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Proc. nº 257/2012
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 20 de Março de 2014
Descritores:
-Audiência de interessados
-Aposentação
-Subsídio de residência

SUMÁRIO:

I - Transpira do art. 98º da Lei Básica que a RAEM apenas garante o pagamento das pensões aos funcionários que tenham mantido o vínculo funcional e adquirido posteriormente à transferência da administração o direito à aposentação.

II - Se a Lei nº 2/11 tem por destinatários/beneficiários os trabalhadores dos serviços públicos da RAEM, maior evidência não pode haver no sentido de que não pode o legislador ter pensado nos trabalhadores que se aposentaram ao serviço da Administração Pública do Território de Macau (portanto, até 19/12/1999) para efeito da atribuição do subsídio de residência, independentemente do local de residência.

III - Qualquer interpretação que se queira fazer do art. 10º daquela Lei atentaria contra o comando do art. 98º referido, se nele se descortinasse o asseguramento indistinto do subsídio de residência a todos os aposentados, independentemente do momento da aposentação.
















Proc. nº 257/2012

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, de nacionalidade chinesa, funcionário público da Administração Pública de Macau, residente em Macau, na Rua do Padre António Roliz, XXX, recorre contenciosamente para este TSI de um indeferimento tácito imputado ao Ex.mo Secretário para a Economia e Finanças, por ausência de decisão no recurso hierárquico que interpôs do despacho da Directora dos Serviços de Finanças que ao recorrente indeferiu o requerimento de atribuição de subsídio de residência apresentado.
Ao acto imputa os vícios de violação do princípio da igualdade e da não discriminação previstos no art. 25º da Lei Básica, bem como os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público, da protecção dos direitos e interesses dos residentes, da imparcialidade, da isenção, da boa fé, da participação, da decisão, da desburocratização e da eficiência previstos nos arts. 3º, 4º, 5º, 7º, 8º, 11º e 12º do CPA, bem como os da hierarquia e da prevalência previstos no art.s 3º, nº2 e 6º, al. 14), do Regime Jurídico do enquadramento das fontes normativas internas da Lei nº 13/2009.
Fê-lo nos seguintes termos conclusivos:
«a) No ano passado, o recorrente A pediu, nos termos da lei, à Direcção dos Serviços de Finanças o subsídio de residência.
b) O recorrente A recebeu o ofício emitido pelo Departamento de Contabilidade Pública da DSF, e foi notificado que esta Direcção recusou a pagar o subsídio de residência que o recorrente tem direito a receber nos termos da lei.
c) O fundamento da Direcção dos Serviços de Finanças baseia-se no parecer emitido pelos SAFP.
d) O recorrente A interpôs oportunamente o recurso hierárquico (necessário) ao Secretário para a Economia e Finanças.
e) O Secretário para a Economia e Finanças ainda não respondeu, até hoje, ao documento por escrito do recurso hierárquico necessário interposto pelo recorrente A.
f) Pode considerar, nos termos da lei, que o Secretário para a Economia e Finanças indeferiu tacitamente o recurso hierárquico do recorrente A.
g) Nos termos do D.L. n.º 96/99/M de 29 de Novembro, o recorrente A recebe o subsídio de residência conforme o ETAPM.
h) Nos termos do art.º 10.º n.º 1 e art.º 23.º n.º 3 do regime do prémio de antiguidade dos subsídios de residência e de família da Lei n.º 2/2011, e conforme os fundamentos do projecto de lei à AL e o parecer n.º I/IV/2011 da 1ª Comissão Permanente da AL, estipulam-se expressamente que esta lei destina-se a ampliar o âmbito de beneficiários.
i) Esta lei consagra todos os trabalhadores dos serviços públicos que se encontrem em efectividade de funções ou desligados do serviço para efeitos de aposentação, bem como os aposentados, salvo aqueles que hatitem em moradia do património da RAEM ou de qualquer outra pessoa colectiva de direito público ou que recebam mensalmente subsídio para arrendamento ou equivalente, têm direito a um subsídio mensal de residência desde do mês seguinte à data da entrada em vigor desta lei.
j) Portanto, os respectivos actos administrativos violaram os princípios da igualdade e da não discriminação da Lei Básica e a competência legislativa da LA, ao mesmo tempo, violaram os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público, da protecção dos direitos e interesses dos residentes, da imparcialidade, da isenção, da boa fé, da participação, da decisão, da desburocratização e da eficiência previstos no Código do Procedimento Administrativo, também violaram os princípios da hierarquia e da prevalência previstos na Lei n.º 13/2009».
*
A entidade recorrida contestou, pugnando pelo improvimento do recurso, concluindo a peça nos seguintes termos:
I. O Decreto-Lei n.º l4/94/M visava a aplicação a Macau do Decreto-Lei n.º 357/93 de 14 de Outubro. Definindo este a integração nos quadros da República Portuguesa dos funcionários do então Território de Macau, o que aquele fez foi regular as condições, em Macau, do modo como se processaria essa integração.
II. O recorrente por se encontrar nas condições prevista na Lei, transferiu a responsabilidade pela sua pensão para a CGA. Isto no âmbito do processo de integração, tendo em conta a transferência da Administração da República Portuguesa para a República Popular da China em 20 de Dezembro de 1999.
III. Efectuada a transferência da responsabilidade pela pensão para a CGA, previa o Decreto-Lei n.º 14/94/M no artigo 17.º n.º 4 a possibilidade de estes pensionistas beneficiarem de viagem para Portugal para si e familiares, transporte de bagagens e veículo ligeiro, desalfandegamento, bem como seguro.
IV. Dada a extensão do direito consagrado neste número, não se trata de ter direito a uma passagem para Portugal, mas de garantir o transporte de todos os bens móveis do funcionário para Portugal, uma vez que tal é feito na condição de fixar residência em Portugal.
V. Dos aposentados que transferiram a responsabilidade para a CGA nem todos requereram o transporte para Portugal. Ficaram alguns a habitar casas património da Administração ou de outros entes públicos, ou apenas permaneceram em Macau.
VI. Reconhecendo a situação especial destes pensionistas veio o Decreto-Lei n.º 38/95/M no preâmbulo “proceder à sua clarificação, (aplicação do ETAPM) aproveitando-se, ainda, esta oportunidade para acolher outras soluções previstas naquele Estatuto, adaptando-as aos condicionalismos próprios deste processo (de integração) ”.
VII. Segundo o ETAPM, apenas os aposentados residentes em Macau e cuja pensão fosse paga pelo então Território, tinham direito a subsídio de residência. O Decreto-Lei n.º 38/95/M vem modificar a situação dizendo que, após a transferência da responsabilidade pela pensão para a CGA, estes pensionistas manteriam o subsídio. Em suma, os aposentados que perderiam o direito a subsídio de residência por passarem a sê-lo pela CGA, excepcionalmente, manteriam este direito, enquanto residissem em Macau, e até Dezembro de 1999.
VIII. Os outros aposentados da CGA, que tinham exercido o direito a transporte não tinham direito a subsídio de residência. Porque não se enquadravam nas previsões do Decreto-Lei n.º 38/95/M. Não estavam na situação excepcional de receber pensão não paga pelo Território, mas residirem em Macau. Ao aceitar, na condição de fixar residência em Portugal, o abono de viagem e direitos conexos, ficaram excluídos dos destinatário do Decreto-Lei n.º 38/95/M. Este decreto não lhes era destinado. A sua situação estava totalmente resolvida pela aplicação do Decreto-Lei n.º 14/94/M.
IX. O Decreto-Lei n.º 38/95/M, cria uma norma excepcional que veio a ser revogada pelo Decreto-Lei n.º 96/99/M que diz no preâmbulo:
“Contudo, parte significativa destes aposentados e pensionistas tencionam continuar a residir em Macau para além de 19 de Dezembro de 1999, mantendo a condição de arrendatários de moradias do Território, bem como o acesso ao subsídio de residência.”
X. A que aposentados se refere a Lei? É óbvio que aos que tendo transferido a responsabilidade pelo pagamento da pensão para a CGA, continuaram a residir em Macau, pelo que, excepcionalmente, foi-lhes mantido o direito a subsídio de residência, que doutro modo lhes seria negado pelo ETAPM. O que se confirma no último parágrafo, falando-se em manutenção.
XI. Assim sendo, alcança-se que tal como não estavam contemplados no Decreto-Lei n.º 38/95/M, continuam excluídos do Decreto-Lei n.º 96/99/M, os pensionistas da CGA que fixaram residência em Portugal, como decorrência da aplicação do n.º 4 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 14/94/M.
XII. Mais, que não é a condição de residência em Macau plasmada no artigo 203.º do ETAPM que importa para avaliar do direito à sua percepção, mas sim o Decreto-Lei n.º 96/99/M e os que o antecedem na regulação da mesma questão.
XIII. Nunca se manteve um direito a subsídio de residência, em abstracto, para os pensionistas em geral da CGA e agora renascido pela alteração das condições antes previstas no artigo 203.º do ETAPM. Os que utilizaram o direito a transporte para Portugal, obviamente deixaram de ter direito a subsídio de residência, e o consagrado nos Decretos-Lei n.º 38/95/M e 96/99/M não se lhes aplica. Pelo que inexiste vício de violação de lei porque a lei nem sequer se aplica ao recorrente.
XIV. Certamente que o recorrente não admite, por absurdo, que qualquer reformado, seja de onde o for, residente onde for tem direito a subsídio de residência pago pela RAEM.
XV. Pelo que sempre se há-de conceder que deve haver uma limitação do universo de aposentados a quem a RAEM deve abonar subsídio de residência.
XVI. Pelo que quando no artigo 10.º da Lei n.º 2/2011 se refere aos aposentados, forçosamente será aos aposentados da RAEM. A quem esta paga a pensão.
XVII. E é precisamente a este conjunto que não pertence o recorrente. Não é aposentado da RAEM, é aposentado da CGA. E tem residência em Portugal.
XVIII. No âmbito do processo de integração, transferiu a responsabilidade pela sua pensão para a CGA e na condição de fixar residência em Portugal, foram-lhe abonados todos os direitos referidos no artigo 17.º nºs 3 e 4 do Decreto-Lei n.º 14/94/M. De outro modo, está integrado na Administração Pública de Portugal, como pensionista.
XIX. O que permite concluir que não se verifica violação de Lei n.º 2/2011 na não atribuição de subsídio de residência ao recorrente, uma vez que não é aposentado da RAEM.
XX. O estatuto de residente nunca foi posto em causa no procedimento, nem sequer levado em conta, não tendo servido para fundamentar o acto que o recorrente pretende ver nulidade».
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O processo prosseguiu para alegações facultativas, tendo o recorrente concluído a peça nos seguintes moldes:
«a) O recorrente, A, funcionário aposentado e ex-subscritor do Fundo de Pensões requereu a transferência da responsabilidade pelo pagamento das suas pensões para a Caixa Geral de Aposentações de Portugal e o transporte para Portugal.
b) Infelizmente, de facto, o recorrente, A, não pôde abandonar Macau naquela altura, uma vez que a sua mãe sofria de doença grave e que o recorrente tinha de tratar a sua família, pelo que ele permaneceu em Macau até agora.
c) Com a publicação da Lei 2/2011 (Regime do prémio de antiguidade e dos subsídios de residência e de família), foi alterado o mecanismo de atribuição de subsídio de residência.
d) Pelo que, o recorrente, A, requereu, ao abrigo dos artigos 10.º, n.º 1, e 23.º, n.º3, da Lei n.º 2/2011 (Regime do prémio de antiguidade e dos subsídios de residência e de família), conjugados com o D.L. n.º 96/99/M, de 29 de Novembro, artigo 1.º, al. b), aos Serviços de Finanças a atribuição de subsídio de residência.
e)O recorrente, A, notificado pelo Oficio n.º 6814/SAP/DDP/DCP/2011, foi indeferido o seu requerimento.
f) Desconformado da decisão dos Serviços de Finanças, o recorrente, A, instaurou o recurso hierárquico necessário para o Senhor Secretário para a Economia e Finanças.
g) Passado o prazo legalmente fixado, o Senhor Secretário para a Economia e Finanças não lhe deu resposta, o que implica um indeferimento tácito.
h) Independentemente do facto da permanência em Macau, o novo regime do prémio de antiguidade e dos subsídios de residência e de família passa a atribuir o subsídio de residência a todos os trabalhadores dos serviços públicos, bem como os aposentados.
