaurante da Ré, enquanto estabelecimento similar previsto no artigo 4.º do Decreto-Lei n. º 16/96/ M, de 1 de Abril, está sujeito. No que se refere à relação contratual estabelecida entre a Ré e o Autor ou os seus amigos propriamente dita, nada há a apontar”;
4. Atento o disposto nos artigos 335.º e 480.º do mencionado diploma legal, era sobre o Autor que recaía o ónus da prova dos factos que integram os pressupostos da suposta responsabilidade civil da Ré, sendo necessário provar que se mostravam preenchidos os requisitos fixados no citado artigo 477.º, n.º 1 do CC;
5. Face àquilo que foi alegado nos artigos 32.º a 41.º da petição inicial a suposta obrigação da Ré de indemnizar o Autor fundar-se-ia na violação do disposto no artigo 45.º do Decreto-Lei n.o 16/96/M, de 1 de Abril;
6. Não tendo o Autor alegado o incumprimento por parte da Ré com base no disposto nos artigos 54.º, 80.º, alínea j) e 82.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 16/96/M, de 1 de Abril e dos parágrafos 2.1.1 e 2.4.7 das directivas sanitárias para estabelecimentos similares de hotelaria (Macau), tal matéria não poderá ser agora apreciada pelo Tribunal ad quem, sob pena de violação do princípio do dispositivo, consagrado no artigo 5.º do CPC;
7. Ainda que assim não se entendesse - o que não se aceita e apenas se admite por mero dever de patrocínio -, o certo é que toda a matéria alegada pelo Autor relativa ao estado do chão dos sanitários do restaurante da Ré, nomeadamente, a falta de cumprimento das regras de higiene e limpeza, foi dada como não provada;
8. Ao não ter ficado provada, nomeadamente, a matéria quesitada sob os artigos 41.º, 42.º e 43.º da base instrutória, é impossível concluir pelo incumprimento de quaisquer regras de segurança por parte da Ré e muito menos pela existência de nexo de causalidade entre esse incumprimento e as lesões sofridas pelo Autor;
9. Pelo que, não tendo o Autor, ora Recorrente feito prova dos factos constitutivos do direito invocado, a acção não poderia ter deixado de improceder, como sucedeu;
10. Pretende agora o Autor prevalecer-se do disposto no artigo 486.º do CC para, beneficiando de uma presunção legal de culpa, concluir que a Ré é culpada do incidente e, consequentemente, responsável pela indemnização dos danos por aquele causados;
11. Sucede que, o invocado preceito respeitando exclusivamente às actividades perigosas em geral, não tem qualquer aplicação ao caso dos presentes autos;
12. No âmbito de aplicação deste normativo cabem coisas móveis e imóveis de especial perigosidade como sejam por exemplo, uma caldeira, um paiol, um depósito de combustível, uma auto-estrada as quais pela fonte de perigo que constituem, impõem um específico dever de vigilância e justificam assim a excepcionalidade da inversão do ónus da prova, o que nada tem a ver com o restaurante dos autos;
13. Acresce que, ainda que se entendesse que no caso concreto estaríamos perante uma das situações de presunção de culpa, prevista no artigo 486.º, n.º 1 do CC, como defende o Autor, ora Recorrente - o que apenas por cautela de patrocínio se admite - e consequentemente se se presumisse a culpa do obrigado à vigilância do imóvel relativamente aos danos por ele causados, sempre incumbia à parte, beneficiada com tal presunção, alegar e provar o facto que lhe servia de base;
14. Com efeito, competia ao Autor, ora Recorrente, a prova dos pressupostos da presunção da culpa, o que no caso concreto não conseguiu fazer;
15. Concretamente, cabia ao Autor, ora Recorrente alegar e provar que os danos sofridos foram produzidos pelo alegado estado do chão dos sanitários do restaurante explorado pela Ré, ora Recorrida, porquanto, a responsabilidade decorrente deste normativo reporta-se aos danos que a coisa causar;
16. Porém, não se conseguiu apurar se os danos sofridos pelo Autor foram efectivamente causados pelo alegado estado do chão dos sanitários do restaurante explorado pela Ré;
17. Pelo que, no modesto entendimento da Ré, ora Recorrida, não ocorre no caso concreto a situação prevista no artigo 486.º, n.º 1 do CC, ou seja, não há inversão do ónus da prova;
18. Não obstante, não será despiciendo referir que a explicação avançada pelos amigos do Autor, ora Recorrente, para o sucedido naquela noite, foi a de que o Autor tinha alegadamente caído após a ingestão de bebidas alcoólicas, conforme resulta dos relatórios médicos do Hospital Kiang Wu de Macau, cujas traduções para língua portuguesa se encontram juntas a fls. 285, 357 e 358 dos autos;