Termos em que nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.ª, o recorrente, A, vem, mui respeitosamente, requerer a V.Ex.ª se digne determinar procedente o presente recurso contencioso e declarar a nulidade do acto impugnado, nos termos do artigo 21.º, n.º1, al.s a), d) e e) do Código de Processo Administrativo Contencioso, aprovado pelo D.L. n.º 110/99/M, de 13 de Dezembro, e cumulativamente, ao abrigo do artigo 24.º, n.º l do mesmo Código, determinar que os Serviços de Finanças atribuam o subsídio de residência a favor do recorrente, A, com o efeito retroactivo a partir de Maio de 2011, ao abrigo dos artigos 104.º, nº 1 e 107.º do mesmo Código».
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A entidade recorrida também alegou, produzindo as seguintes conclusões:
«I. O exercício do direito ao transporte para Portugal ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 14/94/M não representa uma presunção «juris tantum» mas uma condição.
II. Uma presunção legal consiste na dedução, na inferência, no raciocínio lógico por meio do qual se parte de um facto certo, provado ou reconhecido, e se chega a um facto desconhecido.
III. Ora as condições não são ilidíveis. Verificadas impõe que delas se extraiam as consequências. No caso, a fixação de residência em Portugal.
IV. O recorrente não pode lançar mão do Decreto-Lei n.º 96/99/M porque se lhe não aplica. Não faz parte dos aposentados abrangidos por este normativo.
V. Ao requerer as passagens, aceitou a condição imposta por lei, e passou a ser um aposentado da CGA de Portugal, sendo residente nesse país. Apenas os aposentados que embora tendo transferido para aquela instituição a responsabilidade pela sua pensão, permaneceram efectivamente, isto é, sem requerem a passagem, em Macau, são destinatários do Decreto-Lei n.º 96/99/M.
VI. O que pretende o recorrente é beneficiar das vantagens de todas as opções. Por um lado o transporte de pessoas e bens para fixar residência em Portugal; e por outro das inerentes aos que desse direito não beneficiaram. Numa manifesta injustiça.
VII. O recorrente não é aposentado da RAEM. É aposentado de Portugal, da CGA. Tanto é assim que se lhe aplicam as conhecidas restrições impostas em Portugal aos pensionistas.
VIII. Assim sendo não se lhe aplica a lei n.º 2/2011, que se destina aos aposentados da RAEM. Não a qualquer aposentado. Aliás, previsão que faz parte integrante da lei Básica - artigo 98.º, segundo parágrafo.
IX. O recorrente confunde fundamentação de um acto administrativo com criação de uma norma. A lei n.º 13/2009 veio estatuir que, para o futuro - artigo 11.º n.º 1 do Código Civil -, regimes fundamentais aplicáveis aos trabalhadores da administração pública são regulados por lei.
X. Não pode obstar a que factos pretéritos tenham sido regulados de forma diferente. Por isso, a fundamentação da decisão tem de enquadrar os factos - situação do recorrente - nas normas em vigor ao tempo dos factos.
XI. A fundamentação é a justificação de facto e de direito de uma decisão. Não cria qualquer norma, aplica as normas competentes à situação concreta.
Termos em que, por não se verificar nenhum dos vícios arguidos pelo recorrente, deve o recurso ser declarado improcedente mantendo-se a decisão recorrida».
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O digno Magistrado do MP opinou o que segue:
«Pese embora no seu petitório inicial o recorrente tenha imputado ao acto tácito em questão uma vasta panóplia de vícios (ofensa à lei 2/2011, afronta dos princípios da prevalência e da hierarquia da lei reportados à Lei 13/2009, violação dos princípios da igualdade e não discriminação, ínsitos na RAEM e atropelo dos princípios da legalidade, prossecução do interesse público, protecção dos direitos e interesses dos residente, justiça, imparcialidade, boa-fé, participação, decisão, desburocratização e eficiência, constantes do CPA), assiste-se, em termos das respectivas alegações, a algum abandono de tão prolífica argumentação, para assentar na conclusão essencial de que “Independentemente do facto da permanência em Macau, o novo regime do prémio de antiguidade e dos subsídios de residência e de família passa a atribuir o subsídio de residência a todos os trabalhadores dos serviços públicos, bem como os aposentados”.
Cremos assistir-lhe razão, no que tange ao seu caso concreto.
A questão fulcral a delucidar no caso presente será a de saber se o recorrente, enquanto funcionário aposentado do então Território de Macau, tendo transferido a responsabilidade pelo pagamento da sua pensão para a Caixa Geral de Aposentações no processo de integração (tendo em conta a transferência da Administração da República Portuguesa para a República Popular da China em 20/12/99) e requerido e obtido, para si e seus familiares, os direitos consagrados nos nºs 3 e 4 do art.º 17º do Dec Lei 14/94/M (viagem aérea para Portugal, transporte de bagagens e veículo ligeiro e seguro), terá ou não direito ao abono do subsídio mensal de residência a que se reporta o nº 1 do art.º 10º da Lei 2/2011 de 114.
Desde logo, uma nota: encontramo-nos, de forma geral, de acordo com a análise empreendida pela entidade recorrida no que concerne ao âmbito de aplicação dos diversos diplomas legais que têm regido sobre a matéria, ou seja, no essencial e para o que agora nos ocupa, concordamos que, tendo o exercício do direito a que supra nos reportamos ficado legalmente condicionado à decisão de fixação de residência em Portugal, o recorrente terá, por esse motivo, deixado de poder usufruir do subsídio de residência a que se reportava o nº 1 do art.º 203º, ETAPM, não se podendo arrogar, melhor dizendo, ficando também excluído como “destinatário” das previsões sobre a matéria contempladas pelo Dec. Lei 38/95/M de 7/8, pela razão simples que, nos termos legais, havia, sob ficção legal, fixado residência em Portugal e tais diplomas se reportavam expressamente a residentes em Macau, revelando-se inquestionável, à luz daqueles diplomas, que a situação dos aposentados que transferiram a responsabilidade para a CGA se revela diversa, conquanto tenham ou não exercido o direito de viagem para Portugal nos termos sobreditos, apresentando-se clara a manutenção do subsídio relativamente aos que não fizeram uso daquele direito e sucedendo o inverso ao que o fizeram, como é o caso do recorrente.
Algo diversa se apresenta, porém, a nosso ver, a apreciação do disposto sobre a matéria pelo Dec. Lei 96/99/M de 29/11, diploma que visou garantir aos aposentados e pensionistas que transferiram a responsabilidade pelo pagamento das suas pensões para a CGA, a manutenção dos direitos respectivos, designadamente o subsídio de residência (al b) do art.º 1º).
É que, se bem se atentar, o seu art.º 3º revogou expressamente a al b) do art.º 3º do art.º 17º do Dec Lei 14/94/M e o nº 2 do art.º 3º do Dec Lei 38/95.
E, percebendo-se que na génese dessa revogação se encontrará fundamentalmente, para compatibilização, a necessidade de “quebrar” o prazo limite (19/12/99) do abono do subsídio em questão, a verdade é que era em tais normativos revogados que se expressava o condicionalismo da residência em Macau como condição de percepção do subsídio, sendo que, embora o teor do preâmbulo do citado Dec Lei 96/99/M pareça continuar a apontar como visados os aposentados, naquelas condições específicas, que continuavam a residir em Macau, o normativo aplicável - al b) do art.º 1º - não expressa tal circunstância como condicionante do abono daquele benefício.
Como, de resto, o não faz a Lei 2/2011, diploma que, regulando o regime do prémio de antiguidade e dos subsídios de residência e de família dos trabalhadores dos serviços públicos da RAEM, revogou o estipulado na matéria pelo ETAPM (art.ºs 203º a 212º), sendo que no seu art.º 10º, sob o epíteto de “Direito ao subsídio”, se contempla, sem distinções o acesso ao mesmo dos aposentados, em parte alguma se descortinando qualquer diferenciação “negativa” relativamente aos aposentados que, tendo transferido a responsabilidade para a CGD, usufruíram dos direitos contemplados nos já citados nºs 3 e 4 do art.º 17º do Dec Lei 14/94/M, ou, dizendo de outra forma, não se alcança do diploma em causa qualquer dispositivo que limite o acesso do direito ao abono do subsídio de residência aos aposentados residentes na Região.
Poderá, porventura, argumentar-se, a esse nível, com o elemento histórico e sistemático, o que, aliás, a entidade recorrida não deixou de empreender.
Só que, para além da especificidade do sucedido com o Dec. Lei 96/99/M e respectivas revogações, o já mencionado Dec. Lei 38/95/M de 718 destinou-se, conforme os termos do preâmbulo respectivo, a clarificar e adaptar o ETAPM a determinadas situações específicas do processo de integração dos funcionários de Macau nos Serviços da República portuguesa e da transferência da responsabilidade das pensões de aposentação e sobrevivência para a CGA, sendo certo que, como já se frisou, de acordo com o art.º 24º da Lei 2/2011, as normas daquele Estatuto (art.ºs 203º e 204º) referentes à atribuição do subsídio em questão foram expressamente revogadas, passando a vigorar na matéria, “tout court” as disposições daquele diploma, onde, repete-se, em parte alguma se configura o reporte à residência em Macau como condicionante no acesso ao benefício.
Aceita-se que deve haver uma limitação do universo de aposentados a quem a RAEM deve abonar subsídio de residência, reportando-se, naturalmente, o normativo em causa - art.º 10º - aos aposentados da RAEM.
Só que, aceitando a Administração abranger nesse conceito, para efeitos de atribuição do subsídio de residência, os funcionários que, no processo de integração, transferiram a responsabilidade pelo pagamento das pensões para a CGA e mesmo aqueles que, nessas condições, requereram e obtiveram o direito ao transporte de bagagens e, ou, veículo ligeiro de passageiros para Portugal, não se descortina, à luz do novo diploma em questão, razão válida para afastar do acesso a esse subsídio os aposentados que, nas mesmas condições, no processo de integração, solicitaram e obtiveram o transporte de pessoas para o mesmo país, sendo certo que, no caso do recorrente, não deixou o mesmo de deter o estatuto de residente da RAEM, aqui residindo, de facto.
E, não se diga que, neste contexto, a atribuição daquele subsídio ao recorrente e casos similares constituiria um absurdo por natureza, como parece pretender a recorrida: a partir do momento em que a Administração decide conceder aos aposentados que transferiram a responsabilidade pelo pagamento das suas pensões para a CGA (e a quem, portanto, não paga as respectivas pensões) o subsídio de residência, neles se abrangendo mesmo os que, naquelas condições, requereram e obtiveram o transporte para Portugal de bagagens e, ou veículo ligeiro de passageiros e seguro, não se vê que constitua maior “salto” ou algo de transcendente que se possa concluir que, a partir da publicação da Lei 2/2011, tenha a mesma Administração decidido estender a concessão do mesmo aos aposentados naquelas mesmas condições, mas que entenderam requerer também o transporte de pessoas para o mesmo país.
Que se saiba, “a questão humana e social”, a “idade avançada”, as dificuldades de se encontrarem “alternativas de residência compatíveis com a pensão auferida “, algumas das razões invocadas no preâmbulo do Dec. Lei 96/99/M para a manutenção do subsídio de residência aos visados, não serão monopólio dos aposentados que não requereram as passagens para Portugal, ou que para ali requereram apenas o transporte de bagagens e, ou veículo, razão por que, não estabelecendo o nº 1 do art.º 10º da Lei 2/2011 qualquer distinção ou destrinça relativamente aos aposentados, se entende como incorrecta a interpretação efectuada do preceito.
Donde, sermos, por tal via, a entender merecer provimento o presente recurso».
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Cumpre decidir.
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II - Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão bem representadas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III - Os Factos
1 - O recorrente é aposentado da Administração Pública de Macau e, a seu pedido, a transferência para a CGA da responsabilidade pelo pagamento da respectiva pensão foi deferida em 4 de Novembro de 1996 (fls. 88 a 91).
2 - Em 15 de Julho de Agosto de 1998 e 24 de Fevereiro de 1998 dirigiu requerimentos ao Presidente do Conselho de Administração do Fundo de Pensões de Macau pedindo que lhe fossem abonadas as passagens aéreas e o transporte de bagagem (fls. 83 e 87).
3 - Foi deferido e efectuado o pagamento (fls. 79 a 82 e 84).
4 - O recorrente formulou em 05/09/2011 o pedido de atribuição do subsídio de residência, acompanhado dos documentos de instrução respectivos (fls.7 do p.a.).
5 - Nesse requerimento o recorrente afirmou não habitar em moradia do património da RAEM ou de qualquer outra pessoa colectiva pública (doc. cit.).
6 - Através do Ofício n.º 6814/SAP/DDP/DCP/2011, de 11/11/2011, da Direcção dos Serviços de Finanças (doravante “DSF”), o recorrente foi notificado da decisão que recaiu sobre o pedido do referido subsídio, da qual se transcreve o seguinte por ser a sua parte relevante: “Estando o exercício do direito ao transporte por conta da RAEM condicionado à decisão de fixação de residência em Portugal, conforme o disposto no nº4, do artigo 17º do Decreto-lei nº 14/94/M, somos do entendimento que o pessoal que tenha exercido o direito ao transporte por conta da RAEM regulado na alínea a) do nº3 do artigo 17º do Decreto-lei 14/94/M deixa de reunir o pressuposto decorrente do Decreto-lei nº 96/99/M e, em consequência, deixa de poder manter o direito ao subsídio de residência nos termos do ETAPM e, desde 1 de Abril de 2011, nos termos da Lei nº 2/2011» (Doc. fls. 14 dos autos).
7 - O recorrente apresentou em 21/11/2011, recurso hierárquico necessário dirigido ao Senhor Secretário para a Economia e Finanças, impugnando graciosamente o despacho de indeferimento da Senhora Directora da DSF. (Doc. fls. 15 a 17 dos autos; fls. 21 e 22 do p.a.; fls. 20 a 25 do apenso “Traduções”).
8 - Não foi ainda proferido qualquer despacho do Ex.mo Recorrido.
***
IV - O Direito
1 - Do âmbito do recurso
Nas conclusões da petição inicial o recorrente tinha invocado uma série de vícios, essencialmente relacionados com uma imputada violação de princípios gerais de direito administrativo, bem como outros alegadamente radicados na ofensa a preceitos constantes da Lei Básica e da Lei nº 13/2009.
Todavia, nas conclusões facultativas – onde, como se sabe, podem ser mantidas as vertidas na petição inicial, assim como restringidas ou ampliadas, neste último caso se o conhecimento dos respectivos vícios tiver sido superveniente (art. 68º, nº3, do CPAC) – o recorrente deixou de se referir expressamente à maior parte deles, limitando a sua atenção à matéria dos arts. 10º, nº1 e 23º, nº3, da Lei nº 2/2011, 6º, al. 14), da Lei nº 13/2009 e DL nº 96/99/M, de 29/11 (e mesmo aí com alguma indefinição).
Pois bem. Numa interpretação possível que se pode extrair do art. 68º do CPAC, admitimos que se o abandono não for expresso (“…restringi-los expressamente…”), parece ser de continuar a conhecer os vícios invocados nas conclusões da petição inicial.
Nessa pressuposição, conheceremos dos vícios imputados ao acto, pretensamente violadores dos princípios constantes da alínea j) das conclusões da petição inicial.
2 - Do mérito do recurso
2.1 - Em primeiro lugar, olhemos para os vícios trazidos ao processo nas conclusões da petição inicial, que não surgem reiterados nas conclusões das alegações facultativas.
A respeito da violação dos princípios da igualdade, da prossecução do interesse público, da protecção dos direitos e interesses dos residentes, da imparcialidade, da isenção, da boa fé, da participação, da decisão, da desburocratização e da eficiência previstos no Código do Procedimento Administrativo, cumpre adiantar desde já que ela se não verifica.
Na verdade, a actividade levada a cabo pela Administração neste caso é de natureza vinculada à lei (Lei Básica e Lei 2/2011), pelo que a invocação daqueles princípios não faz sentido, por serem característicos da actividade administrativa discricionária, logo inaplicáveis à situação vertente.
Deste ponto de vista, improcede o vício nesta vertente.
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No que respeita ao princípio da legalidade, diremos apenas que ele se assume como um comando universal, destinado a abranger um conjunto vasto de fontes de direito que não devem ser violadas. Fala-se, a este respeito, em “bloco de legalidade”, abarcando a norma constitucional, a norma legal e regulamentar, os princípios gerais de direito, a auto-vinculação administrativa, etc.
De qualquer maneira, cremos que este princípio não se autonomiza por si mesmo, de modo a valer como fonte própria de invalidade. Isto é, ele apenas vale enquanto estabelece um quadro programático e orientador do pano de fundo em que a Administração se há-de mover na sua actividade. Para se concluir, no entanto, se a Administração ofendeu alguma fonte de direito na descrita acepção, o que importa é apurar qual a fonte de invalidade concreta. Nesse caso, o vício procederá por causa dessa violação concreta e não por causa do desrespeito do princípio da legalidade.
Improcede, pois, “a se” esta invocação viciante.
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Finalmente, no que respeita à alegada discriminação da Lei Básica e à competência legislativa da AL, temos dificuldades, confessamos, em compreender com precisão o alcance da alegação.
Se o recorrente pretende inculcar que o acto violou o princípio 25º da Lei Básica (e isso parece ser o que emana do art. 36º da petição), então a intenção é chamar a atenção do tribunal para a alegada violação do princípio da igualdade, também previsto no art. 5º do CPA. Mas, o que se disse atrás aplica-se também aqui mutatis mutandis. Significa que o princípio não pode mostrar-se violado, na medida em que ele é exclusivo de uma actividade discricionária, que no caso não se verifica, como vimos.
E se quanto à vertente da imputada “violação da competência legislativa” da Assembleia Legislativa o recorrente quis dizer que, com o acto expresso de indeferimento da Directora e com o acto silente do Secretário do Governo, o que houve foi uma actividade que era própria da competência daquele órgão legislativo, então não pode estar mais equivocado. Seria, se procedente, uma invocação muito próxima, senão mesmo específica, do vício de usurpação de poderes: teriam titulares de órgãos administrativos praticados actos que eram da competência de um órgão legislativo. Mas, como se compreende, nada disso ocorre.
Efectivamente, o que se passou foi simplesmente o mais característico exemplo do pulsar administrativo na sua quotidiana actividade. Chamados a decidir um caso concreto, os órgãos da Administração praticam actos administrativos expressos (assim fez a Directora), outras vezes actos tácitos de indeferimento (que não são verdadeiros actos administrativos, mas simples ficção de actos para permitirem ao particular accionar os meios administrativos ou contenciosos ao seu dispor). E quando assim agem, os órgãos podem violar a lei, umas vezes aplicando-a mal, outras vezes nem sequer a aplicando, outras ainda aplicando a lei errada. Isso, porém, quando acontece tem remédio. O acto assim produzido padecerá de uma invalidade por vício de “violação de lei” que o tribunal se encarregará de declarar se for chamado a decidir o caso. A anulação será o remédio (ou a nulidade, consoante a situação), por violação de lei, e nunca por violação da “competência” do órgão legislativo.
Ora, no caso que temos em mãos, a entidade recorrida, ao não decidir expressamente o recurso hierárquico, limitou-se, pura e simplesmente, a deixar produzir um indeferimento tácito. Nada mais do que isso! Este silêncio, mesmo que acabe por produzir efeitos negativos na esfera do recorrente - na medida em que, ao indeferir tacitamente a impugnação administrativa, acaba por manter na ordem jurídica o acto de indeferimento da Directora dos Serviços de Finanças - na verdade não criou direito, não gerou norma. Quando muito, na tese do recorrente, atentou contra a Lei nº 2/2011, oriunda da Assembleia Legislativa. Mas isso, contudo, nada tem que ver com a violação da competência legislativa da A.L., se foi isso o que o recorrente quis realmente dizer.
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Uma palavra final a propósito da Lei nº 13/2009, de 27/07/2009 (Regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas).
O recorrente traz à colação o art. 3º, nº2, desse diploma, segundo o qual “2. As leis prevalecem sobre todos os demais actos normativos internos, ainda que estes sejam posteriores”.
E clama ainda pelo art. 6º, al. 14), que dispõe que a normação jurídica referente aos regimes fundamentais aplicáveis aos trabalhadores da administração pública é feita por leis.
Segundo se depreende dessa invocação, o acto atentaria contra os princípios da hierarquia e da prevalência das leis.
Como não foi claramente manifestada a intenção de reconduzir a acima analisada “violação da competência da AL” a esta dupla de argumentos aqui e agora trazidos a terreiro, vejamo-los então na perspectiva seleccionada pelo interessado.
Não cremos, porém, que tenha razão e pouco haverá a acrescentar ao que foi já dito supra. O acto tácito atribuído ao Ex.mo Secretário do Governo em nada atentou contra aqueles princípios, não só porque não tem conteúdo expresso e, por isso, nunca se poderá dizer que tenha estabelecido alguma dispositividade substantiva própria, como a validade ou invalidade do indeferimento (presumido) à luz da Lei nº 2/2011 pode ser sindicada, como foi, no plano da sua aplicabilidade à situação dos que não foram aposentados da Função Pública após 19/12/1999. Aliás, nem mesmo o despacho de indeferimento da Directora dos Serviços de Finanças atenta contra as referidas disposições legais.
Na verdade, a questão é de interpretação e de apuramento do âmbito de incidência pessoal dessa Lei 2/2011, bem como da sua conformidade com a Lei Básica nos termos acima expostos. E nós já vimos que nenhum desses diplomas dá alento ao recorrente nesse aspecto.
Aliás, se o problema para o recorrente é de supremacia e prevalência das leis, então esse é um bom motivo para se negar razão à invocação de invalidade feita pelo recorrente, já que o problema que ele vem aos autos trazer é o da extensão de um regime que vem precisamente estabelecido numa Lei ordinária (Lei nº 2/2011) e numa lei de valor superior e para-constitucional (Lei Básica).