19. Porém, quer se conclua que a causa dos danos foi própria do Autor, ou externa a ele, não poderá ser imputável qualquer responsabilidade civil à Ré, ora Recorrida, ou aos seus empregados;
20. Porquanto, não se provou qualquer ligação causal entre os danos sofridos pelo Autor, ora Recorrente, e qualquer comportamento da Ré, ora Recorrida, muito menos ilícito, daí que não possa haver qualquer juízo de censura a título de culpa, por dolo ou sequer por negligência, sobre qualquer comportamento da Recorrida;
21. Quanto aos alegados prejuízos, não obstante o Recorrente ter logrado provar parte dos mesmos, tal facto, desacompanhado da prova dos restantes pressupostos da responsabilidade civil, por si só, não releva para fazer recair sobre a Recorrida a obrigação de indemnizar o Recorrente, pelo que, toma-se desnecessário proceder a uma análise detalhada dos mesmos;
22. Por todo o exposto, facilmente se poderá concluir que não havendo qualquer conduta ilícita, nem existindo culpa da Recorrida ou dos seus empregados na produção dos alegados danos sofridos pelo Autor, ora Recorrente - que a Recorrida sinceramente lamenta -, não tendo o incidente resultado de qualquer acção ou omissão da Recorrida ou dos seus empregados, logo, não se verificando sequer uma relação directa e necessária entre qualquer conduta e o incidente, inexistindo, por último, uma ligação objectivamente adequada entre o incidente e os danos alegados na PI, não poderá jamais a Recorrida vir a ser responsabilizada pelos mesmos;
23. Pelo que, por manifesta falta de fundamento legal deverá improceder o recurso interposto pelo Autor, ora Recorrente da sentença de fls. 428 a 435 dos autos, mantendo-se a referida decisão nos seus precisos termos;
24. De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 590.º do CPC, pode o recorrido, na respectiva alegação e a título subsidiário, impugnar a decisão proferida sobre certos pontos da matéria de facto, não impugnados pelo Recorrente, prevenindo deste modo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas;
25. A ampliação do âmbito do presente recurso tem por objecto (i) o despacho saneador, selecção da matéria de facto assente e base instrutória de fls. 143 a 147 dos autos e o despacho de fls. 154.º dos autos que indeferiu a reclamação apresentada pela Ré, por requerimento de 17 de Dezembro de 2007, na qual requereu o aditamento à base instrutória do alegado nos artigos 6.º, 7.º, 8.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 30.º, 31.º, 32.º e 33.º da sua Contestação; e (ii) o despacho de fls. 170 e 171 proferido nos autos, na parte em que indeferiu a realização de uma perícia médico-legal à matéria de facto dos artigo 7.º a 12.º e 14.º a 33.º e 35.º da base instrutória;
26. No modesto entendimento da Ré, a selecção da matéria de facto que foi feita nos autos, sendo embora extensa - como teria de ser - em relação aos factos alegados em sede de petição inicial, foi no entanto extremamente parcimoniosa no que tange aos factos alegados pela Ré na sua contestação;
27. No caso de vir a ser julgado procedente o recurso interposto pelo Autor, ora Recorrente, nos termos do artigo 486.º do CC, com base em responsabilidade delitual por força da presunção de culpa, deverá proceder-se à ampliação, para a matéria controvertida, da factualidade alegada pela Ré nos artigos 6.º, 7.º, 8.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º e 35.º da Contestação;
28. Sobre o (não) aditamento destes quesitos, recorde-se que, por requerimento de 17 de Dezembro de 2007, a Ré apresentou oportunamente reclamação contra o referido despacho saneador, selecção da matéria de facto e base instrutória de fls. 143.º e seguintes dos autos, nos termos e com os fundamentos que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
29. Porém, por despacho de fls. 154 dos autos, foi indeferida a reclamação por si apresentada por se ter entendido que “ (...) não há lugar à responsabilidade pelo risco, nem há lugar a qualquer presunção de culpa, incumbindo ao Autor fazer a prova dos requisitos de responsabilidade civil, motivo porque só a versão deste releva.” (sublinhado nosso);
30. Sucede que, no caso de o recurso do Autor, ora Recorrente, vir a ser julgada procedente, a matéria desconsiderada é indispensável para a decisão da causa;