Improcede, pois, o vício também nesta vertente.
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3 - No que respeita aos vícios iniciais da petição inicial e mantidos nas conclusões das alegações finais facultativas - respeitantes à lei nº 2/2011 e DL nº 96/99/M - vale a pena remeter para a posição que este tribunal, nomeadamente na composição em colectivo igual à que agora decide o presente recurso contencioso, já manifestou em decisões anteriores e onde toda a problemática foi tratada de forma a dar resposta abrangente à preocupação do ora recorrente.
Referimo-nos, entre outros, ao aresto proferido em 27/02/2014, no Proc. 339/2012, do qual se transcreve a sua parte útil aos presentes autos:
«…. a compreensão exacta do problema impõe-nos uma incursão ao iter histórico-normativo, cujo início relevante, e dispensada maior amplitude temporal, remonta à Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a Questão de Macau (assinada em Pequim em 13/04/1987 e publicada no Boletim Oficial de Macau nº 23, 3º Suplemento, em 7/06/1988), cujo parágrafo VI dispõe do seguinte modo:
“Após o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, os nacionais chineses e os portugueses e outros estrangeiros que tenham previamente trabalhado nos serviços públicos (incluindo os de polícia) de Macau podem manter os seus vínculos funcionais e continuarão a trabalhar com vencimentos, subsídios e benefícios não inferiores aos anteriores. Os indivíduos acima mencionados que forem aposentados depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau terão direito, em conformidade com as regras vigentes, a pensões de aposentação e de sobrevivência em condições não menos favoráveis do que as anteriores, independentemente da sua nacionalidade e do seu local de residência” (negrito nosso).
Esta questão dos vínculos e da aposentação, aliás, veio a ser plasmada na Lei Básica de Macau promulgada pelo Presidente da República Popular da China em 31 de Março de 1993 para entrar em vigor em 20/12/1999. E o fio que percorre o articulado desta Lei Básica, a respeito deste assunto, vem na mesma linha da Declaração Conjunta.
Efectivamente, relativamente à possibilidade de manutenção dos anteriores vínculos funcionais, o art. 98º, 1º parágrafo preceitua que:
“À data do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, os funcionários e agentes públicos que originalmente exerçam funções em Macau, incluindo os da polícia e os funcionários judiciais, podem manter os seus vínculos funcionais e continuar a trabalhar com vencimento, subsídios e benefícios não inferiores aos anteriores, contando-se, para efeitos de sua antiguidade, o serviço anteriormente prestado” (negrito nosso).
E no que ao aspecto fulcral da aposentação concerne, o 2º parágrafo do mesmo art. 98º textua que:
“Aos funcionários e agentes públicos, que mantenham os seus vínculos funcionais e gozem, conforme a lei anteriormente vigente em Macau, do direito às pensões de aposentação e de sobrevivência e que se aposentem depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, ou aos seus familiares, a Região Administrativa Especial de Macau paga as devidas pensões de aposentação e de sobrevivência em condições não menos favoráveis do que as anteriores, independentemente da sua nacionalidade e do seu local de residência” (negrito nosso).
Daqui se pode inferir, facilmente, que a RAEM se comprometeu a assegurar a pensão de aposentação aos trabalhadores que, após a transição (após 19/12/2009), tivessem mantido os seus anteriores vínculos funcionais e posteriormente aqui se viessem a aposentar. Seriam aposentados de Macau!
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Mas no que respeita ao subsídio de residência, talvez importe perceber o périplo legislativo, que teve o seu início preponderante no art. 203º do ETAPM (DL nº 87/89/M, de 21/12)1, que assim prescreve:
“1. Os funcionários e agentes em efectividade de funções, desligados do serviço para efeitos de aposentação ou aposentados, que residam em Macau e recebam, total ou parcialmente, vencimento, salário ou pensão por conta do Território, têm direito a um subsídio de residência de montante constante da tabela n.º 2, ou de importância igual à renda paga se esta for inferior àquela quantia.
2. O direito ao subsídio é atribuído a todos os funcionários e agentes ainda que existam entre eles relações de parentesco e residam na mesma moradia.
3. O direito previsto no número anterior é extensivo aos assalariados com mais de seis meses de serviço efectivo e ininterrupto, enquanto se mantiverem em funções.
4. Exceptuam-se do disposto no n.º 1 os trabalhadores que se encontrem numa das seguintes situações:
a) Habitem casa do património do Território, dos serviços autónomos ou dos municípios;
b) Tenham casa própria, salvo quando esteja sujeita a encargos de amortização.
5. A atribuição do subsídio depende de declaração a apresentar pelo trabalhador no respectivo serviço, na qual deve declarar, sob compromisso de honra, o montante da renda paga e, ainda, que não se encontra nas situações previstas no número anterior.
6. Junto com a declaração a que se refere o número anterior deve o trabalhador fazer prova que habita em casa arrendada, subarrendada ou em qualquer outra situação pela qual uma das partes se obrigue a proporcionar a outra o gozo temporário de um imóvel mediante retribuição.
7. No decurso do mês de Dezembro de cada ano, o trabalhador, com subsídio de residência atribuído deve apresentar, junto do respectivo serviço, a declaração a que se refere o n.º 5, bem como o recibo da renda de casa ou da retribuição, a que se refere o n.º 6, relativo ao mês imediatamente anterior.
8. Haverá redução rateada do subsídio de residência no caso do valor da renda ser inferior ao montante global dos subsídios atribuídos a trabalhadores que residem na mesma casa.
9. A inobservância do disposto no n.º 7 determina a suspensão do respectivo abono até ao mês, inclusive, da apresentação dos referidos documentos”.
Nessa altura, e como se vê, o subsídio de residência era conferido aos aposentados que recebessem pensão “por conta do Território” (nº1), ficando dependente da condição declarada de o trabalhador habitar em casa arrendada, subarrendada ou em situação de gozo temporário de imóvel mediante retribuição (nº5). Direito que seria, no entanto, excluído:
a) A quem habitasse em casa do património do Território, dos serviços autónomos ou dos municípios (nº4, al.a));
b) A quem tivesse casa própria sem encargos de amortização (nº4, al. b)).
Com o DL nº 357/93, de 14/10, aos funcionários que não pretendessem continuar a exercer funções na Administração da RAEM após a transição, foram reconhecidos alguns direitos, nomeadamente o de integração nos quadros de pessoal dos serviços públicos portugueses e o da transferência da responsabilidade pelo encargo e pagamento das pensões aos aposentados para a Caixa Geral de Aposentações (CGA). Tratava-se de um diploma que estabelecia uma antevisão, simultaneamente condição: valia para aqueles funcionários que não viessem a trabalhar para a RAEM, logo que efectuada a transferência de soberania.
Na sequência deste último diploma, surgiu o DL nº 14/94/M, de 23/02, que àquele veio trazer regulamentação. Tratava-se de um diploma que tinha o seu âmbito de aplicação definido no art. 2º, ou seja, era aplicável ao pessoal que, nos termos do Decreto-Lei n.º 357/93, de 14 de Outubro, se encontrasse numa das seguintes situações:
a) Reunisse condições de integração nos serviços da República Portuguesa;
b) Reunisse condições de transferência da responsabilidade das pensões de aposentação e de sobrevivência para a Caixa Geral de Aposentações (CGA).
Assim, e no que à transferência da responsabilidade pelo pagamento das pensões respeita, este diploma visava o pessoal inscrito na previsão do art. 10º, nºs 1 e 2, do DL nº 357/93, desde que fizesse a opção estabelecida no art. 9º, al. b), do citado DL nº 14/94/M (ver ainda art. 10º, 13º e 14º).
Mas não é tudo. Este mesmo diploma apresentava um normativo com a epígrafe “Direitos”. Referimo-nos ao art. 17º do DL nº 14/94/M, que tinha por destinatário o pessoal que viesse a cessar funções em Macau em virtude da integração nos serviços da Administração Pública de Portugal ou em virtude da desvinculação mediante compensação pecuniária e ainda aquele a quem tivesse sido autorizada a transferência das respectivas pensões. Ora, no que se refere a este último grupo de funcionários, o que ele previu foi a manutenção do direito (nº3) a:
a) Transporte para Portugal por conta do Território;
b) Continuar a habitar moradia do Território, até 19 de Dezembro de 1999 e enquanto residisse em Macau, mediante o pagamento da respectiva renda2;
c) Acesso a cuidados de saúde, mediante o pagamento da respectiva contribuição.
O exercício do direito ao transporte (al. a)), porém, ficava “condicionado à decisão de fixação de residência em Portugal” (nº4).
De referir que este diploma mandava aplicar subsidiariamente o ETAPM em tudo o que nele não estivesse expressamente previsto ou em que não o contrariasse (art. 22º).
Ora, dessa aplicação subsidiária reconheceu o legislador ter advindo alguma dificuldade interpretativa e, na tentativa de a resolver, foi publicado o DL nº 38/95/M, de 7 de Agosto. E então o art. 3º passou a clarificar o seguinte:
Artigo 3.º
(Renda de casa)
1. O montante devido mensalmente a título de renda de casa pelos pensionistas, na situação a que se refere a alínea b) do n.º 3 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 14/94/M, de 23 de Fevereiro, após a transferência da respectiva pensão, é o que resultar das disposições legais em vigor à data da transferência, sendo o pagamento efectuado no serviço ou entidade a quem cabe a administração das moradias.
2. Os pensionistas que têm direito a subsídio de residência, nos termos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, após a transferência da respectiva pensão para a CGA mantêm esse direito até 19 de Dezembro de 1999, enquanto residirem no território de Macau, sendo o pagamento efectuado pela Direcção dos Serviços de Finanças (negrito nosso).
Ficou claro, pois, que os pensionistas que tinham direito a subsídio de residência após a transferência da responsabilidade pelo pagamento da pensão mantê-lo-iam somente até 19/12/2009, e enquanto residissem em Macau! Tudo muito claro por essa altura.
Já muito perto da transferência da Administração para a República Popular da China tomou conta o legislador da intenção de muitos pensionistas e aposentados continuarem a residir em Macau depois de 19/12/2009. Não se alheando da questão humana e social envolvida no caso e atendendo à avançada idade de alguns deles, pretendeu o legislador garantir-lhes a manutenção dos direitos à condição de arrendatários de moradias do Território e ao acesso ao subsídio de residência, tanto quanto se pode ler no preâmbulo. E assim é que, no artigo 1º, do DL nº 96/99/M, de 29/11, com a epígrafe “Direitos”, consignou o seguinte:
“Ao pessoal a quem seja autorizada a transferência das respectivas pensões para a Caixa Geral de Aposentações é mantido o direito a:
a) Continuar a habitar moradia do Território enquanto residir em Macau, mediante o pagamento da respectiva renda no serviço ou entidade a quem cabe a administração de moradias;
b) Subsídio de residência nos termos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, sendo o pagamento efectuado pela Direcção dos Serviços de Finanças” (negrito nosso).
Se bem se reparar, o que o legislador fez foi estender o direito dos aposentados que hajam transferido o pagamento das pensões para a CGA para lá de 19/12/2009, isto é, eliminou o limite temporal definido no art.3º, nº2, do DL nº 38/95/M. Deste modo, se à partida os aposentados iriam receber o subsídio de residência somente até 19/12/2009, por aquela via legislativa passaram a poder continuar a recebê-lo depois dessa data, obviamente desde que residissem em Macau, pois assim o mandam interpretar, quer a própria natureza genética do subsídio, quer a letra do art. 203º, nº1 do ETAPM, diploma para cujos termos o art. 1º transcrito remete expressamente.