31. Não tendo tais factos sido levados à base instrutória e tratando-se de matéria controvertida, impõe-se assim determinar, nos termos do artigo 629.º, n.º 4 do CPC, a ampliação da matéria de facto, com a consequente anulação do julgamento;
32. Considerando o exposto, deverá ser determinada a ampliação da matéria de facto, com o aditamento à matéria controvertida dos factos alegados pela Ré nos artigos 6.º, 7.º, 8.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º e 35.º da Contestação, como acima exposto, com a consequente anulação do julgamento (devendo na repetição do julgamento ser observado o disposto na parte final do artigo 629.º, nº 4 do CPC);
33. Por outro lado, dada a especial complexidade das questões do foro médico em discussão nos presentes autos, em particular as implicadas na matéria de facto alegada nos artigos 7.º a 12.º e 14.º a 36.º da base instrutória, a Ré veio oportunamente requerer a realização de uma perícia médico-legal, ao abrigo do disposto nos artigos 496.º, n.º 3, 490.º, n.º 3 e n.º 1 do artigo 498.º, todos do CPC;
34. Porém, por despacho de fls. 170 e 171 dos autos, foi deferida a realização da referida perícia médico-legal quanto à matéria vertida nos artigos 34.º, 36.º, 37.º e 38.º da base instrutória e indeferida quanto à restante matéria por se ter entendido que esta pode ser provada por documentos ou prova testemunhal;
35. Inconformada, a Ré interpôs recurso da referida decisão, tendo apresentado as respectivas alegações de recurso em 25 de Junho de 2008, as quais ora se dão por integralmente reproduzidas;
36. No entendimento da Ré para determinar a causalidade entre o acidente e o estado clínico actual do Autor é necessária informação e juízos que só especialistas poderão fornecer;
37. Com efeito, a ora Recorrente, preconizava então e preconiza agora que no caso dos autos o nexo de causalidade (ou a falta dele) entre os danos alegados pelo Autor e o evento que os produziu - essencial para a decisão da questão de direito - dependerá da resposta dada pelos peritos médicos a diversas questões, uma vez que a matéria de facto relevante pressupõe conhecimentos científicos em particular no domínio da neurocirurgia;
38. Ora, sendo esta uma questão essencial para a descoberta da verdade e para a boa solução do presente litígio, afigura-se-nos, salvo melhor opinião que deveria e deverá ser ordenada a perícia médico-legal requerida pela Ré, ora Recorrente, com o objecto proposto e para esclarecimento dos factos melhor descritos no seu requerimento de 11 de Março de 2008, que ora se dá por integralmente reproduzido;
39. Porquanto, a dar-se provimento ao recurso interposto pelo Autor, considerando-se que a situação jurídica sub judice se enquadra na responsabilidade prevista no artigo 486.º, n.º 1 do CC, a qual - como acima se disse -, opera uma inversão do ónus da prova, a apreciação das questões acima aludidas é fundamental;
40. Efectivamente, o que se possa a vir a apurar através da realização da referida perícia médico-legal constitui causa que isenta a Ré de qualquer responsabilidade, uma vez que ficaria demonstrado que os danos sofridos pelo Autor não tiveram como causa qualquer conduta da Ré (mas sim, uma tardia ou inadequada assistência médica), ou seja, que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua;
41. Assim, por mera cautela de patrocínio, na hipótese de o recurso do Autor proceder, e consequentemente, a acção ser julgada procedente, requer-se muito respeitosamente a V. Exa. se digne apreciar o recurso interposto do despacho de fls. 170 e 171 proferidos nos autos na parte da decisão em que não foi admitida a realização da perícia médico-legal à, matéria constante dos artigos 7.º a 12.º e 14.º a 33.º, e 35.º da Base Instrutória;
42. Isto por, no modesto entendimento da ora Recorrente, aí se ter violado o disposto nos artigos 3.º, 5.º, 499.º e 558.º todos do CPC, o que acarreta a ilegalidade da dita decisão, razão pela qual o despacho do Tribunal a quo deverá, nessa parte, ser revogado;
43. Pelo que requer que seja admitida a realização da perícia médico-legal à matéria constante dos artigos 7.º a 12.º e 14.º a 33.º, e 35.º da Base Instrutória, o que implica a repetição do julgamento, observando-se o disposto na parte final do artigo 629.º, nº 4 do CPC).
TERMOS EM QUE, por manifesta falta de fundamento legal, deverá improceder o recurso interposto pelo Autor, ora Recorrente da sentença de fls. 428 a 435 dos autos, mantendo-se a referida decisão nos seus precisos termos.
SUBSIDIARIAMENTE, prevenindo a hipótese de o recurso do Autor, ora Recorrente proceder - hipótese que só por mero dever de patrocínio se concede -, a Ré, ora Recorrida, vem invocar o direito de requerer a ampliação do objecto do recurso, fazendo uso da faculdade admitida pelo artigo 590.º, n.º 2 do CPC, e assim, requerer (i) o aditamento à base instrutória do alegado nos artigos 6.º, 7.º, 8.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 30.º, 31.º, 32.º e 33.º da sua Contestação e (ii) a realização de uma perícia médico-legal à matéria de facto constante dos artigos 7.º a 12.º e 14.º a 33.º e 35.º da base instrutória, nos termos e com os fundamentos que supra se expôs que ora se dão por reproduzidos, assim se fazendo, como é timbre deste Tribunal, JUSTIÇA.».
*
Cumpre decidir.
***
II - Os Factos
Do recurso interlocutório
Requerida a realização de uma perícia médica à matéria dos arts. 7º a 12º e 14º a 33º e 35º da Base Instrutória, foi proferido o seguinte despacho:
«Salvo o devido respeito por contrária opinião, encontra-se quesitada matéria que exige especiais conhecimentos técnicos e científicos e portanto que pode ser e deve ser apreciada por técnicos.
Está dentro deste âmbito a matéria relativa às lesões que o autor continua a padecer (art. 34º), o grau de invalidez de que padece (art. 36º), o período de que necessita para tratamento (art. 37º e 38º).
Já relativamente à restante matéria, as lesões que sofreu, os tratamentos a que foi sujeito, podem estes ser provados por documentos ou prova testemunhal. A ordenar-se a perícia, esta versaria sobre a preciação dos documentos existentes.
Assim sendo, admite-se a realização da perícia médica mas apenas à matéria vertida nos itens 34º, 36º, 37º e 38º da base instrutória».
*
Do recurso da sentença
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«Da Matéria de Facto Assente:
- A Ré dedica-se à actividade de restauração, sendo titular do Restaurante XXX, sito na Taipa, Rua de Hong Chau, XXX (alínea A) dos factos assentes).
- Em 25 de Fevereiro de 2006, o Autor, acompanhado de 8 amigos, foi jantar no Restaurante XXX, sito na Taipa, Rua de Hong Chau, XXX (alínea B) dos factos assentes).
- Por volta das 22H00, depois de paga a conta, o Autor foi sozinho à casa de banho do dito Restaurante (alínea C) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- O Autor foi encontrado deitado no chão, sem sentidos (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- O Autor foi logo transportado por ambulância ao Centro de Cuidado de Saúde do Hospital Kiang Wu na Taipa (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- Dada a gravidade da sua situação, o Autor foi depois transportado ao Hospital Kiang Wu (鏡湖醫院) em Macau (resposta ao quesito da 6º da base instrutória).
- Onde foi operado à cabeça no dia 27 de Fevereiro de 2006 (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
- O Autor sofreu de graves lesões encefálicas com várias fissuras (重型顱腦損傷、廣泛腦挫裂傷), encontrando-se em estado grave (患者病情危重) (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
- Necessitando de ser hospitalizado para tratamento médico (仍需住院治療) (resposta ao quesito da 9º da base instrutória).
- Após a operação, o Autor continuou em estado crítico (resposta ao quesito da 10º da base instrutória).
- Estando sem consciência (resposta ao quesito da 11º da base instrutória).
- Em 14 de Março de 2006, o Autor foi transportado para o Interior da China, onde foi hospitalizado no Quinto Hospital da Universidade de Zhongshan da Cidade Zhuhai (珠海市中山大學附屬第五醫院) (resposta ao quesito da 13º da base instrutória).
- Foi sujeito a exames médicos (resposta ao quesito da 14º da base instrutória).
- Em 23 de Março de 2006, o Autor, sob a administração da anestesia total, foi submetido a uma operação cirúrgica no cérebro (resposta ao quesito da 16º da base instrutória).
- Em 24 de Abril de 2006, o Autor foi internado na Faculdade de Medicina da Universidade Científica Rua Zhong Tong Ji (華中科技大學同濟醫學院附屬同濟醫院) (resposta ao quesito da 18º da base instrutória).
- Onde foi sujeito a exames médicos (resposta ao quesito da 19º da base instrutória).
- Em 29 de Abril de 2006, constatou-se que ao Autor tinha sido retirado parte dos ossos temporais esquerdos (左顳骨顱骨部份缺損) e sofria de hidrocefalia (腦積水) (resposta ao quesito da 20º da base instrutória).
- E a 8 de Maio de 2006 o Autor apresentava o occipitale junto do temporal direito côncavo (右側額骨向內凹), amolecimento do ossos direitos do frontal e do temporal (右側額骨、顳骨軟化), hidrocefalia (腦積水), embolias celebrais (腦梗塞), atrofia cerebral (腦萎縮) e inflamação nos dois lados do processus mastoideus (雙側乳突炎) e inflamação na maxila superior direita (右上頜竇炎) (resposta ao quesito da 21º da base instrutória).