Isso é uma coisa; diferente, é saber se com a consagração da RAEM se poderia manter o direito ao subsídio de residência. Veremos isso mais adiante.
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Aqui chegados, algumas questões agora se nos colocam:
- Podia o legislador do DL nº 96/99/M, de 29/11 estabelecer tal determinação?
A resposta é afirmativa; sim podia, pois esta era matéria que estava no espectro da sua competência legal.
- E podia tal estatuição comprometer a futura RAEM? Não atentaria ela contra a Declaração Conjunta ou a Lei Básica?
A resposta a esta 2ª pergunta já é mais problemática e levanta outra série de questões. Segundo parece, embora as disposições dos diplomas acima transcritas assegurassem os direitos de aposentação somente àqueles que viessem a reunir os respectivos requisitos após 19/12/2009, a verdade é que neles nenhuma limitação ou restrição foi incluída no que respeita ao subsídio de residência. Realmente, nem mesmo o art. 97º da Lei Básica funciona neste caso como norma-travão, uma vez que o seu alcance se confina a manter as condições laborais e estatutárias a quem continuar a trabalhar em Macau (1º §) e a garantir os encargos pelo pagamento das pensões de aposentação (2º §). E isso poderia levar-nos a admitir um bom princípio de hermenêutica para a solução que o problema exige, na medida em que se pode entrever neste diploma o mote para algo que se tem que conciliar com os anteriores textos legais. Na verdade, o percurso normativo-histórico acima gizado deixa sempre exposta uma permanente circunstância: no que ao subsídio de residência concerne, parece que o factor da residência surge à cabeça como essencial. E nem admira que assim seja. Um subsídio de residência, à partida, só se deve justificar para quem reside num determinado local, que o legislador elege como condição de concessão do direito. Portanto, a geografia impõe-se em abstracto na génese ou no fundamento da existência do direito e o seu abono depende em concreto da verificação da circunstância típica. Assim, se o subsídio em apreço é motivado pela residência em Macau, cristalina há-de ser a conclusão do silogismo de que a sua concessão depende de uma premissa menor que se adeqúe à premissa maior.
Evidentemente que este silogismo é perfeito se nada se lhe atravessar no caminho que o perturbe num dos seus traços lógicos essenciais. Por exemplo, se admitirmos que o funcionário aposentado, mesmo tendo transferido para Portugal o pagamento da pensão, acabou por nunca deixar de residir em Macau, poderemos estar perante uma situação que aparentemente se enquadra no DL nº 96/99/M. Ponto é saber se a mesma solução se haverá de justificar no caso de a situação de residência em Macau ter sofrido alguma modificação.
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E é aqui que se nos depara a grande dificuldade, que se pode traduzir na seguinte interrogação:
“Quid iuris” se o aposentado, além do direito à transferência da pensão para a CGA, também utilizou o outro direito conferido pelo art. 17º, nº3, al. a), do DL nº 14/94/M? Tendo obtido o seu transporte e o dos seus bens e consequentemente transferido para Portugal a sua residência, entender-se-á que perdeu a condição da residência em Macau para a obtenção do direito ao respectivo subsídio? Este cruzamento de caminhos que conduzem a diferentes direitos é juridicamente interessante, porque obriga a uma reflexão sobre se eventual opção por um redundaria em prejuízo definitivo do outro, hipótese essa que significaria que se estaria ante linhas de sentido único, espécie de “river of no return”3, ou sobre se a inicial opção é de algum modo reversível.
Ora, que o direito ao transporte dependia da decisão de fixação de residência em Portugal, isso resulta expressamente do nº4, do art. 17º citado. Visto isso, o Governo de Macau, em 1994 assegurava o transporte aos aposentados que, além de terem transferido as pensões para a CGA, também deslocassem para Portugal o seu local de residência habitual. Situação diferente seria a de não quererem mudar o seu local de residência. Nesse caso, poderiam cumular com o direito de transferência do pagamento das pensões (art. 17º, nº3, proémio do DL nº 14/94/M) o de continuar a habitar moradia do Território - primeiro até 19/12/1999 (art. 17º, nº3, al. b) do DL nº 14/94/M) e, depois, sem qualquer limite temporal (art. 1º, al. a) e art. 2º do DL nº 96/99/M) - e ainda o de acesso a cuidados de saúde mediante o pagamento da respectiva contribuição (art. 17º, nº3, al. c) do DL nº 14/94/M)4. É assim que deve ser entendido o exercício dos direitos ali previstos.
Mas então, é caso para se ir à procura da mais adequada interpretação.
Numa perspectiva ampla do direito, poderia dizer-se que a fixação da residência em Portugal se apresenta como pressuposto histórico do exercício do direito ao transporte (nº4, cit. art. 17º). Quer dizer, num determinado enquadramento histórico-temporal haveria que compreender-se que, pretendendo o interessado ir viver para Portugal, a Administração de Macau de então se deveria comprometer a efectuar o pagamento das passagens do transporte de pessoas e bens. Mas a opção manifestada e concretizada nesse sentido não poderia em caso algum impedir que o aposentado regressasse a Macau para aqui de novo estabelecer a sua vida, enfim, aqui mais uma vez (re)fixar residência. Em favor desta tese dir-se-ia, por conseguinte, que uma coisa não podia impedir a outra, porque seriam direitos distintos com pressupostos diferentes e insusceptíveis de se atropelarem, comprimirem ou anularem. Consequentemente, um posterior retorno a Macau, o que poderia suscitar seria, eventualmente, uma discussão sobre se haveria lugar por parte da RAEM a um direito de reaver aquilo que a Administração do Território tinha dispendido com o transporte fundado numa fixação de residência que se verificou não se ter consolidado. Eventualmente, repetimos.
Mas, a afiançar esta posição ainda se poderia invocar, por analogia, os casos daqueles que, tendo regressado a Portugal no termo de uma comissão de serviço prestada no Território, por exemplo, mais tarde para cá voltaram a fim de trabalharem na Administração Pública da RAEM sem que lhes tivesse sido pedida a devolução das despesas do transporte que foram suportadas aquando do regresso e sem que lhes tivesse “anulado” o tempo de residência então ocorrido até à transferência5. Todos os funcionários que regressaram a Portugal nessas condições, obviamente para aí fixarem residência habitual, e que tenham voltado para Macau, onde continuam a ser residentes da RAEM para todos os efeitos, e colhendo dessa condição a jurisdicidade dos seus direitos, não estão em diferente situação dos aposentados. Ou seja, também estes, depois de fixarem residência em Portugal após o transporte, se acabaram por regressar a Macau, para aqui (re)fixarem residência, continuam a ter o estatuto de residentes, que aliás, nalguns casos, e, verificados os respectivos requisitos, nunca terão perdido6 (nem os direitos correspondentes).
Diferentemente, uma concepção mais restrita do direito encobre-se num conceito mais efectivo da residência, portanto, mais apertado, mais factual, mais reportado a uma situação material e concreta. Só podia aceder ao direito ao transporte quem fosse fixar residência efectiva em Portugal, não é verdade? Então, uma vez ali fixada, deixou o interessado de ter qualquer vínculo com Macau, perdeu em relação a ele qualquer contacto de proximidade real. E perdendo isso, perdeu consequentemente o direito ao subsídio de residência, mesmo que de novo para cá voltasse em plena RAEM. Assim se pode sintetizar a equação desta ideia.
Esta perspectiva tem alguma margem de conforto legal? Sim, evidentemente.
Há, efectivamente, uma coisa que é preciso radiografar no DL nº 96/99/M. É que nem o artigo 1º, nem o 2º desse articulado legal deixam dúvidas severas a respeito do seu objectivo essencial. A sua ratio está vazada no próprio preâmbulo, onde é afirmado o sentido humano e social que é preciso conferir àqueles que «…tencionam continuar a residir em Macau», até para se evitar o «…desenraizamento provocado pelo abandono da sua residência habitual e da comunidade circundante»), assente num pressuposto evidente, que era o da continuação ou manutenção do “status quo ante”. Ou seja, visava-se criar as condições para que este pessoal pudesse continuar a viver em Macau e assim manter os anteriores direitos. Está ali um sentido claramente proteccionista marcado por uma ideia de continuidade da situação material e, portanto, sem hiatos. E é na letra do articulado que esta intenção se corporiza. Com efeito, ao pessoal que transfira a responsabilidade pelas pensões será «…mantido o direito…» (proémio do art. 1º) a:
«Continuar a habitar moradia do Território enquanto residir em Macau…» (al. a);
Ou,
ao «Subsídio de residência nos termos do Estatuto…» (al. b).
Nesta linha, até o artigo 2º não permite a menor réstia de dúvida ao acentuar a ideia de «Manutenção» de outros direitos que já decorressem dos DL nºs 14/94/M e 38/95/M.
Quer dizer, todos os direitos anteriores reconhecidos pelos dois diplomas de 1994 e 1995 se manteriam, desde que se mantivesse a situação de residência dos interessados em Macau (o que significaria que nunca a deveriam ter perdido). Note-se que o art. 1º do DL nº 96/99/M, se bem que tenha deixado de falar em qualquer limite temporal, acabou por não revogar o art. 17º do DL nº 14/94/M, onde no seu nº4 se prescreve o direito ao transporte sob condição de fixação de residência em Portugal. Ora, se o art. 1º mantém o subsídio de residência “nos termos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau” (al. b)), é porque o legislador tinha bem presente que a sua aplicação era dirigida aos que continuassem a ser residentes de Macau, porque assim é pressuposto no art. 203º, nº1 do ETAPM.
E não poderá o art. 2º do DL nº 96/99/M (“O disposto no artigo anterior não prejudica os demais direitos previstos nos Decretos-Leis nºs 14/94/M, de 23 de Fevereiro, e 38/95/M, de 7 de Agosto”) constituir, ele mesmo, um obstáculo a esta tese? Ao plasmar que o direito ao subsídio de residência reconhecido na alínea b) do art. 1º não prejudica os direitos anteriormente reconhecidos, nomeadamente o direito ao transporte (que pressupunha a fixação de residência em Portugal) não será o mesmo que dizer que o uso deste (direito ao transporte) não inviabiliza aquele (direito ao subsídio)?
Bem. Em defesa da tese anterior, melhor seria que o legislador dissesse que o uso de qualquer dos direitos previstos nos diplomas de 1994 e de 1995 não seria obstáculo ao uso do direito ao subsídio de residência. Mas, na medida em que o não expressou, isso mais reforça a tese agora em análise, no sentido de que o legislador disse o que queria e expressou o seu pensamento pelo modo mais adequado (art. 8º, nº3, do CC). Portanto, o não prejuízo dos direitos anteriores tem que ser interpretado até onde for possível a conciliação de ambos. Na verdade, quem tivesse fixado residência em Portugal para exercer o direito ao transporte, não podia concomitantemente beneficiar do direito ao subsídio, o qual implica necessariamente uma residência efectiva em Macau, nos termos do art. 203º, nº1, do ETAPM, como já se disse anteriormente. A não ser que se pense que a referência ao não prejuízo daqueles demais direitos tenha implícito que o titular do direito ao transporte o tenha realmente exercido e tenha de novo voltado a residir efectivamente em Macau. Ora isso, como vimos, nem está plasmado na letra do diploma, nem o preâmbulo expressamente o admite, pois o espírito desse articulado é de uma situação de continuidade na residência em Macau. Desta maneira, a referência feita no art. 2º tem que ser interpretada como sendo a determinação legal de permissão de uma reunião de direitos até onde for possível a sua compatibilidade.