- Em 22 de Maio de 2006, o Autor foi novamente operado na cabeça, com vista à recuperação das perdas de ossos celebrais (顱骨修補) e à do dura mater encephali (硬腦膜修補) (resposta ao quesito da 22º da base instrutória).
- Em 21 de Junho de 2006, o Autor apresentava, na sequência da operação para a recuperação dos ossos cerebrais, hematomas na dura mater encephali da esquerda do frontal e do occipitale superior (左額部、枕頂部硬膜血腫), bem como lesões no frontal esquerdo e nos dois lados do occipitale (左額骨、雙側枕骨挫傷) (resposta ao quesito da 23º da base instrutória).
- Não tendo o Autor capacidade para se deslocar (無法行走) nem para governar a sua pessoa e bens (無生活自治能力士), em consequência das lesões cerebrais (重型顱腦損傷) (resposta ao quesito da 24º da base instrutória).
- Após diversos tratamentos médicos e fisioterapêuticos, o estado de saúde do Autor melhorou (resposta ao quesito da 25º da base instrutória).
- Tendo alta hospitalar em 10 de Agosto de 2006 (resposta ao quesito da 26º da base instrutória).
- Apresentando estado de saúde relativamente estável e capacidade de se exprimir em palavras simples (resposta ao quesito da 27º da base instrutória).
- Necessitando de recorrer à consulta externa (resposta ao quesito da 28º da base instrutória).
- Após o que o Autor recorreu aos serviços de consulta externa do Hospital 457 do Exército Popular da China (中國人民解放軍第四五七醫院) e da Faculdade de Medicina Chinesa de Wubei (湖北中醫學院) (resposta ao quesito da 29º da base instrutória).
- Em 6 de Fevereiro de 2007, o A. foi internado no Hospital 457 do Exército Popular da China durante 8 dias (resposta aos quesitos das 30º e 31 º da base instrutória).
- Apresentando, entre outros sintomas, paralisação nos membros torácico e pélvico esquerdos (左側上下肢偏癱), inconveniência de movimentação voluntária (自主運動不便), lentidão de se exprimir (言語緩慢), obstáculos à capacidade intelectual (計算能力障礙) e visão ambígua (視物模糊) (resposta ao quesito da 32º da base instrutória).
- Após o que o Autor voltou a ser internado no Hospital acima referido em 26 de Março de 2007 (resposta ao quesito da 33º da base instrutória).
- Apresentando incapacidade embora não total de se exprimir (不完全失語), obstáculos intelectuais (智能障礙), incontinências urinária e fecal (大小便仍失控), incapacidade de se governar na vida quotidiana (日常生活仍不能自理), paralização de movimentar os membros esquerdos (左側肢體癱瘓) (resposta ao quesito da 34º da base instrutória).
- Acabando por ter alta em 13 de Abril de 2007 (resposta ao quesito da 35º da base instrutória).
- O grau de invalidez do Autor é de 90% (resposta ao quesito da 36º da base instrutória).
- Necessitando de acompanhamento de uma pessoa para o resto da vida (終生需壹人護理) (resposta ao quesito da 40º da base instrutória) .
- A título de despesas médica e medicamentosas, o Autor pagou (resposta ao quesito da 44º da base instrutória):
a) MOP$173.724,00, no Hospital Kiang Wu;
b) RMB$96.837,59, no Quinto Hospital da Universidade de Zhongshan da Cidade Zhuhai (珠海市中山大學附屬第五醫院);
c) RMB$134.753,35, no Faculdade de Medicina da Universidade Científica Hua Zhong Tong Ji (華中科技大學同濟醫學院附屬同濟醫院);
d) RMB$7.413,19, no Hospital 457 do Exército Popular da China (中國人民解放軍第四五七醫院)
e) RMB840,20, no Instituto de Medicina Chinesa de Wubei (湖北中醫學院).
- O Autor trabalhava em Companhia de Tecnologia Wuhan Yu Shen (武漢旭森科技有限公司) como vice gerente-geral (resposta ao quesito da 45º da base instrutória).
- Auferindo um salário mensal de RMB$8.000,00 (resposta ao quesito da 46º da base instrutória).
- O que consta da resposta ao quesito 36º (resposta ao quesito da 47º da base instrutória).
- Deixando de auferir a quantia de RMB$128.000,00, relativa ao período de Março de 2006 a Junho de 2007 (resposta ao quesito da 48º da base instrutória).
- Atenta a natureza das funções desempenhadas, de representação da companhia para celebração de contratos de aquisição de produtos tecnológicos com os clientes angariados, o Autor auferia, no fim de cada ano um bónus variável (resposta ao quesito da 49º da base instrutória).
- Tendo perdido o bónus de 2006, no valor de RMB$100.000,00 (resposta ao quesito da 50º da base instrutória).
- O que consta da resposta ao quesito 36º (resposta ao quesito da 51 º da base instrutória).
- Após o acidente, o Autor não consegue lembrar-se completamente das coisas anteriores e posteriores à ocorrência deste (resposta ao quesito da 52º da base instrutória).
- À data da ocorrência do acidente, o Autor era um homem activo, saudável e comunicativo (resposta ao quesito da 53º da base instrutória).
- Actualmente, o Autor é muito dependente e inactivo (resposta ao quesito da 54º da base instrutória).
- A dependência a que está sujeito causou mudanças na sua vida (resposta ao quesito da 58º da base instrutória).
- O Autor apresenta duas cicatrizes, em forma U, na cabeça (resposta ao quesito da 61 º da base instrutória).
- Que ficarão para o resto da vida (resposta ao quesito da 62º da base instrutória).
- O Autor perdeu parte da capacidade de visão (resposta ao quesito da 63º da base instrutória).
***
III - O Direito
1 - Nota prévia
Cumprindo o preceituado no art. 628º, nº2, do CPC, uma vez que o recurso interlocutório foi interposto pela ré, enquanto o da sentença o foi pelo autor da acção, importará começar pela apreciação da bondade desta, a fim de se aquilatar, na oportunidade, de necessidade de eventual conhecimento do 1º recurso que indeferiu o pedido de realização da perícia a determinada matéria da base instrutória.
**
2 - Do recurso da sentença
Ora, antes de mais nada, importa dizer que os “estabelecimentos similares” são os que se destinam a proporcionar ao público, mediante pagamento, alimentos ou bebidas para serem consumidos no próprio local (art. 4º do DL nº 16/96/M, de 1 de Abril).
E se estamos a tratar de um restaurante, isso equivale a dizer que estamos perante um “estabelecimento similar” (art. 4º e 6º do DL nº 16/96/M, de 1 de Abril, diploma que estabelece as normas administrativas para o licenciamento e inspecção dos estabelecimentos hoteleiros e similares em Macau).
*
Nos termos do art. 54º desse diploma, os estabelecimentos hoteleiros e similares devem ser mantidos nas devidas condições de apresentação, funcionamento e limpeza, reparando-se prontamente as deteriorações ou avarias verificadas.
Segundo o art. 80º, nº1, al. j), entre outras, é considerada infracção em matéria de sanidade, higiene alimentar e limpeza, o mau estado de conservação e limpeza das instalações, equipamentos e utensílios.
De acordo com o art. 82º do texto legal, por serem graves, podem levar ao encerramento definitivo do estabelecimento as infracções que “representem risco para os utentes ou para terceiros ou prejuízos para a imagem do turismo do Território”, em “matérias de sanidade, higiene alimentar, limpeza e segurança contra incêndios”.
*
No Regulamento da Actividade Hoteleira e Similar (Portaria nº 83/96/M, de 1 de Abril) vêm estabelecidas, igualmente, condições para o funcionamento dos restaurantes.
Assim é que, face ao disposto no art. 89º da Portaria, no seu funcionamento devem, ser observadas todas as regras sanitárias, de higiene alimentar e limpeza (art. 3º, nº2).
*
Analisando, por outro lado, as Directivas Sanitárias para estabelecimentos similares de hotelaria (Macau)1, podemos ver que o ponto 2.1.1. estabelece que “Os estabelecimentos deve manter-se permanentemente em bom estado de arrumação e limpeza, com especial relevância para as instalações sanitárias e cozinhas, devendo os pavimentos manter-se sempre secos». Dever que se repete no ponto 2.4.7, segundo o qual “Os pavimentos, alem de serem revestidos com materiais lisos e antiderrapantes, devem manter-se sempre secos”.
Isto significa que as regras de higiene e segurança devem ser observadas no interior do estabelecimento, designadamente nas instalações sanitárias. Nisso estamos perfeitamente de acordo com a recorrente.
*
Há duas formas de encarar a relação que se estabelece entre cliente e explorador de restaurante.