Pensamos que esta 2ª tese é a que melhor se coaduna com os termos dos diplomas acabados de estudar.
No entanto, ainda não se pode dar resolvida a principal questão. Quer dizer, o facto de isoladamente se poder avistar no diploma em causa (DL 96/99) alguma abertura à defesa (abstracta) do ponto de vista do recorrente, nem por isso podemos deixar de fazer a sua leitura num âmbito alargado ou mais vasto do regime legal. Ainda falta estudar o tema com a adição da Lei 8/1999 e da Lei Básica. Veremos isso já (…).
O recorrente insiste que nem a Lei nº 8/1999, de 20/12 (sobre o direito de residência na RAEM e sobre atribuição do conceito de residente permanente) é obstáculo à satisfação do pedido. Para si, esta lei apenas exige que aqui se tenha residência “legalmente consentida”, presumindo residentes de Macau os portadores de Bilhete de Identidade de Residente da RAEM, como era o seu caso. Isto para dizer que nunca chegou a deixar de ser residente de Macau.
Ora bem. O recorrente faz apelo ao conceito jurídico de residente e é verdade que aquele diploma nem sempre exige um domicílio efectivo na RAEM para que alguém possa ser considerado aqui residente permanente. Basta ler logo o art. 1º, als. 1) e 2), para se perceber que assim é. E adquirido o título jurídico de residente permanente (residência jurídica), pode gozar do direito de residência (residência efectiva e material), nos termos definidos no art. 2º. Mas também é certo que noutros casos, para ser residente permanente é preciso que, além de outros requisitos, “aqui tenha o seu domicílio permanente” (art. 1º, als. 4), 5), 6), 7), 8), 9)), o que significa que aqui tenha a sua residência habitual (art. 4º, nº1) e a não perca nos termos do art. 2º, nº2. Quer dizer, o domicílio permanente/residência habitual em Macau continua a ser fundamental para a obtenção do título jurídico.
É certo que a simples posse de um título jurídico, como é o do BIRM, confere uma presunção de residência habitual (art. 5º, nº1). Só que esta presunção é “iuris tantum”, a ponto de ser ilidível pelo próprio Director dos Serviços de Identificação no âmbito dos seus poderes (art. 5º, nº2). E não podemos dizer que o art. 7º conforta a tese defendida pelo recorrente, uma vez que ele se refere ao modo de confirmação do estatuto e não ao modo de ilidir a presunção, a qual não está afastada. Ou seja, a confirmação não impede a prova do contrário.
Ora, portanto, se até mesmo esta presunção é ilidível, não se deve olhar para ela como instrumento de apoio à tese de que basta o título jurídico ou a “residência legal” para os interessados se poderem fazer valer do direito ao subsídio de residência em causa. Na verdade, o que conta para este direito é a residência real. E para isso, a própria fixação em Portugal da residência em virtude do exercício do direito ao transporte serve para, automaticamente, expor uma elisão da presunção. Foi esse o sentido do acto, quanto a este aspecto, e não achamos que essa perspectiva seja errada.
(…) Da violação do art. 10º da Lei nº 2/2011, de 28/03.
Estamos convencidos de que o próprio recorrente sempre terá a si mesmo concedido a clara noção de ter perdido o direito ao subsídio de residência a partir do momento em que aceitou a transferência das pensões para a CGA e desde o momento em que requereu o direito ao transporte para Portugal, nos moldes acima explanados, pois, de outro modo o sentisse, há muito o teria tentado receber7. Mesmo que não tenha ido viver para Portugal, o pedido de pagamento das passagens com o fundamento de que pretendia fixar residência em Portugal e o seu deferimento haverá de ter reflexos (não pode valer para uma coisa, que é o recebimento do montante das passagens, e não valer para o seu pressuposto, que é a deslocação para Portugal do seu local de residência). Quer dizer, para a Administração, este titular foi para Portugal, tanto é assim que lhe pagou as passagens aéreas e o transporte dos bens. Tanto quanto nos parece, a fruição do pagamento das passagens na sequência de um requerimento nesse sentido, será de atender para efeito de perda do subsídio que o regime legal porventura reconhecesse (se o reconhecesse) a quem se mantivesse em Macau após o estabelecimento da RAEM.
Veio pedir o subsídio só agora por causa da emergência da Lei nº 2/2011. Estudemo-la.
Esta lei dispõe no seu art. 10º que:
“1. Os trabalhadores dos serviços públicos que se encontrem em efectividade de funções ou desligados do serviço para efeitos de aposentação, bem como os aposentados, incluindo os magistrados aposentados, têm direito a um subsídio mensal de residência, nos termos previstos na presente lei, ainda que existam entre eles relações de parentesco e residam na mesma moradia.
2. Não têm direito ao subsídio de residência aqueles que habitem em moradia do património da RAEM ou de qualquer outra pessoa colectiva de direito público ou que recebam mensalmente subsídio para arrendamento ou equivalente”.
Trata-se de um artigo que, conjugado com o art. 24º (determina a revogação expressa do art. 203º do ETAPM, já acima transcrito), denota um novo propósito do legislador.
Até então, era necessário que o interessado possuísse residência em Macau, ou melhor, que nunca tivesse deixado de residir em Macau na configuração interpretativa que acima expusemos, pois tendo transferido a residência para Portugal em algum momento, teria ocorrido a perda do direito ao subsídio em causa, como se viu.
Com esta nova intenção legislativa, ter-se-ia querido abranger aqueles que, tendo utilizado aquele direito ao transporte e, por causa dele, fixado a residência em Portugal?
Sim, na opinião do recorrente. E terá sido mesmo por tal condição ter deixado de figurar na lei que o recorrente requereu a concessão do subsídio.
Pois bem. O que antes de mais se mostra útil discutir é se esta lei visa abranger todos os aposentados, ou se vale apenas para os funcionários que vierem a aposentar-se a partir da sua entrada em vigor (novos aposentados), independentemente de manterem ou não residência em Macau.
Se se pensar que a lei se aplica só para as futuras aposentações, então, ao deixar de fora aqueles que chegaram alguma vez a fixar residência em Portugal, dir-se-ia ser ela injusta e desigual na criação do direito, na medida em que, se todos estiverem presentemente nas mesmas circunstâncias (i.é, se todos viverem em Macau), reduziria o universo dos titulares do direito somente a alguns deles.
Todavia, não entendemos que a lei tenha esse campo de aplicação tão restrito.
Na verdade, o art. 10º tem por destinatários beneficiários, segundo a sua própria literalidade:
- Os (actuais) trabalhadores dos serviços públicos “que se encontrem em efectividade de funções”;
- Os (actuais) trabalhadores “que se encontrem…desligados do serviço para efeito de aposentação” (ainda não estão aposentados, mas virão a estar);
- Os trabalhadores dos serviços públicos “que se encontrem…aposentados”.
Portanto, o nº1 ao falar em aposentados, além de obviamente não poder deixar de prever os futuros aposentados (porque a lei valerá sempre para todas as situações que se venham a subsumir daí em diante à fattispecie), está também, e nitidamente, a referir-se aos que se encontrem já na situação de aposentados. Parece-nos que sobre esta conclusão haverá unanimidade de pontos de vista.
Mas o consenso acaba aí. Isto é, se as mais simples regras de interpretação não nos permitem outra conclusão para além da que se expôs, mais problemática é a resposta à interrogação sobre se nessa previsão (extensão do direito aos aposentados no momento da entrada em vigor da lei) se incluem os aposentados do “Território de Macau”, ou se apenas os “aposentados da RAEM”. É assim, exactamente desta maneira, que a questão deve ser colocada.
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4.2 - Duas correntes principais entrevemos a propósito da polémica.
4.2.1 - De acordo com uma, chamemos-lhe abrangente, dir-se-ia que esta lei surge num novo contexto histórico-social inclusivo e, desse modo, abrangendo todos os aposentados, sem discriminação objectiva (o que conta é a situação objectiva de aposentadoria), sem limitação temporal (a lei não estabelece nenhum marco temporal para a frente do qual a lei cobre as situações da fattispecie, muito menos para trás do qual a escuridão é total em termos de previsão), e sem restrição pessoal injusta (não há uma classe de aposentados favorecida e outra classe de aposentados, em razão das suas condições pessoais, não contemplada pela lei).
E, transpondo a força deste argumentário para as situações da vida, então dir-se-ia que para o legislador é indiferente saber se se trata de:
a) - Aposentados antes ou depois de 19/12/1999;
b) - Aposentados com pensões transferidas para Portugal; ou, inclusive,
c) - Aposentados que tenham obtido transporte para Portugal.
A circunstância de algum dos aposentados ter obtido transporte para Portugal tê-los-á feito fazer perder o direito ao subsídio durante todos estes anos segundo a legislação então vigente. Todavia, nada impedia o legislador actual de, dentro da sua soberania de competência, a qualquer momento, lhes reconhecer novamente o subsídio em diferentes circunstâncias. Conceder um direito a quem o tinha perdido ao abrigo de legislação anterior é, numa certa perspectiva, o mesmo que reconhecer o direito pela primeira vez a quem nunca o teve. Tudo se passa como se estivéssemos perante legislação independente da anterior, com novos destinatários, novos requisitos e diferentes pressupostos conjunturais e histórico-sociais, cega, por conseguinte, para os circunstancialismos antecedentes.
Ora, para lhos reconhecer não precisava de revogar o art. 17º, nº4, do DL nº 14/94/M; bastava retirar a condição de residência em Macau estatuída no ETAPM para assim todos ficarem no mesmo plano de igualdade. Neste sentido, não se acolheria a ideia de que este normativo fazia depender a concessão do subsídio a quem já o possuísse ao abrigo do DL nº 14/94/M ou, dito de outra maneira, a quem não o tivesse perdido por força desse mesmo diploma. Se fosse necessária a tal continuidade, haveria aí uma escusada tautologia, mas o certo é que nem isso em lado nenhum resulta da Lei nº 2/2011.
Para esta corrente, não se percebe como possa ver-se na Lei 2/2011 alguma relação de dependência de uma situação consolidada ao abrigo de diplomas anteriores.
Para quem segue esta corrente, dirá que esse é o erro maior do acto, na medida em que estabelece uma conexão entre a Lei nº 2/2011 e os DL nºs 14/94/M (art. 17º, nº4) e 96/99/M, como se estes diplomas alguma vez tivessem condicionado para todo o sempre o legislador futuro. Com efeito, nem isso é verdade, nem o legislador de 2011 se auto-vinculou a nenhuma solução de continuidade como condição de acesso ao direito. Se o legislador, no que ao subsídio respeita, quisesse afastar do seu âmbito pessoal de previsão os aposentados que tivessem transferido a responsabilidade do pagamento das pensões para a CGA e que simultaneamente tivessem utilizado o direito ao transporte para Portugal a fim de aí fixarem residência, facilmente os teria incluído expressamente nas causas de exclusão do nº2 do mesmo art. 10º. Bastaria apertar o filtro e dizer que não teriam direito ao subsídio “aqueles que habitem em moradia do património da RAEM ou de qualquer outra pessoa colectiva de direito público ou que recebam mensalmente subsídio para arrendamento ou equivalente” (redacção actual) e ainda “aqueles que, em virtude do direito ao transporte para Portugal, ali tenham fixado residência nos termos do art. 17º, nº4, do DL nº 14/94/M). E não o fez, apesar de bem conhecer esta problemática! Não o fez, porque a sua intenção seria não deixar de fora quem quer que alguma vez tivesse residido, esteja actualmente a residir ou venha futuramente a residir, no exterior de Macau. Aliás, se a sua intenção era seguramente essa, que lógica e racionalidade haveria em permitir que o subsídio viesse a ser reconhecido aos aposentados que vivam no exterior de Macau, por exemplo, em Pequim, Londres ou Sidney, e negado aos aposentados que vivem actualmente em Macau só porque alguma vez residiram em Portugal?! Não faria sentido e seria mesmo injustificadamente discriminatório.