Uma é contratual: o cliente entra no estabelecimento, senta-se, consulta a ementa e o preço de cada um dos pratos e, concordando (aceitando tacitamente, aderindo ao que lhe é proposto), estabelece um contrato com o dono do restaurante. Estamos perante um contrato de consumo no local do restaurante, que se pode dizer, até certo ponto, como sendo de prestação do serviço. Este inclui não só a refeição propriamente dita (que há-de corresponder ao que está descrito na carta), como também todo o serviço que lhe está associado, de que é exemplo, o atendimento pelo empregado, a toalha e os guardanapos, o conforto proporcionado pelo ar condicionado, o serviço de higiene na sala de refeições e nas instalações sanitárias, etc., etc.
Há, a partir do momento em que o cliente efectua o pedido, uma adesão às condições que lhe são propostas e o contrato fica firmado. O cliente fica com o direito a exigir a refeição contratada e o explorador do negócio da restauração fica na obrigação de lha fornecer nas condições descritas na ementa, incluindo o preço ali estabelecido. O dono do restaurante, diz-se, tem essa obrigação principal de fornecer o alimento mediante a remuneração indicada previamente.
Mas, o dono do espaço comercial, não tem apenas essa obrigação principal.
Também tem que proporcionar ao cliente as melhores condições de apresentação, funcionamento e limpeza, assim como observar todas as regras sanitárias e de higiene.
Essas são agora obrigações acessórias que fazem parte do acordo tácito contratual estabelecido entre ele e o cliente.
Isso significa que, pelas obrigações principal e acessórias que decorrem do consenso, é contratual a responsabilidade do dono do negócio. Daí que não possa escapar dela se à mesa do restaurante o cliente vier a ser atingido por um aparelho de ar condicionado que estava ser instalado2.
*
Há quem defenda, por outro lado, que para além da responsabilidade contratual, pode existir a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, decorrentes, por exemplo, da omissão de um dever de cuidado e de segurança em prol da defesa de interesses alheios (art. 477º do CC). Factos que, por exemplo, poderiam exemplificar um assentamento de uma laje ou tijoleira lisa, sem acessórios antiderrapantes à entrada do restaurante, tornada escorregadia e perigosa em caso de se encontrar molhada pela chuva ou por ocasião da lavagem. Seria abrangida pelo disposto no art. 477º do CC uma queda do cliente em tais condições, segundo alguma jurisprudência3.
Este aresto limitou-se à aplicação do regime do art. 482º do CC (na RAEM, cit. art. 477º). Certo é que não fez a distinção entre o cliente que sai e aquele que entra no estabelecimento, embora in casu a situação era a do cliente que se ausentava do restaurante (admitimos que já nele tivesse tomado a refeição). No aresto em apreço, considerou-se que o quadro descrito se inscrevia na omissão de um dever de cuidado em afastar o perigo que resultava do piso escorregadio resultante da tijoleira cerâmica no chão, sem qualquer fita antiderrapante.
Por nossa parte, sem entrar em discussão sobre o caso (que, repete-se foi resolvido pelas regras da responsabilidade extracontratual), cremos que, sem dúvida elas se aplicarão com tranquilidade ou convicção às situações do cliente que pretende entrar no estabelecimento e que, portanto, ainda não estabeleceu nenhum contrato com o explorador do restaurante. Faz todo o sentido aí que o caso de uma queda nessas condições se deva resolver à luz da responsabilidade civil extracontratual.
*
Na situação em que nos encontramos, tudo se passou no interior do restaurante, num momento em que a refeição tinha terminado e em que havia sido, inclusive, já paga a conta (alínea C) da especificação). Acontece que, em nossa opinião, o contrato não se pode dar por executado no momento em que o cliente efectua o pagamento da conta. Na verdade, enquanto o cliente não se ausentar do espaço comercial e nele ainda estiver a fruir dos seus “included benefits”, das suas “facilities”, das suas utilidades acessórias, ao dono corresponderá a obrigação de garanti-las na segurança, conforto e higiene tal como contratadas tacitamente desde o início da refeição encomendada.
Para dizer, por conseguinte, que uma ida às instalações sanitárias, mesmo após o pagamento da conta, há-de ser ainda uma prerrogativa emanada do contrato e, portanto, serve para manter o restaurador na obrigação de evitar o perigo que decorre, por exemplo, de umas escadas feitas sem o amparo de um corrimão ou compostas por degraus perigosos (por muito curtos, estreitos, ou feitos de material escorregadio, por exemplo), como responsável será ele se o cliente vier a ser atingido, enquanto não se ausentar das instalações do estabelecimento, por um candeeiro que se desprendeu do tecto. Aliás, a todo o responsável do estabelecimento hoteleiro ou similar “cabe também providenciar, através dos meios adequados, pela segurança geral do estabelecimento” (art. 45º, nº2, do DL nº 16/96/M).