Em suma, ainda que tivesse postergado o conceito intrínseco de subsídio de residência tal como ele geneticamente é justificado (veja-se o que sobre ele acima dissemos), o certo é que, no que respeita ao factor residência, quis o legislador pôr o contador a “zero”, de maneira a fazer uma abrangência total e para que todos ficassem em igualdade de circunstâncias. Assim é que, para os defensores desta tese8, passou a atribuir “ex novo”, i.é., pela primeira vez com este sentido, o direito ao subsídio a todos os aposentados independentemente do lugar de residência9, o que significa que o reconhece agora e para valer in futurum aos que, indiferentemente:
- Sempre residiram em Macau; ou
- Alguma vez tenham residido em Portugal ou noutro sítio qualquer10; ou
- Não estejam actualmente a residir em Macau; ou, estando,
- Venham futuramente a residir fora de Macau.
Nessa tese, então o acto, porque cria uma solução que a mais correcta interpretação do art. 10º não consente, padeceria da violação do preceito.
É a opinião do recorrente.
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4.2.2.- A tese acabada de expor é tentadora, sem dúvida, porventura aplaudível segundo algumas regras de lógica jurídica.
Tentemos, ainda assim, alinhavar uma segunda opinião, que se pode exprimir pelos seguintes traços:
Qualquer interpretação que se queira fazer da norma não pode deixar de atender ao disposto no art. 98º da Lei Básica. Ofende o seu comando qualquer solução que descortine na norma em apreço o asseguramento indistinto a todos os aposentados desse reclamado direito ao subsídio de residência. Na verdade, o que dele transpira é que a RAEM apenas garante o pagamento das pensões aos funcionários que tenham mantido o vínculo funcional e adquirido posteriormente à transferência da administração o direito à aposentação. Quer dizer, o art. 98º representa a fonte do direito à pensão de aposentação assegurada pela RAEM a todos aqueles funcionários a que a lei vigente no Território de Macau reconhecesse esse direito. Mas o art. 98º ainda estabelece outra condição dupla: a de que os funcionários tivessem continuado a prestar serviço após o “handover” e já sob a RAEM viessem a aposentar-se. Só esses seriam os aposentados a que reconhece direito a receber a pensão pela RAEM.
E nesta interpretação ancorada no art. 98º da lei fundamental da RAEM haveriam de radicar todas as normas que futuramente se reportassem aos direitos dos aposentados. Isto é, quando lei posterior dedicar alguma linha do seu articulado aos direitos e deveres dos aposentados, estará a ter por pressuposto que se trata dos aposentados da “RAEM”, não os aposentados do “Território de Macau”. Certo é que este preceito da Lei Básica garante ao funcionário e agente o pagamento da pensão em tais circunstâncias, para lá da nacionalidade e do local de residência. Ou seja, claramente quis abranger os funcionários com nacionalidade portuguesa (“independentemente da nacionalidade”), ainda que deixassem de residir na RAEM após a aposentação (“independentemente do seu local de residência”). Atenção, porém: só deixou de ser importante o local de residência a partir do momento em que o funcionário da RAEM se aposentou localmente. Esta indiferença do legislador quanto ao local de residência não pode ser extrapolada para outros quadrantes jurídicos, nomeadamente o do eventual direito ao subsídio de residência. Pelo facto de a lei não relevar o local de residência para efeito do pagamento da pensão, não se pode concluir que a mesma razão sirva para assegurar o pagamento do subsídio em causa, uma vez que antes desse singular aspecto ainda está o fundamento para a subjectividade do direito. E o direito subjectivo ao subsídio só é reconhecido a quem tiver sido, repetimos, aposentado ao serviço da RAEM. O artigo tem que ser lido apenas com o alcance que dele expressamente evola, não sendo legítimo transpor para outros planos ou para outras hipóteses que o legislador não tipificou. Ele apenas garante ou assegura o pagamento das pensões aos funcionários que continuaram a prestar serviço na Administração Pública e que, por reunirem os requisitos à aposentação, a venham obter. A RAEM assume os encargos que derivam dessa situação, mesmo que se trate de funcionários que apenas continuem a trabalhar para ela durante escassos meses. O que para o legislador da LB importa é que esse trabalhador venha a adquirir o direito à aposentação já sob a égide da RAEM: nesse caso, a RAEM paga-lhe a pensão. É isso e mais nada o que o preceito estipula. Esse é o fundamento e o pressuposto de que a Lei nº 2/2011 não abdicou.
Muito mais simples, como se acaba de ver, trata-se de uma hipótese de solução que se não pode enjeitar pelo peso do argumento tirado da Lei Básica.
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4.3 - E será que ela cria algum obstáculo a que lei ordinária confira diferente direito na esfera dos seus destinatários, nomeadamente o direito ao subsídio de residência? Será que a Lei nº 2/2011 tem por pressuposto incontornável que os seus beneficiários sejam os aposentados a que se refere o art. 98º da LB? Isto é, quando reconhece o direito ao subsídio de residência aos aposentados, independentemente do lugar onde residam, somente o legislador se quis referir aos aposentados cujas pensões são suportadas pela RAEM?
Cremos que sim. Mas, sem perdermos o pé, tentemos uma terceira via de solução, que a bem dizer não será mais do que uma segunda vertente da segunda tese.
Talvez seja a hora de perder algum tempo, que depois se ganha na justeza da solução, na interpretação específica do diploma que todo este problema criou: a lei nº 2/2011.
O art. 8º do Código Civil é o guardião de uma ideia de núcleo irredutível no sistema de interpretação da lei: Trata-se do pensamento, da intenção da autoridade legiferante que, para além da letra da lei, o intérprete deve investigar na sua actividade (…”reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo…”). Estamos a apontar para uma concepção subjectivista, psicológica, que conduz a que o ofício de interpretação deve averiguar o facto histórico desvendando, apreendendo e reconstruindo um certo conteúdo psicológico real e efectivo11.
Mas o art. 8º também não deixa de acolher a objectividade que a lei procura e deve ter, ao acrescentar que é preciso também olhar para a letra da lei, atendendo ainda às condições em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº1). Aquilo que Ferrara, citado por Manuel de Andrade12, dizia ser a voluntas legis, não a voluntas legistoris.
Se por aqui nos ficássemos, a letra da lei apontar-nos-ia o caminho mais directo, fácil e curto: o art. 10º da Lei nº 2/2011 apenas fala em aposentados sem distinção, nem acréscimo de outras qualidades pessoais. O elemento linguístico (interpretação literal: gramatical, linguística, verbal), por isso, tanto nos pode ajudar, como não; tanto nos pode sugerir a noção de aposentados em termos genéricos, como a de aposentados específicos. O artigo 10º é claro nas palavras que utiliza, mas não é, por si mesmo, esclarecedor sobre o que visa disciplinar com os termos que emprega (podia, efectivamente, ter eliminado qualquer dívida à partida).
Deve partir-se, pois, para aquilo a que se chama interpretação lógica, com três ordens de elementos: racional, histórico e sistemático.13
Quanto à ratio legis (via de interpretação racional), igualmente critério objectivo de interpretação14, também pouco se vê que por ela subsídios de vulto se nos deparem. Quando muito, colher-se-ia dela que o seu fim, a sua razão de ser, é, aparentemente, colocar em pé de igualdade todos os aposentados no momento da publicação da lei, à falta de melhor critério. A razão de ser residiria, nessa suposição, numa eventual desigualdade que a sociedade teria detectado entre uns e outros e que o legislador, dela se dando conta, teria querido eliminar. E nesse pressuposto, poderíamos dizer que tal solução, acaso essa fosse, satisfaria as exigências éticas e as necessidades práticas. Não acode satisfatoriamente o estudo do elemento histórico da interpretação, na medida em que não temos precedentes históricos pós-transição que subsidiem o intérprete na busca da solução da lei. O que temos a este respeito é algo remotamente histórico, anterior a Dezembro de 1999, mas cuja decifração já temos por resolvida, nos termos acima estudados. Quer dizer, por ser própria de um contexto histórico muito particular, que não teve similitude na fase posterior da vida de Macau, a legislação anterior à transição é de pouca ou nenhuma monta quanto ao subsídio que possa fornecer à interpretação da lei (pelo menos, não vemos nem na ida legislação, nem na recente, nada que apresente conexão relevante em termos que dêem apoio decisivo ao intérprete).
E se quisermos ir à raiz da voluntas legistoris, a dificuldade torna-se evidente, desde logo, porque não há um preâmbulo que ilumine o pensamento do seu autor. Com efeito, nem mesmo as actas da Assembleia Legislativa (ver documento juntos aos autos) nos dispensam o mais leve testemunho, a mais simples indicação, nenhum esclarecimento, enfim, acerca do que quiseram os senhores deputados com a sua aprovação. Nem sequer as reuniões da Comissão Permanente, conforme o documentam os CDs juntos aos autos (ver também as transcrições do seu conteúdo na sua parte essencial) nos fornecem o modo da mais pura e autêntica interpretação15. Ou seja, não temos modo de saber pela voz do próprio legislador qual foi o seu propósito.
A verdade é que se não pode olhar para a lei como um reservatório vazio para onde o intérprete derrame o que lhe parecer mais razoável16, sob pena de transformar o juiz em legislador como num sistema de direito livre17. Preciso é, por isso, olhar para o discurso legislativo como um processo racional para que possa impor-se por si próprio. “O discurso legislativo deve saber adequar os argumentos a preferir às exigências particulares das matérias a tratar. (…).Todo o discurso legislativo deve arrancar das razões pelas quais se dá prevalência a certos valores”18.
Pensa-se que a natureza das coisas19, enquanto justificação para a satisfação das necessidades económicas e sociais, pode justificar a medida20. Claro que a norma em apreço nos surge como relativamente indeterminada do ponto de vista da incidência pessoal reflectida na moldura, na hipótese legal, na “tatbestand”. Mas essa é, precisamente, a função criadora do direito dos tribunais21 e para isso se lança ainda mão do elemento sistemático da interpretação. Procura-se aqui olhar para a norma, não como uma ilha, mas como uma regulação integrada num conjunto mais vasto de normas, regras e princípios22. Esta interpretação, se falha a coincidência entre a letra e o pensamento, entre o lógico e o literal, permite ao intérprete a “rectificação”, restringindo a letra excessiva, quando o legislador disse mais do que quereria, ou ampliando a letra deficiente, quando o legislador disse menos do que queria23. No primeiro caso, interpretação restritiva; no segundo, interpretação extensiva.
Se considerarmos esta natureza das coisas, a lógica dos elementos, então o factor sistemático da interpretação haverá, prontamente, de dar-nos o alento necessário à solução que procuramos.