Estamos, assim, a tomar posição em favor da tese da responsabilidade contratual, tal como concluiu o citado aresto do STJ português.
*
Pois bem, seja como for, em caso nenhum a responsabilidade pode ser accionada com êxito sem que se prove que o dono do restaurante agiu, ou deixou de agir, contra os deveres contratuais (principais e acessórios) ou contra os deveres gerais de cuidado e de evicção do perigo. Ou seja, da prova há-de resultar um conjunto indiscutível de elementos de que possa emergir o rastilho de um incumprimento ou de uma culpa extracontratual.
E nada disso se provou. Repare-se que nem sequer se demonstrou que tivesse caído. O que se passou verdadeiramente não se apurou e provavelmente nunca se saberá, pois nem o autor consegue recordar-se do que se passou (resposta ao quesito 52º).
Ter-se-á sentido indisposto com a refeição? Indigestão? Não se sabe.
Ter-se-á sentido mal com o álcool ingerido? Desequilíbrio por embriaguez? Não se sabe (foi invocada na contestação matéria que revelava a ingestão de álcool por parte do autor, que não estaria habituado bebidas alcoólicas – ele e os amigos terão bebido, pelo menos, o conteúdo de uma garrafa de conhaque “Martell”, mas essa factualidade, importante como elemento indiciário, não foi levada à base instrutória).
Teria desmaiado por queda ou agravamento súbito de tensão arterial? Não se sabe.
*
Estamos, com isto já a dizer que a argumentação trazida pelo recorrente, segundo a qual o caso se teria que resolver segundo a presunção de culpa recaída sobre o dono do restaurante, ao abrigo do art. 486º, nº1 do CC (tb. art. 788º, nº1), não colhe êxito. De facto, desse preceito emerge um dever de vigilância sobre coisa móvel ou imóvel de que possa advir a ocorrência de danos face à sua característica intrínseca ou à actividade a que estão destinadas. Quer dizer, a presunção de culpa que recai sobre quem as tem em seu poder só se verifica se elas comportarem risco de produção de prejuízos. E se o dano se verificar, efectivamente, diz-se então que ela (presunção) se fica a dever à culpa in vigilandum.
Ora, neste caso, da mesma maneira que se entende que a actividade de restauração geralmente não é perigosa, assim também possível é dizer que nenhum dos elementos do estabelecimento oferece particular grau de perigo que, sobre cada um deles, implique uma atenção e cuidado especial de vigilância (a não ser, porventura, ao sistema de combustão a gás que alimenta os fogões da cozinha)
E, mesmo que assim não fosse, para que o recorrente pudesse guardar alguma esperança na boa sorte do recurso sempre seria necessário provar ter caído no WC por causa do estado húmido e escorregadio do piso. Mas, isso não se provou. Quer dizer, por si só nunca bastaria o dever de vigiar; seria necessário sempre provar que o dano resultou do facto antijurídico da pessoa a vigiar.
*
Lamentamos sinceramente a ocorrência - que deveria ser de grata recordação e alegria entre amigos, mas que acabou num drama para a vida inteira do infausto autor – mas este TSI nada pode fazer para a remediar. Os factos não dão cobertura à tese do autor no sentido de ter caído por causa do piso das instalações sanitárias, que ele dizia estar húmido e escorregadio. Essa matéria não a provou, ao contrário do que lhe era incumbido pelo ónus probatório imposto pelo art. 335º do CC.
Se o mais importante a montante ficou por provar, o que a jusante é invocado não serve os intentos do recorrente. E o recurso, por isso, não pode vingar.
**
3 - Do recurso interlocutório
Face a tudo o que se acaba de concluir, uma vez que a sentença se mantém, torna-se inútil ou desnecessário apreciar o recurso interlocutório (que, recorde-se, apenas tinha em vista estender a perícia a outra matéria da base instrutória, como meio de obter uma mais alargada prova acerca dos danos sofridos pelo autor). Nada dele poderia ajudar à alteração da sentença final da causa, se esta, como se viu, teve o desfecho assinalado por causa da falta de demonstração do nexo causal entre os danos e o estado do pavimento das instalações sanitárias do restaurante.
Cumpre-se assim o disposto no art. 628º, nº2, do CPC.
***
IV - Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
TSI, 13 de Março de 2014
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong

1 Em: http://www.saudepublica.web.pt/06-saudeambiental/065-Restauracao/MacauDirSan.htm
2 Neste sentido, ver na jurisprudência comparada, Ac. do STJ, de 16/06/2011, Proc. nº 314/2002
3 Ac. RP, de 14/11/2011, Proc. nº 5632/07
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------