Ora bem. Dizer que o art. 10º citado se aplica aos aposentados é uma evidência, como se disse, pois tal é o que evola da sua letra. Achar que se aplica a todos os aposentados (concepção extensiva) ou apenas a alguns (concepção restritiva) já obriga a maior esforço. Por si só, a norma não esclarece e, unicamente, a se não se descobre se por ela o legislador quis uma aplicação geral ou restritiva. Verdadeiramente, até talvez se não possa dizer que o legislador disse “mais” do que devia ou “menos” do que queria. Podendo, embora, ter dito “melhor”, o que disse pode ser encarado como sendo exactamente o que queria dizer. Ele mesmo pode ter chegado à auto-consciencialização de que não precisava de dizer melhor (ou mais) do que disse, na medida em que o ordenamento jurídico em que se encontrava não lhe permitia outro agir legislativo. Se pensarmos que todo o diploma é uma estrutura sólida, procuremos nele elementos sistemáticos de interpretação que ele contenha para se descobrir eventual incompletude ou excesso do que foi dito no art. 10º. E isso é interpretação contextual.
Por que razão o art. 10º, contrariamente ao art. 203º do ETAPM, também dedicado ao subsídio de residência (mas agora revogado pela Lei 2/2011), não condiciona a atribuição do direito à residência em Macau? A resposta que se podia dar era a de que, se o legislador não introduziu esse condicionamento, é porque não quis que ele fosse travão e obstáculo ao alargamento pessoal do direito. Sim, poderia seguir-se esse caminho e não estaria errado. Todavia, o que esse legislador fez foi outra coisa que não podia deixar de fazer: foi respeitar e seguir o caminho aberto pela Lei Básica.
Aliás, nem isso é caso para grande admiração se tivermos em conta que o próprio art. 5º da Lei da Reunificação (Lei nº 1/1999) consagrou o princípio da continuidade dos vínculos dos funcionários e agentes, bem como os poderes e obrigações conferidos a entidades públicas e funcionários e agentes, «sem prejuízo das eventuais modificações nos termos da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau»
Pois, é o próprio art. 98º da Lei Básica que afirma muito claramente o asseguramento do pagamento aos funcionários e agentes que se viessem a aposentar depois do estabelecimento da RAEM das pensões de aposentação “…independentemente da nacionalidade e do seu local de residência”. Cremos que aí reside a razão da desnecessidade de o legislador “ordinário” fazer qualquer pronunciamento sobre o assunto. Quer dizer, se a pensão haveria de ser paga qualquer que fosse o local de residência do aposentado da RAEM, ilógico e desrespeitador da Lei Básica seria se o legislador “ordinário”, apesar de associar o subsídio de residência à condição de aposentação, estabelecesse o local de residência como requisito para a atribuição do subsídio.
Nesse sentido, o próprio artigo 23º, nº3 da Lei, ao dizer que “Os trabalhadores dos serviços públicos que não tenham direito ao subsídio de residência mas que, ao abrigo da presente lei, passem a ter o direito de o auferir, recebem esse subsídio a partir do mês seguinte ao da entrada em vigor da presente lei”, torna-se agora compreensível na linha do raciocínio acabado de expor. Isto é, não tinham direito ao subsídio os aposentados que não residiam em Macau (art. 203ºdo ETAPM); passam a tê-lo os aposentados, ainda que não residam em Macau.
Note-se, porém, que o art. 203º citado só serve para estabelecer a diferença e que não pode mais ser convocado para coisa nenhuma. Isto é, dele não pode aproveitar-se a parte que porventura permitisse ao intérprete perscrutar nele a possibilidade de os aposentados em causa poderem ser quaisquer uns, tivessem atingido essa qualidade antes ou depois do estabelecimento da RAEM. Tal não é mais possível, uma vez que o art. 203º foi revogado pela Lei nº 2/2011, afastando desse modo o espectro de incidência pessoal dos beneficiários do direito que pudesse decorrer da conexão do art. 10º ao art. 203º.
Por fim, porventura mais importante, o art. 1º da Lei 2/2011 parece servir como a porta grande para o entendimento de todo o articulado. Ele reza no nº 1 que a “…lei regula o regime do prémio de antiguidade e dos subsídios de residência e de família dos trabalhadores dos serviços públicos da Região Administrativa Especial de Macau…” (negro nosso). Quer dizer, o regime daqueles subsídios passa a ser outro, passa a ser o que vem contido no diploma novo. De modo que quem não tinha direito ao subsídio de residência passará a tê-lo, desde que reúna os requisitos dessa lei no quadro mais vasto de toda a energia legislativa em que a Lei nº 2/2011 se insere, sem excluir por conseguinte o referido art. 98º da Lei Básica. Ora, se a Lei nº 2/11 tem por destinatários/beneficiários os trabalhadores dos serviços públicos da RAEM (nº1), maior evidência não pode haver no sentido de que não pode estar a pensar nos trabalhadores que se aposentaram ao serviço da Administração Pública do Território de Macau.
Dito isto, cremos que se a lei em causa não tem aqueles funcionários do Território de Macau por receptores do seu comando normativo, então também o art. 10º os não pode ter.
É por todas estas razões, radicadas nos pontos acima tratados, que preferimos a solução para que se encaminhou o acto. E isto só pode significar a improcedência do vício. É que se o recorrente apenas pretende a atribuição do subsídio de residência em virtude deste diploma de 2011, então ele não lhe dá nenhum suporte legal à satisfação da sua pretensão e a Administração não podia, a partir dele e da sua articulação com a Lei Básica, senão indeferir vinculadamente o pedido».
Do texto transcrito, que, em jeito de remissão, aqui serve de fundamentação ao presente aresto, extrai-se a única conclusão de que nada do que o recorrente invocou a propósito do DL nº 96/99/M ou da Lei nº 2/2011 pode ser invocado em seu favor. Realmente, não só a supra citada norma da Lei Básica, como o próprio texto da Lei nº 2/2011 (particularmente, o seu art. 1º), são claros em excluir da sua previsão o pagamento do subsídio peticionado a quem não for aposentado da RAEM.
Deste modo, o recorrente, porque aposentado sob a égide da “Administração Pública de Macau”, não da RAEM, não pode ver satisfeita a sua pretensão. O mesmo é dizer, nenhuma das fontes de direito invocadas pelo recorrente é apta a contrariar a natureza imperativa do art. 98º da LB e 1º da Lei nº 2/2011.
*
Dito isto, nenhum dos vícios imputados ao acto merece acolhimento.
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IV - Decidindo
Face ao exposto, acordam julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 4 UC, sem prejuízo do apoio judiciário concedido (fls. 65v e 66).
Honorários ao defensor oficioso: MOP$2.500,00.
TSI, 20 de Março de 2014
Presente José Cândido de Pinho
Vitor Coelho Tong Hio Fong (voto a decisão)

Além da decisão quanto à questão da falta de audiência prévia que concordo perfeitamente, subscrevo apenas a decisão quanto à questão da alegada violação do artº 10º da Lei nº 2/2011, que na minha óptica de per si já é suficiente para julgar improcedente o recurso e prejudica o conhecimento dos outros vícios entretanto invocados pelo recorrente, uma vez que para mim, o recorrente, enquanto aposentado antes do estabelecimento da RAEM, não está abrangido pelo legislador no âmbito de aplicação dessa lei que preceitua expressamente no seu artº 1º que “a presente lei regula o regime do prémio de antiguidade e dos subsídios de residência e de família dos trabalhadores dos serviços públicos da Região Administrativa Especial de Macau”, preceito esse que obviamente exclui os aposentados da Administração do então Território de Macau.

Lai Kin Hong

1 O art. foi revogado pela Lei nº 2/2011. O nº 7 apresenta a redacção do art. 1º do DL nº 62/98/M, de 28/12 e o nº9 apresenta a redacção apõs a rectificação publicada no BO nº 3, de 18/01/1999.
2 Esta alínea b) foi revogada pelo DL nº 96/99/M, de 29/11.
3 “Rio sem regresso”, a título de curiosidade, é nome de um famoso Western com Robert Mitchum e Marilyn Monroe.
4 Parece claro que, tendo transferido a sua residência para Portugal, o direito contido na alínea c), do nº3, do citado art. 17º (acesso a cuidados de saúde em Macau) deixa de ter razão de ser, sob pena de contradição de termos.
5 Todo o tempo de residência anteriormente verificado no Território conta, nos termos da Lei nº 8/1999, como tempo de residência para efeito de obtenção do título de residência permanente.
6 Não perderam com base num critério preponderante do conceito de residência eminentemente jurídico.
7 Neste pensamento não está excluída a possibilidade de o recorrente não o ter pedido também por ser titular de casa própria em Macau, facto que o excluiria do subsídio, face ao art. 203º do ATAPM.
8 Mas, se no programa das Linhas de Acção Governativa para a área da Administração e Justiça para 2011 apresentado por um membro do Governo era feito o anúncio de que se iria propor que fosse “eliminada a norma que exige que todos os trabalhadores devem residir em Macau para ter direito ao subsídio de residência” (doc. fls. 104) e se a Nota Justificativa da Proposta de Lei seguiu o mesmo caminho (doc. fls. 105), então a melhor maneira de evitar que outro membro do Governo contrariasse aquele que, aparentemente, é o espírito da Lei, seria, ou será, estabelecer com urgência uma lei interpretativa de modo a eliminar todas as dúvidas na aplicação da norma em apreço (art. 10º, nº1).
9 Passou a ser um subsídio de residência de Macau que não carece de residência em Macau. Será doravante simplesmente um subsídio inerente ao estatuto de aposentado (propter statutum) e não em razão da residência (propter commorationis).
10 Mesmo os que transferiram as suas pensões para a CGA são aposentados de Macau (porque uma coisa é a reunião dos pressupostos estatutários necessários à obtenção do direito à aposentação; outra, é a responsabilidade da transferência das pensões para outro “pagador”), tal como, de resto, a própria Administração chegou a reconhecer no Parecer nº 106/GTJ/90 citado a fls. 68 dos autos e no ofício nº 032/DTJ de 11/02/2002, dirigido pela Direcção dos Serviços da Administração Pública ao Director dos Serviços de Finanças a fls. 106 e no ofício nº 1103120001/DIR, a fls. 107 dos autos.
11 Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 4ª ed., 1987, pag.15.
12 Ob. cit., pag. 16.
13 (Inocêncio Galvão Teles, Introdução ao Estudo do Direito, I, 11ª ed., pag. 245 e sgs.
14 Idem e tb. pag. 22 e sgs.
15 Com efeito, a não ser uma breve opinião pessoal de um elemento da assessoria da Assembleia que, inquirida sobre o tema, manifestou a ideia de que o subsídio se aplicaria aos funcionários do tempo da Administração Portuguesa que não tivessem pedido a transferência do pagamento da pensão para Portugal (CD 1).
16 Regelsberger, citado por Manuel de Andrade, ob. cit., pag. 60.
17 Coviello, cit. por M. Andrade, ob. cit., pag. 61.
18 Luis Cabral de Mocada, Contributo para uma teoria da legislação, Lisboa, 1998, pag. 111.
19 Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, traduzido por Manuel de Andrade, Interpretação e Aplicação das Leis, na obra “Ensaio…”, pag. 141.
20 L. Cabral de Moncada, ob. cit., pag. 112-115.
21 Hans Kelsen considera que, na interpretação do aplicados da lei, existe uma interpretação autêntica, in Teoria Pura do Direito, tradução de João Baptista Machado, pag. 470, fugindo à concepção tradicional que se tem da interpretação autêntica, aquela que emana do próprio legislador, geralmente a através de uma lei interpretativa Inocêncio Galvão Teles, Introdução ao Estudo do Direito, I, 11ª ed., pag. 241; Manuel de Andrade, ob. cit., pag. 131.
22 Inocêncio Galvão Teles, ob. cit., pag. 250, José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 10ª, ed., pag. 403 e sgs.
23 Interpretação estrita (limitativa ou restritiva) e interpretação ampla (em sentido lato ou extensivamente) apud Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 2ª ed., pag. 425.
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